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domingo, 1 de novembro de 2009

Do caos e das formas

Caos e significação
por Paulo Tunhas, Publicado em 28 de Outubro de 2009
Não compreender que a criação conjuga caos e significação é não compreender, além da arte e da religião, a sociedade

Não há muito a acrescentar ao que Vasco Pulido Valente optimamente escreveu sexta-feira passada no "Público" a propósito do recente caso Saramago: aquelas pouco elaboradas opiniões sobre a Bíblia não deviam surpreender, vindas de quem vinham; o verdadeiramente extravagante foi a atenção que lhes foi prestada. Algo, no entanto, se pode dizer mais. Não, é claro, sobre Saramago - um mau escritor talentoso, se a opinião me é permitida -, mas sobre aquilo que, na sua maneira de pensar, é comum a muita gente.

Em primeiro lugar, a dificuldade em perceber aquilo que nas grandes criações é caos, caos a partir do qual nascem as formas (entre outras, as do bem e do mal). Isto, que vale para o Antigo Testamento, vale igualmente para a tragédia grega e para toda a grande arte, seja ela qual for. É a dificuldade em compreender isto que gera uma visão unívoca e chã das coisas e que permite a cegueira face ao modo como o sublime e o terrível convivem no interior do coração humano.

Depois fala-se da religião como se ela fosse uma peça descartável que não tivesse senão uma relação puramente conjuntural com a arte e a cultura europeias.

Expulsaríamos a fé, ou a possibilidade de conceber a fé, para distantes plagas e poderíamos, livres da infame excrescência, continuar, por exemplo, a apreciar impecavelmente a "Paixão segundo S. Mateus". Acontece que isso é um sonho de zombie. Não é possível, mesmo para um ateu (falo do que sei), ouvir o coro de Bach gritar "Barrabam!" sem entrar ao mesmo tempo, quase fisicamente, num universo imaginário bíblico de significações. A grandeza de Bach não é, pura e simplesmente, dissociável desse universo, dessa ordem, desse cosmos. É uma parte desse magma.

Esta insensibilidade ao carácter imaginário das significações (judaicas, gregas, cristãs) que governam as nossas vidas - uma delas, por exemplo, é a exigência de justiça - impede, como é natural, um bom entendimento da religião e da arte, mas induz igualmente a mais completa cegueira face ao que caracteriza propriamente o modo de existência das sociedades. As sociedades mantêm-se porque os seus membros, por elas criados, partilham, para falar como Cornelius Castoriadis (que tenho vindo, de resto, a citar implicitamente), "significações imaginárias sociais". Sem a partilha dessas significações, elas não subsistiriam. Que essas significações devam ser continuamente reinterpretadas, é uma coisa. Que sejam vistas - como pretende um progressismo muito militante hoje em dia - como simples barreiras a transgredir em benefício da felicidade universal, isso resulta já do mais puro analfabetismo. Inclusive sobre aquilo que nos permite desejar mais liberdade.

Professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Porto

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