Teste

teste

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A CHINA E OS SEUS DOGMAS...



Porque razão a China tem medo de dissidentes, e, como vimos há dias, também da Internet. A Google, farta de ciber-ataques aos endereços electrónicos de dissidentes, quer abandonar o mercado chinês.

Um regime que governa com base numa ortodoxia não pode fazer concessões sem que a própria crença seja afectada. Esta é a conclusão a que Ian Buruma chega acerca da China, mas na realidade isto é válido para mais gente…

A China condenou o pacífico Liu Xiaobo a 11 anos de prisão. Segundo Ian Buruma um comportamento estranho para um país que devia extravasar confiança em si próprio!

2009 foi para a China um excelente ano. Porque apesar da crise económica continuou a crescer e os EUA continuam bastante endividados em relação à China. A viagem de Obama à China mais parecia os tradicionais pedidos de favores aos antigos imperadores chineses, do que a visita do líder mais poderoso do mundo.

Até mesmo a conferência sobre o clima, em Copenhaga, decorreu precisamente como Pequim queria: todas as tentativas para que países industrializados reduzissem seja o que for falharam, e os americanos é que apanharam com as culpas. Como vemos, os Chineses têm todas as razões para estarem confiantes.

Mas então porque razão é necessário condenar um ex-professor de literatura a 11 anos de prisão?

Há dois anos Liu tomou a iniciativa de escrever uma petição, que foi assinada por milhares de apoiantes, para que haja democracia e liberdade de expressão na China. Liu é um intelectual. Nunca fez apelo a violência. Os seu artigos na Internet são bastante prudentes. E no entanto vai ser preso, porque, ao que parece, incitou o povo a “pôr em causa a soberania do Estado”. A ideia de que Liu esteja em estado de lesar seriamente o regime comunista é absurda. E no entanto o governo acha necessário castigar Liu severamente para intimidar outros. Porquê?

Qual a razão deste desproporcionado medo em relação a ideias divergentes?

O poder do regime parece incontestado, mas talvez não seja essa a sensação que existe no seio do governo. Trata-se de uma questão de legitimidade. Sem legitimidade não há regime que possa governar com auto-confiança.

Há muitas maneiras de obter alguma legitimidade. Ao fim e ao cabo as democracias liberais não existem há muito tempo. A autoridade herdada das casas reais do passado, muitas vezes com o apoio divino, também funcionava. E ditadores como Mugabe arranjam uma forma de legitimidade à custa de uma reputação de combatentes anti-colonialistas.

A China mudou muito nos últimos cem anos, mas num aspecto não: o país continua a ser governado por uma ideia religiosa de política. A legitimidade não deriva de uma política de dar e receber, ou dos necessários compromissos em que se baseia toda a ideia económica de política. O fundamento da política religiosa é uma crença colectiva - ditada de cima - ligada a uma ideologia ortodoxa. Não é preciso ser uma crença em algum Deus. Pode perfeitamente ter uma estrutura secular. Na antiga China era o confucionismo a ortodoxia, e o ideal do estado confucionista é a harmonia absoluta. Se toda a gente acreditar na mesma doutrina, e se se comportar segundo os mesmos padrões morais, os conflitos desaparecem por si só. Nesta utopia o povo é por natureza obediente aos seus dirigentes, como um filho é obediente ao seu pai.

Depois das várias revoluções do século vinte, o confucionismo foi na China substituído pelo comunismo. Os intelectuais chineses sentiram-se atraídos pelo marxismo precisamente porque se baseia em escritos com uma nova moral ortodoxa, mas também porque o dogma moderno, tal como o confucionismo, continha em si uma promessa de perfeita harmonia. Na utopia comunista
todos os conflitos desaparecem no final. A ditadura de Mao Tse-tung era uma mistura de elementos do antigo regime imperial com uma ideologia totalitária moderna, mas também esta ideologia viu o fim dos seus dias.

Mesmo no topo do Partido Comunista Chinês já não se encontram muitos marxistas convictos, e muito menos maoístas. Tudo isto deu origem a um vácuo que nos anos oitenta foi rapidamente preenchido pela ganância, corrupção e cinismo. Desta crise nasceram as manifestações que deram origem à ocupação da praça Tiananmen. Liu Xiaobo era em 1989 um entusiasta apoiante dos estudantes que protestavam contra a corrupção dos governantes, e por mais liberdade. Depois dos manifestantes terem sido massacrados em toda a China, um novo dogma surgiu sob a forma de nacionalismo militante. Só a perpetuação do regime do Partido Comunista poderá garantir o crescimento da China como potência mundial, e assim, e de uma vez por todas, acabar com as humilhações dos últimos dois séculos. A glória da China fica inseparavelmente ligada ao Partido, e aquele que duvida disto não é apenas condenável, é também anti-patriota, ver mesmo anti-chinês.

Visto desta maneira as ideias de Liu Xiaobo são realmente subversivas. Semeiam a dúvida na ortodoxia oficial, e isso mexe com a legitimidade do regime. Assim se explica porque razão o governo em 1989 se recusou a dialogar com os manifestantes, e agora também se recusa a ceder a críticos pacíficos. Isto faz parte da natureza da política religiosa. Um regime que governa com base numa ortodoxia não pode fazer concessões sem que a própria crença seja afectada. Negociações, cedências e compromissos fazem parte de uma ideia económica de política, em que qualquer acordo tem o seu preço.

Isso não quer dizer que uma visão económica de política seja completamente estranha aos chineses. Existe na China da mesma maneira que existe política religiosa nas democracias ocidentais. Mas a ênfase continua a ser a ortodoxia, e a ortodoxia é o reflexo estandardizado contra os críticos e dissidentes. Mas a mudança é possível. Outros países de tradição confucionista, tais como o Japão e a Coreia do Sul, deram o passo em direcção da democracia liberal. O mesmo pode acontecer na China.

Mas é pouco provável que a China seja libertada por pressão exterior. Muitos estrangeiros, entre eles eu, assinaram uma carta de protesto contra a condenação de Liu Xiaobo. Esperemos que Liu tire disto alguma consolação e que os seus adeptos se animem. Mais do que isto não creio que seja possível.

Mas não vai impressionar muito os chineses que se agarram com unhas e dentes ao actual dogma: o nacionalismo chinês. E estes são normalmente, como acontece frequentemente com dogmas, precisamente os chineses mais escolarizados. Talvez que mais pluralismo, estimulado pela Internet, que mesmo para os censores é dificilmente controlável, possa alterar alguma coisa. Porque a sociedade chinesa é tão pouco harmoniosa com a de outros países.

Conflitos de interesses só podem ser resolvidos de forma pacífica no seio de um sistema multipartidário. Isto é o que Liu afirma. Mas até que a China se liberte, pelos próprios chineses, da canga da política religiosa, vai ser difícil os ideais dele criarem raiz. E isso não promete nada de bom para a China, e muito menos para o resto do mundo. O esplendor da China está ligada ao Partido, e quem duvide disso é anti-chinês.

3 comentários:

Eurico Moura disse...

Certamente.
Aplaudo.

o holandês voador disse...

Bom artigo, na linha do que o Buruma nos habituou. É interessante, ainda que não inédita, a abordagem que faz das influências do confucionismo na ideologia maoista, uma adaptação da China ás exigências de uma sociedade rural que tinha feito (ao arrepio da ortodoxia marxista) uma revolução socialista apoiada no campesinato. Também interessante para compreender esta passagem do feudalismo ao "socialismo camponês", é igualmente a análise do Perry Anderson em "Linhagens do Estado Absolutista" (1974) onde este autor britânico desenvolve a teoria do "modo de produção asiático", como estando na base da organização do estado socialista chinês. Penso que nesta obra percebe-se melhor a necessidade que o partido chinês teve de encontrar um modelo que se adaptasse à ideologia implicita no confucionismo.
Hoje, a trinta anos de distância, também se percebe melhor porque é que o actual governo chinês teme uma liberalização "à Garbachov" e aposta num modelo onde coexistem dois sistemas. Resta saber por quanto tempo...

RioDoiro disse...

... a verdade é que, recentemente (tanto quanto me tenha apercebido) a leitura do mail da Google (Gmail) passou de http: para https:

Https: permite cifrar o tráfego entre o servidor (Gmail) e o browser (Opera, Firefox, Internet Explorer, etc) de forma a impossibilitar a consulta dos dados em trânsito pela Internet.

A página onde se introduzia a password já estava, há muito, em https: mas a consulta às mensagens não estava.

Não me surpreenderia que a dor de cotovelo dos chineses tivesse estalado pela implementação do dito mecanismo de privacidade.