O socialismo que não ousa dizer o seu nome
O socialismo tem imensas faces. Na Venezuela, por exemplo, persegue os comerciantes que vendem produtos acima dos preços que os senhores no poder consideram aceitáveis (esta semana, o Imperador Maduro incitou os clientes a invadirem as lojas a fim de obter o "reembolso"). Em Portugal, multa os comerciantes que vendem produtos abaixo dos preços que os senhores no poder consideram aceitáveis (há tempos, a ministra da Agricultura e da UDP em exercício assim procedeu).
A vantagem venezuelana é a sinceridade. Lá, o socialismo, às vezes chamado de "revolução bolivariana", orgulha-se de o ser e é reconhecido como tal. Aqui é envergonhado e passa inexplicavelmente por "neoliberalismo". Dito de outra maneira, o nosso querido Governo disfarça as verdadeiras convicções sob retórica de sinal contrário. É por isso que quando, há dias, o ministro da Economia defendeu a obrigatoriedade de uma disciplina escolar dedicada ao "empreendedorismo", a primeira coisa que apetece é recomendar ao Dr. Pires de Lima e respectivos colegas que a frequentem.
À semelhança de tantos crimes passionais, o amor do Governo pela iniciativa privada é de uma intensidade que termina invariavelmente com o homicídio desta a golpes de faca. Ou de lei: quase em simultâneo às arrebatadas declarações do Dr. Pires de Lima, um secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde anunciou, muito contentinho, que para o ano será proibido fumar em todos, todos, todos os espaços "públicos", conceito que no peculiar "neoliberalismo" indígena inclui os espaços particulares dos restaurantes, bares e discotecas.
Prometo não voltar a discutir os "perigos" do fumo passivo e o direito de cada um a arruinar a sua saúde da forma que entender. Limito-me a notar uma fulminante banalidade, a de que os proprietários dos estabelecimentos em causa deviam decidir sozinhos aquilo de que a casa gasta - e os potenciais clientes apreciariam ou não. Desde que não promova actividades criminosas, género sacrifício de virgens, parece-me natural que o dono de um restaurante, afinal o sujeito que investiu no dito, possa escolher a comida que serve, os comensais que atende e os hábitos que tolera. É tão absurdo abolir o fumo quanto forçar uma casa de pasto minhota a servir chop suey no lugar de sarrabulho. Por azar, sendo o Governo o que finge não ser e o país o que é, esse dia também não tardará. E ninguém se manifestará na rua. Em Portugal, a liberdade, palavra linda, assusta mais do que o enfisema pulmonar.
Em defesa dos trabalhadores
Os trabalhadores que confiam na CGTP para expressar o seu descontentamento deveriam acompanhar com maior assiduidade a forma como o descontentamento dos trabalhadores de outras paragens é tratado nos regimes com que a CGTP simpatiza.
A proeza está longe de ser inédita, mas segundo jornais da Coreia do Sul a vizinha do norte acabou de fuzilar oitenta infelizes por suspeita de subversão das regras da casa. E não, os trabalhadores em causa não fizeram greve, não marcharam aos berros contra o comunismo na Avenida da Liberdade lá do sítio nem organizaram um protesto contra a remoção de "direitos adquiridos" - até porque não têm direito nenhum. Os trabalhadores em causa, que frequentemente ganham um ou dois euros mensais (lá, a classe média aufere cerca de 20 euros e os empresários ricos a exorbitância de 70 euros), acabaram assassinados por crimes tão graves quanto a contemplação de programas televisivos sul-coreanos ou filmes proscritos (essencialmente, todos) e lerem, ou pelo menos possuírem, um exemplar da Bíblia. Alguns viram-se acusados de espalhar pornografia, esse palpitante instrumento da decadência ocidental. De acordo com as fontes citadas, decerto ao serviço do imperialismo americano, milhares de pessoas foram obrigadas a testemunhar as execuções e os familiares das vítimas enviados para campos de concentração (ou reeducação, de modo a poupar os espíritos sensíveis).
Nada disto pretende concluir que os portugueses não se devem manifestar. Apenas que conviria repararem nas companhias em que o fazem. Se, por absurdo, os sonhos mais profundos do Sr. Arménio Carlos se realizassem um dia, para milhões de criaturas a troika haveria de tornar-se uma saudade, e a austeridade uma lembrança de tempos felizes. E se, numa democracia europeia do século xxi, é um bocadinho primário usar a Coreia do Norte como termo de comparação, mais primária é a democracia que torna a comparação legítima.
Casos de miséria
Pelo menos um jornal diário conta a história, presumivelmente trágica, de um rapaz que paga um euro e tal pelo almoço na cantina da escola para depois queixar-se da qualidade da comida e, cúmulo dos cúmulos, de o impedirem de repetir a dose. Os responsáveis da escola negam. O pai do rapaz garante que o filho tirou fotografias com o telemóvel a comprovar os factos. Suspeito que nenhuma foto explicaria o resto, a saber: que espécie de refeição "gourmet" se espera obter a troco de trezentos escudos? Se a refeição é péssima, porque é que os comensais desejam repeti-la? O que faz com telemóvel um adolescente de 14 anos, membro de uma família que quer parecer necessitada? O mistério permanece.
Porém, o mistério não se compara com o da indignação dos juízes portugueses, os quais, com vasta repercussão na imprensa em geral, se queixam dos "ataques" ao Tribunal Constitucional, do número de empregos previstos no novo mapa judiciário e, muito principalmente, dos cortes salariais. As críticas ao TC, órgão de derivação partidária, deveriam constituir uma portentosa trivialidade em democracias adultas. As vagas disponíveis para o cargo são aquelas que, correcta ou erradamente, quem de direito acha indicadas (e a ministra Paula Teixeira da Cruz até jura que serão mais do que as actuais). E os lamentos da classe acerca da quebra nos rendimentos são um insulto a todos os infelizes que ganham misérias ou não ganham nada de nada.
A propósito: se o jornalismo ambiciona a suprema redundância de mostrar que a crise fomenta apertos e casos dramáticos, o jornalismo que esteja à vontade. Mas convém limitar os relatos a situações aflitivas de facto, sob pena de reduzir a aflição a uma anedota e a crise a um pretexto para a rematada estupidez.