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domingo, 16 de março de 2008

Um Vagabundo em Lisboa

Desço as escadas rolantes para a loja da Fnac do Chiado e já se percebe que há música ao vivo. Lá dentro a barulheira de qualquer coisa que supostamente tem a ver com jazz é desconfortante. Antecipo a saída; desta vez não vou passar por lá a meia-hora do costume vasculhando as prateleiras onde estão os temas preferidos.

Desço outra vez, agora a Rua do Carmo. Primeiro uns alternativos com cães e pífaros. Felizmente não estão a tocar nem a pedinchar para poderem continuar a viver sem trabalhar. Depois o calhambeque dos discos de fado que já passou a imóvel da rua.

Ao início do Rossio a banca da senhora dos autocolantes, pinos e bandeiras do PSD. Também vende carteiras e bolsas. Há quantos anos assenta ela banca por ali? Talvez desde 1974.

Passo pelo Nicola mas não entro. A última vez que o fiz pensei que estivesse em Ayamonte, ou Gibraleon, ou Sevilha tal era má a qualidade do 'espresso'

A 'Atlântico', que não comprei na Fnac, vende-se nas bancas do Rossio; nada mal.

Vou à net no Rossio, ao lado do Gelo. A fauna humana é diversificada e uma espécie de resumo do próprio Rossio.

Atravesso a praça. Uns índios, ou mascarados disso, 'tocam' música de índios. À sua volta uma dezena de indigenas e turistas escutam embevecidos a música até porque estão convencidos que aqueles movimentos que vêem os índios fazendo aos instrumentos musicais são a origem do som. Desta vez o CD não riscou, a aparelhagem de som portátil não falhou, e os espetadores devem ter ido para casa contar as coisas lindas e diferentes que viram e ouviram ao vivo.

Na Suíça, um funcionário que de ouvir e ver se percebe que está bem acima da generalidade dos clientes da pastelaria, atende e indispõem-se com uns clientes espanhóis. Perceberam perfeitamente o ralhete em português, ao contrário do que nós costumamos pensar, e deixaram de falar aos gritos. Por uns instantes não se portaram como espanhóis.

Vou embora. Já estou na Rua do Ouro (Rua Áurea, na toponímia oficial). Vejo mais à frente um pedinte sentado no chão, contra a parede. Parece ser velho e está sujo, deve ser mais um sem-abrigo de Lisboa. Vou passar por ele e já tenho a jeito a moeda que lhe vou deixar. O homem tem vestida uma gabardina clara mas encardida. O cabelo e a barba comprida estão desgrenhados e grossos da sujidade. Estende a mão suja, negra de tão suja. Ponho-lhe a moeda na mão e oiço um ‘obrigado’ dito de modo tão inesperado que me faz deixar de olhar para a mão dele, parar e fixá-lo com atenção. Confirmo que só pode ser um vagabundo, impossível tentar adivinhar quando foi a última vez que se lavou, por opção ou possibilidade. O mesmo com a roupa. Mas o timbre daquela voz no 'obrigado' que disse era de uma frescura notável. Não era a voz arrastada, ou fraca, ou grosseira, ou envelhecida dos vagabundos. Aquele ‘obrigado’ soou com elevação e sem um vestígio do jeito calão do falar lisboeta. Aquela voz talvez fosse a último vestígio de outra vida na vida daquele homem.

"A distância que vai de um homem comum a um vagabundo é curta e percorre-se com uma brevidade que o homem comum não suspeita". Quem o diz são os próprios vagabundos, os sem abrigo, que quase todos foram um dia gente comum. Este homem mudou-me o dia. A música alta na Fnac que não respeita quem visita a loja, o café espanhol do Nicola de que me lembrei a tempo de escapar, os trapalhões que enganam os incautos no centro da Lisboa, tudo perdeu importância. Ficou só a voz de um homem que talvez tenha sido alguém distinto não há muito tempo e que agora é um vagabundo.

7 comentários:

Anónimo disse...

Texto do caralhão, humano, boa observação. Reconheço perfeitamente os locais e as pessoas.

’Lembro-me de ter ouvido dizer que a distância que vai de um homem comum a um vagabundo é curta e se percorre com uma brevidade que o homem comum não suspeita.’

Grande verdade. Mesmo na rica Holanda há vários casos destes. Fala-se actualmente no caso particular de um empresário que por vários motivos pessoais deu em vagabundo, viveu debaixo das pontes, lá recuperou passado algum tempo e escreveu há dias um livro.

Só não percebo esta animosidade em relação aos espanhóis que frequentemente encontro em portugueses e que transparece nesta frase: ‘Por uns instantes não se portaram como espanhóis.’

R disse...

Interessante ó Paulo, só não compreendo o "porquê" da moeda.
Agora dás moedinha ao árduo trabalhador?!



"Tony Banza" -Googla, porque tem uma muito boa voz e são os Italianos que o andam a divulgar, nós queremos é "jazz".

Ainda assim tens de vir beber umas taças ao bifanário e dar-te com a malta da pesada, não é só repetir as palavras de ordem do Paulo Pinto Mascarenhas e ter um acesso de "humanismo" ao estilo de Camus.


Mas está girito o texto, para um tipo como tu ó migo Paulo.

Paulo Porto disse...

Caro RoD

"Só não percebo esta animosidade em relação aos espanhóis que frequentemente encontro em portugueses e que transparece nesta frase: ‘Por uns instantes não se portaram como espanhóis.’"

Os espanhóis têm o péssimo hábito de falarem aos gritos entre eles, especialmente quando se movem em grupos de 4 ou mais. No caso, o raspanete fazendo-os notar que não era bem aceite tanta barulheira, resultou.


Caro Vicissitudes

Ponha-me lá a par do assunto, sff.

Paulo Porto disse...

Erro: a primeira parte do comment era dirigido ao CdR.

Anónimo disse...

’Os espanhóis têm o péssimo hábito de falarem aos gritos entre eles’

Precisamente a mesma coisa dizem os holandeses dos alemães, os alemães dos americanos, os americanos dos mexicanos, os mexicanos dos argentinos, os argentinos dos ingleses, os ingleses dos ….. americanos – e damos a voltinha ao mundo dos preconceitos outra vez!

Paulo Porto disse...

Caro CdR

Aqui pelas bandas por onde trabalho posso observar holandeses, alemães e ingleses aos magotes. É verdade que todos podem ser muito barulhentos, mas presisam de estar em grandes grupos e bêbados. No caso dos espanhóis, basta-lhes um grupo de 4 ou mais, e não precisam ter bebido nada.

Anónimo disse...

'No caso dos espanhóis, basta-lhes um grupo de 4 ou mais, e não precisam ter bebido nada.'

Precisamente. Os espanhóis, assim como os franceses, italianos e portugueses são os únicos povos que dominam o álcool.
Ou seja, bebem nas calmas sem a necessidade premente de se embebedarem, ao contrário dos anglo-saxões e dos eslavos.

Quanto ao barulho dos espanhóis, não quero ser desmancha-prazeres, mas acho que é impressão sua misturada com muita táctica do quadrado… hahaha

Isto vai dar uma discussão interessante quando a gente se encontrar, tudo bem regado claro, mas sem que a gente fale alto nem se embebede…