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sábado, 26 de maio de 2012

Primavera árabe - Egipto

É conhecida a razão porque os governos árabes têm tido cada vez mais dificuldade em alimentar a população. O eixo da exploração de hidrocarbonetos tem-se deslocado para novas áreas geográficas e novos tipos de combustível deixando o médio oriente em dificuldade para impor o preço do petróleo. Da OPEP já pouco se ouve falar. Em dificuldade para recolherem receitas suficientes para alimentar a sempre crescente população, os respectivos governos ficam sob uma crescente pressão social por exigência de mais dinheiro. Regra geral, os países árabes nada produzem e dependem quase exclusivamente das receitas que o licenciamento da exploração petrolífera lhes proporciona.

As "primaveras" árabes, pintadas em sloganes por democracia, nada significam por aquelas paragens e o resultado tem sido inequívoco
"Tenho que escolher entre me suicidar ou pular num poço cheio de tubarões", compara Rana Gaber, 25 anos, a necessidade de optar entre o representante do antigo regime ou os islâmicos. A jovem revolucionária está decepcionada com os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais no Egito.

Ahmed Schafik, remanescente do regime Mubarak, e Mohammed Mursi Mosi, membro da Irmandade Muçulmana, conseguiram com uma diferença apertada chegar ao segundo turno do pleito, marcado para meados de junho próximo. Com essa os revolucionários não contavam. "A Irmandade Muçulmana vendeu a revolução e Schafik tem sangue nas mãos. Como é que podemos eleger alguém assim?", pergunta Rana.
Entretanto, dos indignácaros do costume e da comunicação social comprometida (quase toda), o silêncio é total. Como sempre, para eles, quanto pior, melhor.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 5




(...)

Louçãs e Fazendas já não são adolescentes, já perderam esse trunfo eleitoral da rebeldia juvenil incitadora das “massas”. E o que propõem, por mais que alteiem a voz, esbracejem e se contorçam histrionicamente na Assembleia ou se multipliquem em exemplos de propaganda política criativa e anticonvencional, cada vez menos encontra audiência e receptividade. Passados os primeiros anos de fulgor e crescimento, começam lentamente a declinar e afundar-se na inocuidade. Mas há uma parte dessa “plêiade” da intelectualidade revolucionária (por força dos tempos, cada vez menos atacada pelo quadradismo mental do “revisionista” PC) cuja influência — embora quase invisível, na medida em que se confunde com a luta pela observação dos três princípios enformadores da civilização ocidental que referi e, por tal, permeia e se insinua naquilo que a ela própria se opõe — é maior e mais representativa, ao mesmo tempo, do que resta da esquerda e daquilo em que ela se tornou: falo do movimento Política XXI.

Desfeita a sovietização no Leste europeu; desmembrada a URSS; extinto o Pacto de Varsóvia; a crista cubana à banda; desvendada a miséria dos territórios em que se aquartelava o socialismo; Pequim a todo vapor, mas agora graças à sua efectiva rendição ideológica disfarçada de admissão de um “segundo sistema”… A esquerda da mentira disfarçada com a farronca, acossada, pouco mais pôde fazer, até hoje, do que defender o vão de escada político e ideológico a que ficou reduzida. Com isso, porém, fez avançar num movimento — só na aparência — paradoxal a esquerda que sempre procurara menosprezar e aviltar: a esquerda dos direitos e liberdades das minorias culturais, do universalismo humanista, do multiculturalismo como tarefa, etc., etc., gerada pelos sixties. Ser a favor da revolução sexual e da liberalização de costumes, ser respeitador das restantes culturas, costumes e religiões e questionar ou contestar, a partir delas o que fosse ocidental, ser militantemente (na rua ou no café, no sofá ou na cama) pelo amor e pela paz no mundo era, nessa época”, para quase todos, ser “de esquerda” ou, pelo menos, “progressista”. Uma “outra esquerda”, entenda-se, expressão que se mantém por deformação das vias do pensamento consequentes ao domínio da vulgata conceptual marxista.

Essa esquerda, contudo, institucionalizara-se já, note-se, nos países nórdicos e anglo-saxónicos e, em geral, na Europa ocidental e nos USA, sobretudo no plano da educação. Foi nesta que os seus teóricos estabeleceram os seus quartéis-generais e criaram os seus ninhos; educar para o Homem Novo, minar o “sistema” pondo a escola ao serviço da contestação foi a estratégia seguida. Do mesmo modo que Marx e Engels, numa época em que lhes era impossível utilizar a imprensa, tanto por falta de meios financeiros e de distribuição como de oportunidades, escolheram as associações populares para disseminar a “fé comunista”, os socialistas de horizontes alargados viraram-se para o ensino, onde mais facilmente pregaram e impuseram a educação “humanista”, virada para os amarfanhados “aprendentes”, alvos de contínua agressão opressiva na sua aprendizagem e desejo de saber. As preocupações democráticas do Ocidente constituíram assim o terreno onde, insinuando questões sofisticamente ligadas à liberdade individual, essa mesma democracia tem vindo a ser atacada a pretexto de melhor a consolidar e alargar por meios pedagógicos. E, o que é pior, frequentemente com as melhores intenções por parte dos eternos “idiotas úteis” de serviço.

Os filhos e os netos do Dr. Benjamin Spock (o tal que hoje se sabe, por portas travessas, arrear nos alunos à surrelfa, de vez em quando) tornaram-se assim a intelectualidade arauta dos três princípios de fé da cultura ocidental que procurei evidenciar, oficiada por um aparelho conceptual de raiz marxista aplicado às questões trazidas ao Ocidente por um desenvolvimento técnico-científico vertiginoso, sem paralelo na História humana, e respectivas mutações económicas e de dinâmica social. Chegara a hora da entrada em cena e do protagonismo da nova esquerda, redentora dos pobres e dos oprimidos, humanista, tolerante: chegara a hora do “politicamente correcto”. O seu mimetismo com a cultura ocidental é de tal maneira eficaz que nem os comunistas de antanho conseguiram furtar-se a vergar-se e obedecer à sua influência.

Louçãs e Fazendas podem desaparecer, portanto, que Política XXI se dissemina por todo o lado, mesmo sem nome mas com nomes, pelo PS, pelo PSD e até pelo CDS. Não precisa mesmo de designação para se manter e sobreviver — sempre, é claro, em eternas guerras de poder e de prestígio como é típico de qualquer organização que, como o marxismo, tenha o modelo de seita. Mantém-se e sobrevive porque venceu a democracia, envenenando-a com as suas próprias armas, garantiu audiência e militância porque lhe formatou a mentalidade e os instrumentos do pensar através da escola, da comunicação social, da cultura. A esquerda já não se acoita agora nas pretensas conquistas económicas, no incomparável desenvolvimento e na fuga dos proletários ao jugo capitalista. A esquerda caminha agora na própria origem com que justifica a sua existência: a da abertura de novas vias que levem ao aparecimento do Homem Novo sem necessidade de qualquer golpe armado — embora, em última instância, não o rejeite. Já não premedita, acaba por ser quase sincera. Tornou-se "natural" porque é cultural.

E, para isso, basta-lhe — para além do não abrandamento do seu discurso tradicional sobre os crimes da burguesia, é claro — passar a defender cada vez mais os direitos das minorias reveladas ou formadas no âmbito das transformações do Ocidente, tratando a excepção no mesmo nível da regra e, no seu discurso, transformando esta numa quase excepção (sem esquecer, o resto do mundo, quase todo ele transformado, da China ao Médio Oriente, passando pela África e pela América Central e do Sul, numa espécie de enorme minoria étnica). Por exemplo, fazendo perspectivar a individualidade sexual como um papel induzido socialmente ou, de outra maneira: eliminando a noção de indivíduo dotado de estrutura e vontade construtora de si e substituindo-a pela do ser humano enquanto mero produto e joguete de forças colectivas a quem, com as melhores intenções, é preciso desbloquear a mente para outros horizontes. Lembro-me sempre, a este propósito, dos costumes de uma tribo da Papuásia, Nova Guiné, referidos pelo Professor José Gabriel Pereira Bastos, do curso de Antropologia da Universidade Nova de Lisboa, para grande choque dos alunos (alguns saíam da sala). Nessa tribo, os homens vivem à parte das mulheres; e raptam os rapazes à medida que eles atingem uma determinada idade, para os levarem para junto de si, justificando-o com a crença de que, para se tornarem adultos fortes e saudáveis, terão que beber bastante esperma.

Mas não só. Na sua ânsia de reinar, a pretexto da libertação de tudo o que possa cheirar ou ser apresentado como opressão com base no preconceito cultural ou outro, aceita discutir, com ar sério e quase sempre composto, coisas como a existência de uma cultura própria de cegos, de surdos ou de coxos, mistificando e relativizando, desse modo, a noção de cultura e dando azo a que possa vir a serem cometidos crimes como o que este casal de lésbicas pretende fazer. Ultrapassa o querer transformar em normalidade o que é excepção, por apelo à dignidade desta: chega a querer dar estatuto de honestidade à discussão sobre se um acto hediondo é, afinal, um acto belo; se um egoísmo criminoso é, antes do mais, um benfeitoria (sem esquecer no que tem resultado a justiça “humanista” e de quanta injustiça, violência e criminosos impunes dela têm resultado). O “humanismo” desta nova esquerda traduz-se num banditismo ideológico instaurador da maior ditadura que a Humanidade poderá vir a conhecer, imensamente superior à que os nazis chegaram a instaurar na Alemanha.

Para terminar, Carmo da Rosa, um apontamento. Que outrem haverá mais paradigmático dessa “nova esquerda” e da sua vitória do que o dirigente máximo do país onde Spock pontificou, do país do “politicamente correcto” instituído até à náusea? Que exemplo maior de hipocrisia e arrogância assente em contradições demagógicas do que o sr. Barack Obama? Obama é a típica esquerda moderna, a esquerda “de sucesso” que ascende ao poder melifluamente como desejo de justiça e liberdade para as minorias (não interessa quais) e que se apoia, não somente nas existentes mas ainda descobrindo outras, novas, nem que para isso, tenha que incentivar a convicção da sua existência. A esquerda que é permissiva para melhor dividir, a pretexto de unir, e assim reinar.

Certamente que Obama não conhecerá este casal de lésbicas surdas (ou já teremos que lhes chamar “inauditivas”?) nem muitas outras existências minoritárias. Ele é, porém, o “progressista” à sombra do qual a esquerda — a“esquerda esclarecida”, entenda-se — cria e consolida o seu domínio. E que, tal como todos os colectivistas da História, tem agido pragmaticamente “à direita”, sempre que a realidade o faz engolir, sem pestanejar, as convicções ideológicas e as medidas a tomar que propagandeou para chegar ao poder — por cá, houve quem, anos atrás, metesse “o socialismo na gaveta”. Porque Obama não é apenas um agente dessa esquerda: isso é, uma vez mais, engolir o messianismo marxista, na sua afirmação de que as condições sociais hão-de gerar sempre alguém que as represente e efective, de que a vontade do indivíduo não é mais do que expressão camuflada do inconsciente colectivo. Não. Obama é um alguém, possuidor de uma vontade e de um interesse próprios; como qualquer de nós, não é um agente meramente passivo, é também activo, pretendeu alcançar o estatuto a que chegou. Obama é, como todo o ser humano, dotado de livre arbítrio e, portanto, responsável.

Ora um dos pontos de conflito que tem havido entre si e o Rio d’Oiro é precisamente o grau de envolvimento de Obama em desmandos vários, permissividade incluída. E argumenta com exemplos de políticos de direita que sancionam e, por vezes, até dão respeitabilidade a essa permissividade. E isso, Carmo da Rosa, é não perceber o que está em jogo.

É claro que se quebraram tabus disparatados e inaceitáveis e que as pessoas que vivem nas sociedades ocidentais onde isso sucedeu passaram a viver já livres deles. Mas por isso mesmo é que a direita de hoje também não é já a direita anteriormente dominante, os seus horizontes alargaram-se à medida das transformações sociais. A direita puritana é folclore, a direita de hoje já se “debocha” com naturalidade e descontracção, tem uma concepção de vida muitíssimo mais aberta. Não usa essa autolibertação insidiosamente como arma política, não manipula as pessoas no que lhes é mais essencial e lhes tempera intimamente a vida para cimentar o seu domínio “teológico”. Argumentar com a existência de líderes liberais ou de direita que, a esse nível (e não só), têm o mesmo comportamento de Obama ou da esquerda “moderna” para afirmar que tal tipo de coisas nada significa é cair no engodo que a esquerda e Obama estenderam ao Ocidente crédulo e incauto, é, como dizia o meu paizinho, “o mesmo que comparar uma vaca com um molho de salsa”.

É a diferença entre assumir novas formas de viver e utilizá-las como arma, transformando-as na teologia de novos salvadores, que mudam a sua adopção lenta, natural e espontânea em versículos jurídico-legais moldadores dos Amanhãs por eles visionados como ninguém e de que serão eternos oficiadores. Em Portugal, Obama não está no poder, mas temos na universidade Boaventura de Sousa Santos, do alto de cuja fronte nos contemplam os séculos vindouros.

Esteja, portanto, descansado. Quando o Rio d’Oiro, o Lidador ou eu próprio, abardinamos com o Obama ou o apontamos directamente, não é por embirração, para fazermos reinar a injustiça cega de um qualquer sectarismo ou para achincalharmos alarve (deverei pedir desculpa por utilizar uma palavra, que, na sua etimologia, significa “árabe”?) ou gratuitamente. É porque Obama é, de facto, alguém muito perigoso para o Ocidente e para a presente e futura luta mundial pela liberdade. Não apenas pelo que faz nem pelo que diz, mas pelo que diz que faz e porque o faz. Porque, parafraseando Baudelaire, quando dizia que a maior vitória do diabo é ter-nos convencido de que não existe, a maior vitória da “esquerda iluminada”, do “progressismo” é ter-nos convencido de que não é (conscientemente ou inconscientemente) esquerda, mas apenas o ideário do cidadão de uma sociedade “verdadeiramente humana”.

Se eu quisesse sintetizar o essencial do que aqui fui pretendendo esclarecer, diria que os três princípios culturais que apontei são, afinal, como que o horizonte para o qual e pelo qual se moveu e se move a cultura ocidental. E sob esse aspecto, mais do que necessários, são para ela vitais. Mas que quando alguns determinam, por vaidade ou por insegurança sobre o que possa estar mais além do que conseguiram ver — o que constitui esse horizonte —, fixando-o essa sua visão como a Visão, isso torna-o, pelo contrário, letal, porque já nada mais há para descobrir do que o que é sabido, nada para fazer senão ruminar o permitido sob a capa da total ou quase total permissão, sob a guarda do juízo do pastor omnisciente. E isto engloba quer os antigos paraísos socialistas — tanto do ponto de vista da economia como do da cultura — quer as disposições legais introduzidas pela esquerda “moderna”. E também os socialismos rivais dos marxistas, como o nazismo e o fascismo.

Termino esta minha resposta, que se alongou ao tornar-se, afinal, já menos para si do que a-pretexto-de-si. Não sei se a ml voltará como o fez — inesperada, mas atenta e oportunamente — ao fim de tanto tempo, a ressurgir das sombras, num momento de aparente maior crispação entre alguns de nós, para falar de um blogue ridículo com ridículas posições de ridículos colaboradores. Não calculo para que se deu a senhora, de súbito, ao trabalho ou ao desfastio: mas, confesso, também não estou por aí além desejoso de o saber. De qualquer modo, não disporei proximamente de muitas oportunidades para responder seja a quem for. É que não tendo, como o Carmo da Rosa, armários para acabar de pintar, estou, no entanto, metido noutras tarefas que, além de me tomarem bastante tempo, me dão um gozo do caraças. E que nada têm a ver com política. Felizmente.

Até logo.

P.S. - A gravura que encima o post fica como o sinal da minha homenagem às cidadãs lésbicas e bissexuais de todo o mundo.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 4


Achei por bem acrescentar ainda alguns aspectos, para que não ficassem dúvidas quanto àquilo a que pretendo chegar. Pelo que dividi o que restava em duas partes, a última das quais publicarei na segunda-feira. Entretanto, irei a Inglaterra para tentar encontrar um determinado árbitro de futebol.
Bom fim-de-semana.

(...)

Quando Álvaro Cunhal publicou A superioridade moral dos comunistas já Freud era, há muito, dono da secção ocidental do Jardim das Delícias, comunistas residentes incluídos. O século XX foi, neste plano, o século da psicanálise, o que, em conjugação com o aumento do número e importância dos papéis desempenhados pelas mulheres e a consequente alteração do estatuto do feminino, alterou por completo a perspectiva das relações entre os sexos e a própria definição do que definiria cada um deles quer individual quer socialmente. Os conceitos psicanalíticos foram, a partir de certa altura, integrados num outro conjunto conceptual emergente no âmbito da luta por emancipações e direitos diversos, sempre, todavia, inseridos num enquadramento dado pelo vocabulário social e histórico do ou com a raiz oitocentista do materialismo dialéctico.

Foi nos trinta anos decorridos entre 1955 e 1985 que teve lugar a formação do contexto no seguimento do qual vivemos hoje. São os trinta anos em que as chamadas tendências sociais minoritárias irrompem no Ocidente como expressão da necessidade das mudanças no modo de viver que se tornavam irreprimíveis. Surgem grupos contestatários do “sistema”: os provos, na Holanda; quase imediatamente, os beatnicks; poucos anos depois, nos USA, o movimento hippie, como consequência da influência de ambos os grupos na chamada beat generation; e, inevitavelmente, dois ou três anos depois, os yippies, do Youth International Party, politicamente ligado ao anarquismo — todos eles declarados pelos marxismos instituídos como movimentos de alienação da juventude fabricados pela CIA para a desmobilizar da "justa luta encabeçada pelos comunistas". É também na segunda metade da década de 50 que, paralelamente à posterior pregação hippie do “make love, not war”, começa a emergir o burguesíssimo movimento swinger, o qual no final dos anos 60 merecia já reportagens em órgãos de informação tão respeitáveis como a Newsweek. E é também nos mesmos anos que a homossexualidade — essa “tristeza”, como a classificava o mesmo Cunhal, nos anos 90 — começa a espreitar dos armários quando não a mostrar-se já orgulhosamente de corpo inteiro. De tudo isto se distanciaram os marxismos dos diferentes países “revolucionários” bem como os partidos comunistas, de diversas obediências, do resto do mundo: homossexualidade, bissexualidade, família comunitária, amor livre e o próprio erotismo eram considerados desvios, doenças da sociedade burguesa.

Lembro-me de haver lido algures que um jornalista de uma revista de Angola (de cujo nome não me recordo agora e onde escrevia gente da craveira do poeta Herberto Hélder), enviado para cobrir a chegada do Homem à lua, voltou mas a falar predominantemente de coisas como… camas de água, inventadas por essa altura e aproveitadas desde logo para muitas mais coisas além de dormir. Além de dar também conta de algo que, visto à distância de mais de 40 anos, adquire contornos interessantíssimos: a orgia sexual colectiva que se terá seguido ao sucesso da missão entre muita gente envolvida no projecto, quase como que numa celebração espontânea da própria espécie. Creio que este exemplo bastará para se conseguir uma imagem da erupção que, neste plano, se deu no Ocidente. Juntamente com as emergentes problematizações ecológicas e à atenção dada às formas espirituais de vida do Oriente, do hinduísmo ao budismo zen — a este último devido sobretudo aos estudos de Alan W. Watts, que integrava o exército americano estacionado no Japão a seguir ao final da guerra.

O Maio de 68 representa e acrescenta algo a tudo isto: a afirmação da existência de uma esquerda “moderna”, de “temas e propostas fracturantes”, para utilizar a terminologia de herdeiros dos soixante-huitards, como o é a parte mais inspiradora da formação do BE. O fascínio oriental chegou também aos “duros” do marxismo (e, não por acaso, aos neo-nazis), com os seus entusiasmos pelo educador-mor das massas, Mao Tsé-Tung e pela “revolução cultural” do “Bando dos 4” no PC chinês, esses “comunistas de manteiga”, como lhes chamara Estaline — agora também “bloquistas”. E nem é preciso sair da recordação da constituição do Bloco para nos apercebermos de outra coisa.

(...)

terça-feira, 24 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 3



(...)

A viabilidade e a verdade do socialismo científico enquanto único sistema político natural ao Homem depende, portanto, da verdade dos princípios, ou seja, da medida em que eles traduzam efectivamente a realidade. O materialismo dialéctico ou materialismo histórico ou marxismo procede, deste modo, ao contrário do que afirma ser: uma ciência; porque o pensamento científico não afirma a existência de algo antes de a provar, sem o que não seria ciência mas doutrina. Não podendo os teóricos do marxismo saltar no tempo para se assegurarem de que a sua análise e previsão são verdadeiras, o marxismo não é mais do que isso: uma doutrina que parte da simplificação conceptual da complexidade do real. E que procura disfarçar essa sua fragilidade conceptual com a complexificação teórica sobre uma evolução social desde os tempos arcaicos até aos nossos dias, para fazer afirmações seguras sobre como ela chegará ao seu termo e considerando esse final como o reencontro da Humanidade perdida consigo própria. No que, como se sabe, para grande embaraço dos marxistas, falhou todas as previsões, já que foi nos países em que a teoria previa uma mais tardia chegada à revolução proletária aqueles onde se instalaram as primeiras ditaduras comunistas.

Daí que Sartre, enquanto militante comunista, haja escandalizado as cúpulas teóricas do socialismo ao dizer que o materialismo dialéctico não tem ponta por onde se lhe pegue, e fosse repescar Hegel para justificar o comunismo pela via do existencialismo  — o que, eliminando a possibilidade da previsão segura, retirava o carácter messiânico à propaganda comunista, para grande irritação do PCF. De facto, o marxismo situa-se ao nível da fé, melhor dizendo: da fezada. É esta a dimensão da “fé socialista”, expressão que, como se pode ler em cartas trocadas entre ambos, Marx e Engels, ambos decidem abandonar por equívoca (cf. O prefácio ao Manifesto do Partido Comunista, publicado pelas Edições Avante!), tanto mais que abastardava o carácter “científico” de que os autores queriam revestir o materialismo dialéctico. Nem é preciso chamar Freud. Mas, para o que interessa no final desta minha resposta, é precisamente Freud que é preciso chamar.

Dizia Rorty, o maior filósofo americano contemporâneo, desde sempre ligado à esquerda dos EUA, que para justificar o desejo que todos temos de sermos decentemente pagos pelo nosso trabalho não é preciso arranjar uma tão complexa justificação como é a que deu Marx. Ou, como diria o diácono Herman: não havia nescheschidade… hmm …hmm. Complexidade essa, para cúmulo, assente em conceitos tão superficiais que pouco resistem a uma análise séria. Mas tais fragilidades do marxismo revelaram-se, afinal como a sua maior força de expansão! É que essa superficialidade preto-no-branco de onde parte depois o rendilhado dialéctico é facilmente absorvível e manejável por qualquer um à saída da adolescência, a época em que todos organizaríamos facilmente o mundo — bastaria que nos dessem o poder para tal, que isto era cá um cortar a direito…!

A disseminação e penetração desses conceitos nos mais diversos sectores das sociedades europeias e norte-americanas, facilitadas e justificadas por via das oscilações, das asneiras e dos desmandos que nelas ocorreram no período de transformação das suas economias desde o final do século XIX, acabaram por as constituir como as referências principais do mapa intelectual do Ocidente. Com as inevitáveis consequências no plano da perspectivação dos problemas que nele surgiram e nas soluções para eles propostas ou adoptadas. Dos jovens intelectuais aos jovens e velhos trabalhadores de menor ou média qualificação, muitos deles injusta e estupidamente afastados, quer do alargamento dos estudos quer do capital que lhes permitiria a dinâmica empresarial que poderiam desenvolver, por uma estrutura social ainda demasiado estratificada, a Oeste o aparelho conceptual da esquerda popularizou-se como ferramenta intelectual de serviço para sucessivas gerações de gente com mais ou menos legítimas aspirações à mudança. O desenvolvimento industrial e tecnológico expandiu-o por todos os continentes.

A esquerda, porém, ao longo do seu percurso histórico, não apenas criou o “caldo cultural” em que vivemos (para cuja existência e influência avassaladora ao nível conceptual e do correspondente raciocínio o Lidador não se cansa de alertar) como, inevitavelmente, se deixou permear pelos acontecimentos e pela evolução social e política decorrentes da segunda e da terceira vagas da industrialização, procurando tratar, com os mesmos conceitos, os novos problemas, procurando apresentar o marxismo como uma teoria, na sua essência, trans-histórica.

É o firmar de uma outra cultura que visa estabelecer, uma cultura de homens por fim livres, aquilo que constitui o terreno em que a esquerda assentará o assumir da sua luta no plano cultural. De início somente empenhada na luta pelo acesso de todos aos bens anteriores e na produção de outros, diferentes, desse tipo, que constituíssem, em simultâneo, instrumentos de luta contra o capitalismo e visões da desejada sociedade nova — a chamada “arte comprometida” com as lutas do “bom povo” — a esquerda foi, progressivamente, geração após geração, sendo posta perante novos problemas decorrentes do processo em curso nas sociedades em que se gerou. Em que se incluíram, a partir de certa altura, não apenas novos dados como outros elementos, até aí estranhos à noção de cultura, que contrariavam muitos dos anteriores.

Na sua A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels faz, no final do último dos três capítulos iniciais, nos quais traça a evolução do conceito de família desde as sociedades arcaicas até ao final do século XIX, uma advertência às gerações seguintes: embora ele considere que a família monogâmica europeia oitocentista constitui o melhor modelo jamais conhecido, o que ele pensava nada valerá face ao que os homens futuros quiserem que seja a sexualidade e a família. Estes três primeiros capítulos, num total de oito em que se divide o texto de Engels, e que constituem metade da obra, foram referidos sumariamente e pela última vez em público por Lenine, num discurso aos estudantes, em 1919 (os restantes cinco estão na base da propaganda oficial dos partidos comunistas de todo o mundo). A revolução bolchevique, aquela que o nosso Mário Castrim considerou como o acontecimento que marcava a saída do Homem da Pré-História, decretou logo após o casamento monogâmico como o único válido nos Amanhãs Canoros da URSS, mesmo que contra as sacrossantas tradições de muitos dos povos que a integraram voluntariamente ou à força.

Porquê? Porque os grandes argumentos dos comunistas e dos revolucionários de todos os cambiantes sempre se basearam muito menos numa estrutura teórica do que na sua superioridade moral. Marx nunca propôs nenhum falanstério, nunca contestou a monogamia enquanto único paradigma moral sexual e familiar: contestava, isso sim, a degradação a que ela estava sujeita pela imoralidade do casamento burguês. Por cá, o Júlio Dantas e os republicanos também fizeram da superioridade moral, ao nível da justiça e da sexualidade, o esteio da sua justificação quanto à necessidade da revolução do 5 de Outubro para derrubar uma monarquia injusta, prepotente e, oh!, em permanente deboche.

Termino amanhã.

(...)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 2




(...)

O mais antigo encontra-se na afirmação de Aristóteles de que “todo o ser humano deseja, por natureza, conhecer”. O que é inegavelmente verdadeiro por simples constatação das características comuns aos indivíduos de uma espécie que, através de um salto qualitativo na evolução do cérebro e em algumas particularidades físicas, foi investido nas funções de assistente de gestão do planeta. 

O que Aristóteles passa por alto, porém (de boa-fé ou convenientemente para o que pretendia com essa afirmação), é algo que se inclui na mesma experiência em que se baseou para formular o princípio referido: que nem todos os seres humanos se empenham de igual modo em obter conhecimentos tanto em extensão como em profundidade, tal como nem sempre se encontrem preocupados por aí além quanto a eventuais erros e injustiças que venham a cometer.

Descartes, já no século XVII, formulou o segundo desses princípios, tentando, ao mesmo tempo, colmatar em parte as falhas de Aristóteles. Define ele a razão, ou bom- senso, como a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, capacidade que se encontra por igual em todos os seres humanos. Se todos erramos, uns mais que outros, nos nossos raciocínios é porque não utilizamos o método correcto, coisa que Descartes procura evitar propondo um, de sua autoria, com base nos procedimentos lógico-matemáticos, do qual já retirara muitos bons resultados. Se aplicarmos rigorosamente esse método, chegaremos à verdade, tal a evidência com que as conclusões a que nos leva se impõem ao nosso espírito. Mas não deixa de fazer notar que ele próprio, apesar de tentar proceder desse modo, também se engana. Porquê? Porque a mesma vontade que nos impele para o conhecimento leva também, pela sua intensidade, a que nos precipitemos e, assim, não observemos os necessários passos a percorrer. Uma questão de excesso de impetuosidade, portanto.

O tempero final veio de Jean-Jacques Rousseau. Para o suíço que escreveu, poucos anos antes da Revolução Francesa, o primeiro tratado da pedagogia humanista na forma de romance, Emílio, o ser humano é igual e originalmente curioso e bom, é um “bom selvagem”. O seu desenvolvimento exige a socialização; mas, se a sociedade em que se desenvolver estiver corrompida pelos vícios e pela imoralidade, ele tornar-se-á tão estúpido, mau e corrupto como essa sociedade. É a sociedade, portanto, que é necessário reformar, educar.

Não havendo maneira de demonstrar a teoria, uma vez que não existe uma experiência social anterior conhecida correspondente a uma “sociedade boa” que lhe sirva de referência e a realidade se apresenta num jogo constituído por uma enormíssima multiplicidade de situações e factores, o que Rousseau diz não ultrapassa uma afirmação sem outro fundamento maior do que a convicção pessoal. É, por assim dizer, uma fé, uma fé claramente mais inserida em horizontes políticos decorrentes dos tempos de mudança que se vivia. Está definitivamente aberto o caminho aos Grandes Reformadores Sociais e aos Grandes Educadores do Povo.

Já agora, a propósito do carácter dessa convicção do “bom selvagem filosofante” é interessante relembrar alguns pormenores da sua vida. Rousseau foi abandonado pelos pais e passou a sua infância com um tio, a quem ficou a dever não apenas a vida mas também uma educação cuidada. O exemplo do tio, contudo, não foi seguido pelo fundador da pedagogia moderna, que abandonou todos os seus filhos na roda. Rousseau, aliás, tinha um carácter tão intratável e sofria de tais distúrbios de personalidade que David Hume, seu grande admirador e amigo, foi obrigado a afastar-se dele. Pelos vistos, a corrupção e a imoralidade sociais fizeram-se sentir mais fortemente sobre o seu carácter do que a acção do pobre tio.

As teorias socialistas, enunciadas num contexto cultural que absorveu até hoje acriticamente a vulgata desses princípios e em meio de um movimento de transformação social em que predominava a ideia de igualitarismo político, justificaram-se, implicitamente, com eles e a partir deles. Com efeito, na ideologia e na propaganda socialistas estão omnipresentes, implícita ou explicitamente, estes pressupostos, sem qualquer necessidade de prova: os seres humanos são igual e naturalmente dinâmicos quanto à disposição para obter conhecimento; todos são capazes de aceder ao topo do saber se forem devidamente incitados ao estudo devidamente planeado, tornando-se assim iguais em capacidades e merecimento; o que impede o paraíso terrestre é, afinal, a sociedade gerada pelo sistema de produção em que assenta o capitalismo, e a sua máquina repressora do povo trabalhador, o Estado. Uma sociedade que só a Revolução Socialista poderia gerar, apoderando-se do Estado (isto, na perspectiva marxista) para, proletarizando-o, o destruir. O pensamento de Hegel, a quem ambas, esquerda e direita, devem os fundamentos filosóficos de raiz e as posteriores derivações com que se ornamentaram, conferiu estrutura final ao ramalhete.

(...)

Da surdez no clítoris - pequena adenda intercalar



CdR:

Já agora, numa rapidinha, e porque poderá haver mais gente para quem o que eu pretendo dizer ainda não é claro.

A intenção altruísta implícita, se não declarada, das lésbicas surdas que pretendem gerar um filho igualmente surdo tem a ver com a sua capacidade para educar uma criança. Sentindo-se incapazes -ou tendo medo de o ser- de a prepararem devidamente num e para um mundo de "normais", isto é, num e para um mundo com uma amplitude potencial de oportunidades e de riscos superior àquela que possuem, tencionam criar mais alguém com esse mesmo handicap. É a bem da criança que o fazem, note, porque qualquer outra poderia ficar prejudicada. Puro altruísmo, alguém duvida?

Se elas pretendessem educar uma criança surda já existente, ainda vá lá. E digo "vá lá" porque, apesar disso, o mundo é predominantemente "normal" e a criança teria que, como todos os outros  — surdos, cegos, coxos, deficientes mentais —  absorvê-lo culturalmente para se poder desenrascar e comunicar nele. Mas pronto...

Um casal de surdos viveu, durante anos, no prédio das traseiras do meu, tiveram uma filha sem qualquer problema sensorial ou outro e educaram-na também sem qualquer dificuldade acrescida. O facto de ela ter saído lésbica, não me parece derivado de um problema educacional  - este exemplo parece uma piada, relativamente ao caso de que estamos a tratar, mas não, é mesmo verdade.

O que se passa com os "educadores religiosos" que pregam e praticam a excisão do clítoris é semelhante. O que eles estão a fazer, na mais sagrada e, portanto, altruísta das missões, é proteger as mulheres, precavendo a possibilidade de elas resvalarem para o pecado e contaminarem com ele a obra divina. De outra maneira, o que eles fazem é moldar o mundo à sua medida, à medida das suas possibilidades, para que esse mundo não lhes fuja ao controlo; não pensam em alargá-lo, mas em limitá-lo, como faz qualquer medroso estúpido. As mulheres têm que comportar-se, ser, à medida da sua compreensão do mundo. Para bem delas, é claro, senão Deus castiga-as e aos outros que lhes permitiram agir contra a Sua imutável e abençoada lei.

Qual é o paralelo? Parece-me evidente. Mas, se tiver estado com atenção às mais recentes tendências da moda, verificou, com certeza, que se reivindica cada vez mais, entre surdos "progressistas", a existência de uma cultura própria assente na deficiência auditiva. Isso não o alerta para nada?

E agora espere mais um pouco pelo que direi a seguir.

domingo, 22 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 1



(foto obtida aqui)

Caríssimo Carmo da Rosa:

As vicissitudes da existência não me permitiram acrescentar mais nada ao único comentário que fiz a este seu post, no qual tecia algumas considerações a respeito deste outro, do Rio d´Oiro, que referenciava, por sua vez, um texto publicado por Pedro Picoito no Cachimbo de Magritte. Fiquei com a impressão, aliás, de ter sido muito pouco claro para si, porque reparei que, logo a seguir, respondeu a uma observação do Godot sobre o que este considerava —e muito bem— o essencial do que eu escrevera (obrigado, Godot, pelo apreço) dizendo que não me dera troco porque não percebera a que propósito vinha isso da excisão do clítoris. Coisa que me pareceu estranha, da sua parte, tanto mais que estou habituado a que procure, como poucos, esclarecer os assuntos que se lhe afigurem nebulosos, e que, por tal, mais me aguçou a vontade de repescar o assunto.

Ora tendo tido hoje maior disponibilidade para me achar “mais pachorrento” (parafraseando o velho Elmano Sadino), dispus-me a despachar o assunto. Só que, como se sabe, as palavras são como as cerejas e tal, e o que era na intenção para meia dúzia de linhas, por muito que eu me esforçasse e tressuasse em contrário, transformou-se numa montanha delas. Achei melhor, assim, publicar o que escrevi em três partes não só pelos danos que o computador causa à visão como também, confesso, porque me faltam para aí dois parágrafos, o jogo do Sporting já começou e eu estou muito longe de ser perfeito. Aqui fica, portanto, a primeira parte da minha resposta.

CdR:

Aumentar intencionalmente a possibilidade de vir gerar um ser humano privado da totalidade dos sentidos de que a espécie desfruta, argumentando com os eventuais limites educacionais que a limitação sensorial impôs a quem o pretende fazer, por querer ter, à viva força, um filho: não haverá muitos exemplos de tão grande monstruosidade de carácter, travestida da mais altruísta das motivações. Nem é difícil detectar nisto o mesmo princípio —teórico e prático— fundante das grandes ditaduras que a humanidade conheceu.

Princípio, aliás, que, de igual modo, serve de justificação à excisão do clítoris, travestida de medida de sanidade religiosa. Trata-se somente de inverter o conhecido “Se não podes com eles, junta-te a eles” num “Se não podes com elas, tira-lhes a pila — que, tirando-lhes o prazer, tiras-lhes o apetite para cuja satisfação tu, sozinho, não venhas, eventualmente, a ser suficiente, e assim terás c… vagina sem concorrência”. Apresente-se o apetite sexual da mulher como devassidão que contraria os preceitos de um Transcendente legislador e punidor e a coisa ganha então uma solidez quase indestrutível. Considerar a possibilidade da sexualidade humana possuir outros contornos e dimensões para além do apreensível e, eventualmente, suportável pelos que determinam a excisão clitoriana (incluindo a bissexualidade feminina), é algo que lhes é apavorante, na medida em que põe em dúvida a sua auto-compreensão.

A razão pela qual, porém, não é feito o paralelo entre o caso relatado e a mutilação genital feminina assenta em dois factores:

- Primeiramente, por a sexualidade se manter no topten das preocupações das sociedades ocidentais. E isto porque, por um lado, durante milhares de anos a consideração do que ela é ou possa constituir tem vindo a ser impedida por motivos semelhantes àqueles que acabei de referir, gerando confusões e a correspondente existência de elementos que nem sempre ajudam a uma visão mais clara e objectiva sobre o sexo e a sua vivência —antes, por vezes, a turvam ou impedem. Em consequência do que, por outro, a sexualidade, em especial a que respeita à do sexo feminino, em conjugação com a afirmação do feminismo, nos seus mais lúcidos e ilúcidos cambiantes, a torna num ponto da maior sensibilidade no que concerne às liberdades.

- Depois, porque a excisão do clítoris é perspectivada como acto de barbarismo, próprio de culturas primitivas, repressivas, que se firmam no obscurantismo das religiões. Enquanto que o casamento homossexual e o direito a educar uma criança dentro dele —por custódia parental, adopção ou geração laboratorial— é entendido como libertação de tabus e combate à repressão do “sistema”, em prol do aparecimento de uma Humanidade nova.

E foi precisamente neste ponto que se originaram os mal-entendidos presentes na caixa de comentários, das quais o Godot (obrigado pelo apreço!) se apercebeu muito bem, ao situar a questão da excisão do clítoris como o essencial da minha resposta, bem como a ligação que ela tem com a esquerda.

Cito, de novo,  um dos grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, completamente esquecido após a sua morte, quase trinta anos atrás, com quase toda a obra por editar, e de quem eu (nessa altura um puto) tive o enorme privilégio de ser amigo, Manuel Grangeio Crespo, num livro que publicou pouco antes das primeiras eleições legislativas pós-25 de Abril: “Revolução Cultural é um pleonasmo: não há outra”. Com efeito, toda a revolução assenta na necessidade de se estar, de se viver de outro modo, mesmo que essa necessidade se apresente, de início, com contornos de menor precisão. O que não tiver tal necessidade por fundamento não passa de um mero golpe de Estado.

Ora a esquerda aponta, desde o seu início, para uma nova cultura, a cultura de uma Humanidade dos Amanhãs que Cantam, proveniente da racionalização da posse e utilização dos meios de produção assim como do consumo dos bens produzidos. A viabilidade e a necessidade dessa cultura baseiam-se, contudo, em princípios insuficientemente demonstrados, mas simpáticos para as tendências sociais dos tempos em que os formularam, ou até em meros postulados (para quem não saiba, figura da Lógica que designa algo não demonstrável, mas que terá que se supor verdadeiro para que todo um conjunto teórico possa ganhar sentido). Todos eles, como não poderia deixar de ser, intrinsecamente relacionados com o ensino e a pedagogia. Vejamos, mais que abreviadamente, aqueles que foram e continuam a ser determinantes, na respectiva sequência histórico-cultural. 


(...)

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Indignados



Joaquim Simões encerrou, há dias, o Portugal e outras touradas. Ontem, enviou-me um email, perguntando-me se estaria interessado em publicar os artigos que Luís Dolhnikoff lhe for enviando até Setembro, data em que abrirá um novo blogue. Dada a qualidade dos textos de Dolhnikoff, que já transcrevi aqui por mais de uma vez, respondi-lhe que sim, que os publicaria. Poucas horas depois, recebi este, e nada poderia vir mais a propósito para fazer reflectir sob este assunto.

INDIGNADOS DE TODA A EUROPA, UNI-VOS!

1. A nova união europeia

Um espectro ronda a Europa: o espectro dos “indignados”. Esse espectro talvez assuste, mas quiçá não devesse, entre outras coisas, porque dele está a nascer uma nova união europeia, enquanto a já velha UE original ameaça definhar. A nova união é a desse mesmo espectro: a união européia dos “indignados”, ou a união dos “indignados” europeus.

Tudo começou em 12 março, quando a “geração à rasca” (abandonada, frustrada, ao-deus-dará), a dos atuais jovens portugueses, saiu às ruas de Lisboa e do Porto para exigir... não se sabe bem o quê. E aqui o espectro que ora ronda a Europa assume afinal ares trágicos, mais especialmente, hamletianos.

Em 15 de maio, em todo caso, foi a vez dos Indignados, com maiúscula, nome da atual juventude espanhola, que ocupou a Porta do Sol em Madri e a praça Catalunha em Barcelona, para exigir...

Então os Aganaktimeni, que vêm a ser os mesmos Indignados, agora em versão grega, no dia 25 de maio, ocuparam a praça Syntagma em Atenas, para exigir... Se não sabem bem o que, ao menos já sabem que querem fazê-lo unidos:


O grego Aryiris Panagopoulos desembarcou anteontem na Espanha com um objetivo: combinar com os colegas espanhóis um "protestaço" simultâneo para hoje nas emblemáticas praças do Sol, de Madri, e Syntagma (da Constituição), de Atenas (Carolina Vila-Nova, “‘As pessoas estão fartas, é isso’, diz manifestante”, Folha de S. Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0506201112.htm).


2. Da indignação

A indignação é uma atitude moral, uma reação da dignidade perante a indignidade, ou da virtude ante o vício, enfim, do certo frente o errado. Em si, por ser moral, ou seja, não pragmática, não leva a resultados políticos. A indignação só pode fazê-lo ao deixar de ser indignação para se tornar outra coisa, não fim, mas origem, causa de um efeito outro, fonte de energia moral para uma ação positivamente política, lançada contra a própria causa original da indignação. Sem isso, a indignação política não é indignação política, pois incapaz de intervenção política. É, de fato, tão somente indignação. Pode levar pessoas às praças, mas não pode levar as praças e suas pessoas para próximo o bastante do poder.

Essa foi a fonte do fracasso da “revolução” de 1968, que afinal se limitou a uma “revolução cultural”, na verdade, uma reforma comportamental facilmente absorvida e servida pelo sempre proteico sistema capitalista. Hoje todos usam jeans e camisetas e ouvem rock’n roll (ou hip hop) e fazem sexo à vontade, nem por isso o mundo deixou de ser, bem, indignante.

Esse é o motivo de a sociedade brasileira jamais conseguir reformas fundamentais. Assim, quando em meio à maré de violência crônica há uma onda especialmente sangrenta, a população, indignada, sempre pede por “paz”, mas jamais exige segurança. Fora uma situação franca de guerra, o que não é apesar de tudo o caso, a paz é um conceito algo abstrato, um tanto existencial, enquanto a segurança pública é um objeto jurídico e um objetivo político. Mas a impotência histórica da pseudocidadania brasileira é incapaz de perceber isso, e de se mover por isso.

Essa é a razão de os movimentos populares da “primavera árabe”, aos quais estão sendo comparados os dos “indignados” europeus, terem dado e não dado certo. As populações árabes têm um primeiro objetivo político claro, o fim da respectiva ditadura. Ao mesmo tempo, ao contrário do que afirmam os crédulos, não há clareza alguma quanto ao objetivo reformista de em seguida construir, no lugar da ditadura derrubada pela praça, uma democracia moderna. Há questões tribais, há a presença tóxica do islã na mentalidade geral, nos hábitos sociais e nas referências legais, há o sectarismo sunita-xiita, há a falta absoluta e absolutamente antidemocrática de cidadania feminina, há um analfabetismo e um atraso generalizados etc. A “primavera árabe” pode caminhar mais rápido do que se imagina para um outono precoce, se não for afinal para um longo e cinzento inverno.

O caso do “indignados” quase unidos da Europa é ainda pior. Pois se 1968 afinal resultou em mudanças comportamentais reais, apesar de jamais ameaçar o status quo político-econômico, se a demanda concreta por segurança em vez do desejo abstrato por paz é uma possibilidade afinal negada aos brasileiros por sua própria ignorância e inépcia políticas, e se a “primavera árabe” ainda não se despetalou de vez, com a atual juventude quase unida e muito indignada do Velho Continente nada parece poder resultar de sua justa indignação, pois ela não passa e talvez não possa passar de indignação. A “geração à rasca” ficaria assim também à rasca de uma ação política minimamente consequente.

3. Os “indignados”

Eles também se chamam, na Espanha, “nini”: “Ni estudia, ni trabaja”. Não estudam, porque já estudaram: em termos históricos, trata-se da geração mais bem preparada na maioria dos países europeus. Nem por isso trabalham, porque não há trabalho: em Portugal, o desemprego atinge 28% dos indivíduos entre 15 e 25 anos; na Espanha, inacreditáveis 45%; na Grécia, 35%. Quase a metade num caso, um terço nos demais. E aqueles que porventura, ou por desventura, ainda têm trabalho, normalmente não trabalham bem, pois estão ou em estágios precários, ou em setores de serviço como o turismo, apesar de formados em profissões muito distintas, em mais de um sentido.

Daí as reivindicações dos “indignados”: reformas políticas (a despeito de ninguém saber exatamente quais), mais assistência social, mais trabalhos mais dignos, menos precários e de maiores salários.

Tudo muito bem. Tudo muito certo. Tudo muito digno. Mas apesar disso completamente incerto, e mais do que isso, improvável, e no limite, impossível.

São vários os motivos, e vão dos estruturais, como o envelhecimento da população – com sua pressão sobre os benefícios sociais – e a competição dos emergentes, aos conjunturais, como a crise de 2008-2009 e as dívidas dos países europeus do sul. Provavelmente não há, então, como aumentar a assistência social, mas fortíssimas pressões para contê-la ainda mais. Trabalhos menos precários e salários menos precarizantes, por outro lado, no sistema capitalista, passam pela regulação política do mercado, sim, mas igualmente pela geração de riqueza pelo mesmo mercado. A riqueza europeia não é pouca, de fato. Mas até por isso, também não é pouca a dívida de vários países. Pode-se, politicamente, questioná-la. Mas não se pode, economicamente, não-equacioná-la.

Trata-se de um dilema afinal advindo da vitória histórica do reformismo europeu, ao lado da derrota histórica da Revolução mundial.

4. A grande confusão contemporânea

Com o fracasso da última, a alternativa de poder ao capitalismo deixou de existir no horizonte do futuro histórico concebível. Com o sucesso do primeiro, o capitalismo dickensiano do laissez-faire seculodezonovista, com seus salários de fome, suas crianças servilizadas, suas jornadas de 12 horas diárias, suas semanas de setes dias e sua total ausência de direitos trabalhistas deixou de existir para dar lugar ao Estado de bem-estar, em que o capital é obrigado a reconhecer direitos fundamentais do trabalho, o qual, a partir daí, passa a lutar diretamente também por uma maior participação na própria riqueza gerada. O que por sua vez aumenta o nível básico de demanda da economia, e portanto o da oferta, e por fim o tamanho do mercado interno, e assim também da riqueza geral do país, num círculo materialmente virtuoso.

Tudo isso é história em terras europeias ocidentais. A juventude europeia atual não vive como a juventude europeia do tempo de Dickens. Nem do tempo de Marx, não por acaso o mesmo: pois o capitalismo dickensiano era a própria razão de ser do marxismo. Porém sua reforma vingou, enquanto a Revolução feneceu. E, acrescente-se, cada uma por mérito e demérito próprios (o fenecimento histórico da Revolução não se deu pela vitalidade histórica das reformas).

A discussão parece girar aqui em círculos, assim como as multidões nas praças europeias. A indignação da juventude europeia se dá, em suma, fundamentalmente por falta de trabalho e falta de salários. Parece a mesmas coisa, mas não é. A falta de salários dignos leva ao empobrecimento material, a falta de trabalhos dignos leva ao empobrecimento existencial. A atual juventude europeia então se indigna por muito boas razões. Mas não sabe se a causa e/ou a solução é política, econômica ou político-econômica.

Talvez seja a última, mas há a possibilidade de ser, apesar disso, fundamentalmente a segunda, incluindo a existência da moeda única européia... Em parte talvez seja por haver Estado de menos, como no caso da pouca regulamentação do mercado internacional de capitais, fonte da crise de derivativos de 2008. Mas em parte talvez seja por haver Estado demais, como em qualquer comparação entre o pujante capitalismo europeu e o sempre mais pujante capitalismo norte-americano...

Ninguém sabe ao certo. É afinal por não se saber, e talvez por não se poder saber nada ao certo que os jovens europeus se indignam, e se indignam apenas. Se não repropõe a Revolução, tampouco demandam por reformas substanciais e consubstanciáveis, como as famosas manifestações do fim do século 19 pela jornada de oito horas. Pode-se cortar a jornada de trabalho por decreto. Mas não se pode, pelas leis próprias da economia de mercado, aumentar por decreto os salários, ainda que se possa estabelecer por decreto um salário mínimo, não por acaso uma conquista pós-dickensiana básica. Mas não se trata agora de salário mínimo, mas de salários dignos. Porém o Estado só parece poder criá-los em situações de enfraquecimento extremo do mercado, como no New Deal rooseveltiano pós Grande Depressão. Mas neste caso, a “dignidade” dos trabalhos e dos salários estatais é relativa à indignidade extrema da miséria generalizada. Nada disso contempla a atual situação europeia.

O que pedem os “indignados” europeus é, apesar de tudo, bastante claro. Mas completamente obscuro, por outro lado, é o que eles podem. E não por ignorância política, como as “massas” que seriam guiadas pela “vanguarda” iluminada da Revolução rumo ao Futuro. Mas pela pura e simples inexistência de qualquer projeto político, diga-se, político-econômico, reformista minimamente consistente, uma das marcas principais, aliás, da grande confusão contemporânea.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Campanha de T-Shirts


President Reagan embodied conservative values and patriotism. In February of 2011 we celebrated 100 years since Reagan's birth. The 40th President of the United States has left a legacy as one of the greatest Presidents in American History. Today, we ask you to consider...


What Would Reagan Do?
Here are just a few of Reagan's memorable quotes:

"Freedom is never more than one generation away from extinction."

"Government is like a baby. An alimentary canal with a big appetite at one end and no responsibility at the other."

Welfare's purpose should be to eliminate, as far as possible, the need for its own existence."

"Government is not the solution to our problem; government is the problem."

terça-feira, 5 de abril de 2011

Um texto "a quente"...


... de Luís Dolhnikoff, transcrito daqui:

MAS POR QUE NÃO SE PODE QUEIMAR O CORÃO?

No dia 11 de setembro de 2010, um pastor evangélico norte-americano anunciou que queimaria 200 exemplares do Corão, para lembrar a ligação do islã com a queima do World Trade Center em 2001, e a morte de 3000 inocentes. Houve reações planetárias. Da Casa Branca ao Vaticano, passando pela Interpol e o comandante norte-americano no Afeganistão, todos pediram ao pastor que recuasse, porque isso levaria a reações violentas de fanáticos muçulmanos e daria munição a terroristas islâmicos. De fato, houve inúmeras manifestações no mundo islâmico. Incomparavelmente maiores e mais contundentes, em sua quantidade e em sua indignação, do que aquelas registradas no próprio dia 11 de setembro de 2001. Para o mundo muçulmano, parece, queimar edifícios (ao menos edifícios ocidentais) é menos grave e ofensivo do que queimar livros, ou ao menos, exemplares do Corão.

Eis que agora o mesmo pastor volta à carga (ou às chamas) e, mais modesto, queima não 200, mas um exemplar do Corão. Em reação, fanáticos muçulmanos no Afeganistão invadem uma missão da ONU e matam por linchamento nove funcionários. Além dos assassinatos vis, há inúmeras manifestações de condenação violenta da queima do livro, tanto por autoridades políticas do mundo muçulmano quanto do Ocidente, além de autoridades religiosa islâmicas. As manifestações de repúdio à queima são maiores e mais frequentes, ou ao menos mais audíveis, do que a condenação aos assassinatos.

Qual o problema, porém, de se queimar o Corão?

Não se trata, em todo caso, de algo semelhante aos antecedentes mais célebres, os autos-de-fé medievais, em que a Igreja queimava livros proibidos, ou seus equivalentes nazistas: porque estes eram atos de exercício do poder político, no contexto da censura oficial a esses mesmos livros. Tampouco é semelhante a famosos e infames atos históricos de barbarismo, como o do

comandante árabe que no ano de 642, depois de ter entrado em Alexandria [até então uma cidade cristã], mandou que todos os livros da grande biblioteca fossem queimados. O que está nela e também no Corão, teria dito, não precisa ser conservado; o que está nela e não está no Corão, não serve para nada (D. J. Struik, “Por que estudar a história da matemática”, in Ruy Gama (org.), História da técnica e da tecnologia, São Paulo, Edusp, 1985, p. 191).

Qual é então, afinal, o problema de se queimar o Corão? Tenho um exemplar do Corão na minha biblioteca (Alcorão Sagrado, trad. Samir El Hayek, São Paulo, Marsam, 2001). Se um dia eu decidir me desfazer dele, não posso, portanto, jogá-lo no lixo? Principalmente se decidir queimar nesse dia o meu lixo? Ou seja, o que eu decidir fazer ou não com o exemplar do Corão de minha propriedade, que faz parte, com o resto dos meus livros, da minha biblioteca particular, diz respeito ao islã em geral e aos muçulmanos em particular?

Do ponto de vista islâmico, surpreendentemente, sim, porque o islã não conhece, ou não reconhece, a separação entre vida religiosa e vida civil, portanto, entre a esfera pública e a privada, marcas definidoras da modernidade ocidental. Por isso, preciso tomar cuidado com o que faço com meu próprio exemplar do Corão em minha casa, assim como uma mulher não pode fazer com o seu próprio corpo o que queira (inclusive escolher o modo de se vestir). Por isso, também, o islã se comporta, como regra, como um corpo estranho na sociedade aberta ao estilo ocidental: pois o fundamento dela é a lei civil, que além de laica, tem como objetivo primordial a defesa do indivíduo e de sua liberdade individual, inclusive contra ações do próprio Estado, que dirá das religiões.

Quando eu era mais jovem, vi muita gente enrolar cigarros de maconha em páginas da Bíblia. Porque o famoso papel-bíblia, por sua finura, servia como um substituto palatável ao papel de cigarro, quando este faltava. Mas além do aspecto pragmático, havia também no gesto uma clara dimensão cultural, ou melhor, contracultural: pois ao ato de se consumir uma substância ilícita que alterava a consciência se acrescentava a queima de páginas das Escrituras sagradas. A soma da cena era, em suma, a afirmação de que não há nada mais sagrado do que a própria liberdade individual.

A sacralidade da liberdade individual versus a sacralidade da religião: na história ocidental, a modernidade é, de certa forma, o resultado da vitória sócio-político-cultural da primeira sobre a segunda, a partir do fim da Idade Média, marcada pela predominância do poder da Igreja, limado e eliminado com a ascensão do laicismo republicano e da sociedade aberta. No mundo islâmico, a sacralidade da religião ainda não foi historicamente posta em xeque. Daí ela ser uma questão política e social, e não meramente da esfera privada. Daí a liberdade individual, como a de manifestação antirreligiosa, poder ser vista como afronta à religião, quando, na verdade, é a religião não-reformada, não-modernizada e não-privatizada que afronta a liberdade individual e a modernidade.

A destruição de um livro por um indivíduo (assim como de uma bandeira), como manifestação de opinião pessoal ou ato performático de qualquer tipo, é um direito individual inalienável, indiscutível. “Comprar” os argumentos religiosos, de que se trata de afronta à religião, e que por isso seria condenável, é questionar a liberdade de manifestação. Não por não se tratar de uma afronta à religião: mas porque se pode, sim, afrontar religiões, assim como se pode afrontar qualquer sistema de ideias, ou seja, questioná-las. Religiões não são indivíduos, são crenças, e crenças são objetos perfeitos de questionamento no embate das ideias. Daí decorre que o outro argumento, de que tais atos incitam o ódio religioso e mesmo racial, é falso. Em primeiro lugar, nada aí de “racial”. Muçulmanos não são uma “raça”. Em segundo lugar, o que na verdade incita o ódio religioso é a própria religião, não seus questionamentos. Ou seja, é a impermeabilidade das religiões e dos religiosos ao questionamento, manifestada por reações de ódio a esses mesmos questionamentos, o que alimenta e realimenta o ódio religioso, e esse ódio se volta afinal contra a liberdade expressão, que é a liberdade de questionamento.

O assassinato, por outro lado, principalmente o movido por ódio (no caso, o ódio religioso) é que se constituí aqui o único e verdadeiro crime – um crime vil, infame, indefensável, que deve ser condenado do modo mais claro e inquestionável possível.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Da liberdade de movimentos na "união" europeia.


Taxa de um euro sobre passageiros valeria 12,7 milhões. Só falta "taxar" o peido.


A Associação de Turismo de Lisboa (ATL), entidade presidida pelo autarca lisboeta António Costa, pretende cobrar aos turistas uma sobretaxa sobre as dormidas em hotéis e pensões da cidade, e também sobre todas as entradas na capital, seja por via aérea, fluvial ou ferroviária.

A proposta foi apresentada pela ATL à Associação da Hotelaria de Portugal (AHP), que se opôs de imediato, por considerar que as taxas iriam "arruinar o negócio do turismo". A receita, só na taxa de chegadas, pode chegar aos 13 milhões de euros. Nas dormidas o valor seria bastante superior.

A taxa, que varia entre 20 cêntimos para as pensões e 1,90€ nos hotéis de cinco estrelas, será acrescentada ao preço de tabela diário da dormida. A outra taxa, de chegada, tem como finalidade cobrar um euro a cada turista que entre na cidade, independentemente do meio que use, e "logo que este desembarque", acrescenta o delegado.