Teste

teste
Mostrar mensagens com a etiqueta Minorias. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Minorias. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 10 de maio de 2012

O preço do pugresso


Aqui:

Poucas horas depois de ter anunciado o seu apoio ao casamento gay, Barack Obama enviou um email aos seus apoiantes no qual explicou, detalhadamente, o porquê daquele anúncio, apelando no fim para que todos contribuam com doações para a campanha.
Por um lado, o Presidente americano, que procura ser reeleito no dia 6 de Novembro, explicou que acredita que os casais do mesmo sexo devem ter direito a casar-se.
"Sempre julguei que os gays e lésbicas deviam ser tratados com justiça. Durante anos, fui relutante em usar o termo casamento devido às poderosas tradições que evoca. Mas depois percebi que para os casais homossexuais negar-lhes o direito a casarem-se é considerá-los aos seus olhos, aos olhos dos seus filhos, familiares e amigos cidadãos de segunda", lê-se no comunicado.
A explicação prolongou-se por mais alguns parágrafos.
No final, Barack Obama pede aos apoiantes que, caso concordem com ele, que se juntem à campanha democrata. "Mais de 1,9 milhões de americanos como você ajudam a mover esta campanha. Se puder, faça uma doação hoje", pediu o Presidente americano.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 4


Achei por bem acrescentar ainda alguns aspectos, para que não ficassem dúvidas quanto àquilo a que pretendo chegar. Pelo que dividi o que restava em duas partes, a última das quais publicarei na segunda-feira. Entretanto, irei a Inglaterra para tentar encontrar um determinado árbitro de futebol.
Bom fim-de-semana.

(...)

Quando Álvaro Cunhal publicou A superioridade moral dos comunistas já Freud era, há muito, dono da secção ocidental do Jardim das Delícias, comunistas residentes incluídos. O século XX foi, neste plano, o século da psicanálise, o que, em conjugação com o aumento do número e importância dos papéis desempenhados pelas mulheres e a consequente alteração do estatuto do feminino, alterou por completo a perspectiva das relações entre os sexos e a própria definição do que definiria cada um deles quer individual quer socialmente. Os conceitos psicanalíticos foram, a partir de certa altura, integrados num outro conjunto conceptual emergente no âmbito da luta por emancipações e direitos diversos, sempre, todavia, inseridos num enquadramento dado pelo vocabulário social e histórico do ou com a raiz oitocentista do materialismo dialéctico.

Foi nos trinta anos decorridos entre 1955 e 1985 que teve lugar a formação do contexto no seguimento do qual vivemos hoje. São os trinta anos em que as chamadas tendências sociais minoritárias irrompem no Ocidente como expressão da necessidade das mudanças no modo de viver que se tornavam irreprimíveis. Surgem grupos contestatários do “sistema”: os provos, na Holanda; quase imediatamente, os beatnicks; poucos anos depois, nos USA, o movimento hippie, como consequência da influência de ambos os grupos na chamada beat generation; e, inevitavelmente, dois ou três anos depois, os yippies, do Youth International Party, politicamente ligado ao anarquismo — todos eles declarados pelos marxismos instituídos como movimentos de alienação da juventude fabricados pela CIA para a desmobilizar da "justa luta encabeçada pelos comunistas". É também na segunda metade da década de 50 que, paralelamente à posterior pregação hippie do “make love, not war”, começa a emergir o burguesíssimo movimento swinger, o qual no final dos anos 60 merecia já reportagens em órgãos de informação tão respeitáveis como a Newsweek. E é também nos mesmos anos que a homossexualidade — essa “tristeza”, como a classificava o mesmo Cunhal, nos anos 90 — começa a espreitar dos armários quando não a mostrar-se já orgulhosamente de corpo inteiro. De tudo isto se distanciaram os marxismos dos diferentes países “revolucionários” bem como os partidos comunistas, de diversas obediências, do resto do mundo: homossexualidade, bissexualidade, família comunitária, amor livre e o próprio erotismo eram considerados desvios, doenças da sociedade burguesa.

Lembro-me de haver lido algures que um jornalista de uma revista de Angola (de cujo nome não me recordo agora e onde escrevia gente da craveira do poeta Herberto Hélder), enviado para cobrir a chegada do Homem à lua, voltou mas a falar predominantemente de coisas como… camas de água, inventadas por essa altura e aproveitadas desde logo para muitas mais coisas além de dormir. Além de dar também conta de algo que, visto à distância de mais de 40 anos, adquire contornos interessantíssimos: a orgia sexual colectiva que se terá seguido ao sucesso da missão entre muita gente envolvida no projecto, quase como que numa celebração espontânea da própria espécie. Creio que este exemplo bastará para se conseguir uma imagem da erupção que, neste plano, se deu no Ocidente. Juntamente com as emergentes problematizações ecológicas e à atenção dada às formas espirituais de vida do Oriente, do hinduísmo ao budismo zen — a este último devido sobretudo aos estudos de Alan W. Watts, que integrava o exército americano estacionado no Japão a seguir ao final da guerra.

O Maio de 68 representa e acrescenta algo a tudo isto: a afirmação da existência de uma esquerda “moderna”, de “temas e propostas fracturantes”, para utilizar a terminologia de herdeiros dos soixante-huitards, como o é a parte mais inspiradora da formação do BE. O fascínio oriental chegou também aos “duros” do marxismo (e, não por acaso, aos neo-nazis), com os seus entusiasmos pelo educador-mor das massas, Mao Tsé-Tung e pela “revolução cultural” do “Bando dos 4” no PC chinês, esses “comunistas de manteiga”, como lhes chamara Estaline — agora também “bloquistas”. E nem é preciso sair da recordação da constituição do Bloco para nos apercebermos de outra coisa.

(...)

terça-feira, 24 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 3



(...)

A viabilidade e a verdade do socialismo científico enquanto único sistema político natural ao Homem depende, portanto, da verdade dos princípios, ou seja, da medida em que eles traduzam efectivamente a realidade. O materialismo dialéctico ou materialismo histórico ou marxismo procede, deste modo, ao contrário do que afirma ser: uma ciência; porque o pensamento científico não afirma a existência de algo antes de a provar, sem o que não seria ciência mas doutrina. Não podendo os teóricos do marxismo saltar no tempo para se assegurarem de que a sua análise e previsão são verdadeiras, o marxismo não é mais do que isso: uma doutrina que parte da simplificação conceptual da complexidade do real. E que procura disfarçar essa sua fragilidade conceptual com a complexificação teórica sobre uma evolução social desde os tempos arcaicos até aos nossos dias, para fazer afirmações seguras sobre como ela chegará ao seu termo e considerando esse final como o reencontro da Humanidade perdida consigo própria. No que, como se sabe, para grande embaraço dos marxistas, falhou todas as previsões, já que foi nos países em que a teoria previa uma mais tardia chegada à revolução proletária aqueles onde se instalaram as primeiras ditaduras comunistas.

Daí que Sartre, enquanto militante comunista, haja escandalizado as cúpulas teóricas do socialismo ao dizer que o materialismo dialéctico não tem ponta por onde se lhe pegue, e fosse repescar Hegel para justificar o comunismo pela via do existencialismo  — o que, eliminando a possibilidade da previsão segura, retirava o carácter messiânico à propaganda comunista, para grande irritação do PCF. De facto, o marxismo situa-se ao nível da fé, melhor dizendo: da fezada. É esta a dimensão da “fé socialista”, expressão que, como se pode ler em cartas trocadas entre ambos, Marx e Engels, ambos decidem abandonar por equívoca (cf. O prefácio ao Manifesto do Partido Comunista, publicado pelas Edições Avante!), tanto mais que abastardava o carácter “científico” de que os autores queriam revestir o materialismo dialéctico. Nem é preciso chamar Freud. Mas, para o que interessa no final desta minha resposta, é precisamente Freud que é preciso chamar.

Dizia Rorty, o maior filósofo americano contemporâneo, desde sempre ligado à esquerda dos EUA, que para justificar o desejo que todos temos de sermos decentemente pagos pelo nosso trabalho não é preciso arranjar uma tão complexa justificação como é a que deu Marx. Ou, como diria o diácono Herman: não havia nescheschidade… hmm …hmm. Complexidade essa, para cúmulo, assente em conceitos tão superficiais que pouco resistem a uma análise séria. Mas tais fragilidades do marxismo revelaram-se, afinal como a sua maior força de expansão! É que essa superficialidade preto-no-branco de onde parte depois o rendilhado dialéctico é facilmente absorvível e manejável por qualquer um à saída da adolescência, a época em que todos organizaríamos facilmente o mundo — bastaria que nos dessem o poder para tal, que isto era cá um cortar a direito…!

A disseminação e penetração desses conceitos nos mais diversos sectores das sociedades europeias e norte-americanas, facilitadas e justificadas por via das oscilações, das asneiras e dos desmandos que nelas ocorreram no período de transformação das suas economias desde o final do século XIX, acabaram por as constituir como as referências principais do mapa intelectual do Ocidente. Com as inevitáveis consequências no plano da perspectivação dos problemas que nele surgiram e nas soluções para eles propostas ou adoptadas. Dos jovens intelectuais aos jovens e velhos trabalhadores de menor ou média qualificação, muitos deles injusta e estupidamente afastados, quer do alargamento dos estudos quer do capital que lhes permitiria a dinâmica empresarial que poderiam desenvolver, por uma estrutura social ainda demasiado estratificada, a Oeste o aparelho conceptual da esquerda popularizou-se como ferramenta intelectual de serviço para sucessivas gerações de gente com mais ou menos legítimas aspirações à mudança. O desenvolvimento industrial e tecnológico expandiu-o por todos os continentes.

A esquerda, porém, ao longo do seu percurso histórico, não apenas criou o “caldo cultural” em que vivemos (para cuja existência e influência avassaladora ao nível conceptual e do correspondente raciocínio o Lidador não se cansa de alertar) como, inevitavelmente, se deixou permear pelos acontecimentos e pela evolução social e política decorrentes da segunda e da terceira vagas da industrialização, procurando tratar, com os mesmos conceitos, os novos problemas, procurando apresentar o marxismo como uma teoria, na sua essência, trans-histórica.

É o firmar de uma outra cultura que visa estabelecer, uma cultura de homens por fim livres, aquilo que constitui o terreno em que a esquerda assentará o assumir da sua luta no plano cultural. De início somente empenhada na luta pelo acesso de todos aos bens anteriores e na produção de outros, diferentes, desse tipo, que constituíssem, em simultâneo, instrumentos de luta contra o capitalismo e visões da desejada sociedade nova — a chamada “arte comprometida” com as lutas do “bom povo” — a esquerda foi, progressivamente, geração após geração, sendo posta perante novos problemas decorrentes do processo em curso nas sociedades em que se gerou. Em que se incluíram, a partir de certa altura, não apenas novos dados como outros elementos, até aí estranhos à noção de cultura, que contrariavam muitos dos anteriores.

Na sua A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels faz, no final do último dos três capítulos iniciais, nos quais traça a evolução do conceito de família desde as sociedades arcaicas até ao final do século XIX, uma advertência às gerações seguintes: embora ele considere que a família monogâmica europeia oitocentista constitui o melhor modelo jamais conhecido, o que ele pensava nada valerá face ao que os homens futuros quiserem que seja a sexualidade e a família. Estes três primeiros capítulos, num total de oito em que se divide o texto de Engels, e que constituem metade da obra, foram referidos sumariamente e pela última vez em público por Lenine, num discurso aos estudantes, em 1919 (os restantes cinco estão na base da propaganda oficial dos partidos comunistas de todo o mundo). A revolução bolchevique, aquela que o nosso Mário Castrim considerou como o acontecimento que marcava a saída do Homem da Pré-História, decretou logo após o casamento monogâmico como o único válido nos Amanhãs Canoros da URSS, mesmo que contra as sacrossantas tradições de muitos dos povos que a integraram voluntariamente ou à força.

Porquê? Porque os grandes argumentos dos comunistas e dos revolucionários de todos os cambiantes sempre se basearam muito menos numa estrutura teórica do que na sua superioridade moral. Marx nunca propôs nenhum falanstério, nunca contestou a monogamia enquanto único paradigma moral sexual e familiar: contestava, isso sim, a degradação a que ela estava sujeita pela imoralidade do casamento burguês. Por cá, o Júlio Dantas e os republicanos também fizeram da superioridade moral, ao nível da justiça e da sexualidade, o esteio da sua justificação quanto à necessidade da revolução do 5 de Outubro para derrubar uma monarquia injusta, prepotente e, oh!, em permanente deboche.

Termino amanhã.

(...)

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 2




(...)

O mais antigo encontra-se na afirmação de Aristóteles de que “todo o ser humano deseja, por natureza, conhecer”. O que é inegavelmente verdadeiro por simples constatação das características comuns aos indivíduos de uma espécie que, através de um salto qualitativo na evolução do cérebro e em algumas particularidades físicas, foi investido nas funções de assistente de gestão do planeta. 

O que Aristóteles passa por alto, porém (de boa-fé ou convenientemente para o que pretendia com essa afirmação), é algo que se inclui na mesma experiência em que se baseou para formular o princípio referido: que nem todos os seres humanos se empenham de igual modo em obter conhecimentos tanto em extensão como em profundidade, tal como nem sempre se encontrem preocupados por aí além quanto a eventuais erros e injustiças que venham a cometer.

Descartes, já no século XVII, formulou o segundo desses princípios, tentando, ao mesmo tempo, colmatar em parte as falhas de Aristóteles. Define ele a razão, ou bom- senso, como a capacidade de distinguir o verdadeiro do falso, capacidade que se encontra por igual em todos os seres humanos. Se todos erramos, uns mais que outros, nos nossos raciocínios é porque não utilizamos o método correcto, coisa que Descartes procura evitar propondo um, de sua autoria, com base nos procedimentos lógico-matemáticos, do qual já retirara muitos bons resultados. Se aplicarmos rigorosamente esse método, chegaremos à verdade, tal a evidência com que as conclusões a que nos leva se impõem ao nosso espírito. Mas não deixa de fazer notar que ele próprio, apesar de tentar proceder desse modo, também se engana. Porquê? Porque a mesma vontade que nos impele para o conhecimento leva também, pela sua intensidade, a que nos precipitemos e, assim, não observemos os necessários passos a percorrer. Uma questão de excesso de impetuosidade, portanto.

O tempero final veio de Jean-Jacques Rousseau. Para o suíço que escreveu, poucos anos antes da Revolução Francesa, o primeiro tratado da pedagogia humanista na forma de romance, Emílio, o ser humano é igual e originalmente curioso e bom, é um “bom selvagem”. O seu desenvolvimento exige a socialização; mas, se a sociedade em que se desenvolver estiver corrompida pelos vícios e pela imoralidade, ele tornar-se-á tão estúpido, mau e corrupto como essa sociedade. É a sociedade, portanto, que é necessário reformar, educar.

Não havendo maneira de demonstrar a teoria, uma vez que não existe uma experiência social anterior conhecida correspondente a uma “sociedade boa” que lhe sirva de referência e a realidade se apresenta num jogo constituído por uma enormíssima multiplicidade de situações e factores, o que Rousseau diz não ultrapassa uma afirmação sem outro fundamento maior do que a convicção pessoal. É, por assim dizer, uma fé, uma fé claramente mais inserida em horizontes políticos decorrentes dos tempos de mudança que se vivia. Está definitivamente aberto o caminho aos Grandes Reformadores Sociais e aos Grandes Educadores do Povo.

Já agora, a propósito do carácter dessa convicção do “bom selvagem filosofante” é interessante relembrar alguns pormenores da sua vida. Rousseau foi abandonado pelos pais e passou a sua infância com um tio, a quem ficou a dever não apenas a vida mas também uma educação cuidada. O exemplo do tio, contudo, não foi seguido pelo fundador da pedagogia moderna, que abandonou todos os seus filhos na roda. Rousseau, aliás, tinha um carácter tão intratável e sofria de tais distúrbios de personalidade que David Hume, seu grande admirador e amigo, foi obrigado a afastar-se dele. Pelos vistos, a corrupção e a imoralidade sociais fizeram-se sentir mais fortemente sobre o seu carácter do que a acção do pobre tio.

As teorias socialistas, enunciadas num contexto cultural que absorveu até hoje acriticamente a vulgata desses princípios e em meio de um movimento de transformação social em que predominava a ideia de igualitarismo político, justificaram-se, implicitamente, com eles e a partir deles. Com efeito, na ideologia e na propaganda socialistas estão omnipresentes, implícita ou explicitamente, estes pressupostos, sem qualquer necessidade de prova: os seres humanos são igual e naturalmente dinâmicos quanto à disposição para obter conhecimento; todos são capazes de aceder ao topo do saber se forem devidamente incitados ao estudo devidamente planeado, tornando-se assim iguais em capacidades e merecimento; o que impede o paraíso terrestre é, afinal, a sociedade gerada pelo sistema de produção em que assenta o capitalismo, e a sua máquina repressora do povo trabalhador, o Estado. Uma sociedade que só a Revolução Socialista poderia gerar, apoderando-se do Estado (isto, na perspectiva marxista) para, proletarizando-o, o destruir. O pensamento de Hegel, a quem ambas, esquerda e direita, devem os fundamentos filosóficos de raiz e as posteriores derivações com que se ornamentaram, conferiu estrutura final ao ramalhete.

(...)

Da surdez no clítoris - pequena adenda intercalar



CdR:

Já agora, numa rapidinha, e porque poderá haver mais gente para quem o que eu pretendo dizer ainda não é claro.

A intenção altruísta implícita, se não declarada, das lésbicas surdas que pretendem gerar um filho igualmente surdo tem a ver com a sua capacidade para educar uma criança. Sentindo-se incapazes -ou tendo medo de o ser- de a prepararem devidamente num e para um mundo de "normais", isto é, num e para um mundo com uma amplitude potencial de oportunidades e de riscos superior àquela que possuem, tencionam criar mais alguém com esse mesmo handicap. É a bem da criança que o fazem, note, porque qualquer outra poderia ficar prejudicada. Puro altruísmo, alguém duvida?

Se elas pretendessem educar uma criança surda já existente, ainda vá lá. E digo "vá lá" porque, apesar disso, o mundo é predominantemente "normal" e a criança teria que, como todos os outros  — surdos, cegos, coxos, deficientes mentais —  absorvê-lo culturalmente para se poder desenrascar e comunicar nele. Mas pronto...

Um casal de surdos viveu, durante anos, no prédio das traseiras do meu, tiveram uma filha sem qualquer problema sensorial ou outro e educaram-na também sem qualquer dificuldade acrescida. O facto de ela ter saído lésbica, não me parece derivado de um problema educacional  - este exemplo parece uma piada, relativamente ao caso de que estamos a tratar, mas não, é mesmo verdade.

O que se passa com os "educadores religiosos" que pregam e praticam a excisão do clítoris é semelhante. O que eles estão a fazer, na mais sagrada e, portanto, altruísta das missões, é proteger as mulheres, precavendo a possibilidade de elas resvalarem para o pecado e contaminarem com ele a obra divina. De outra maneira, o que eles fazem é moldar o mundo à sua medida, à medida das suas possibilidades, para que esse mundo não lhes fuja ao controlo; não pensam em alargá-lo, mas em limitá-lo, como faz qualquer medroso estúpido. As mulheres têm que comportar-se, ser, à medida da sua compreensão do mundo. Para bem delas, é claro, senão Deus castiga-as e aos outros que lhes permitiram agir contra a Sua imutável e abençoada lei.

Qual é o paralelo? Parece-me evidente. Mas, se tiver estado com atenção às mais recentes tendências da moda, verificou, com certeza, que se reivindica cada vez mais, entre surdos "progressistas", a existência de uma cultura própria assente na deficiência auditiva. Isso não o alerta para nada?

E agora espere mais um pouco pelo que direi a seguir.

domingo, 22 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 1



(foto obtida aqui)

Caríssimo Carmo da Rosa:

As vicissitudes da existência não me permitiram acrescentar mais nada ao único comentário que fiz a este seu post, no qual tecia algumas considerações a respeito deste outro, do Rio d´Oiro, que referenciava, por sua vez, um texto publicado por Pedro Picoito no Cachimbo de Magritte. Fiquei com a impressão, aliás, de ter sido muito pouco claro para si, porque reparei que, logo a seguir, respondeu a uma observação do Godot sobre o que este considerava —e muito bem— o essencial do que eu escrevera (obrigado, Godot, pelo apreço) dizendo que não me dera troco porque não percebera a que propósito vinha isso da excisão do clítoris. Coisa que me pareceu estranha, da sua parte, tanto mais que estou habituado a que procure, como poucos, esclarecer os assuntos que se lhe afigurem nebulosos, e que, por tal, mais me aguçou a vontade de repescar o assunto.

Ora tendo tido hoje maior disponibilidade para me achar “mais pachorrento” (parafraseando o velho Elmano Sadino), dispus-me a despachar o assunto. Só que, como se sabe, as palavras são como as cerejas e tal, e o que era na intenção para meia dúzia de linhas, por muito que eu me esforçasse e tressuasse em contrário, transformou-se numa montanha delas. Achei melhor, assim, publicar o que escrevi em três partes não só pelos danos que o computador causa à visão como também, confesso, porque me faltam para aí dois parágrafos, o jogo do Sporting já começou e eu estou muito longe de ser perfeito. Aqui fica, portanto, a primeira parte da minha resposta.

CdR:

Aumentar intencionalmente a possibilidade de vir gerar um ser humano privado da totalidade dos sentidos de que a espécie desfruta, argumentando com os eventuais limites educacionais que a limitação sensorial impôs a quem o pretende fazer, por querer ter, à viva força, um filho: não haverá muitos exemplos de tão grande monstruosidade de carácter, travestida da mais altruísta das motivações. Nem é difícil detectar nisto o mesmo princípio —teórico e prático— fundante das grandes ditaduras que a humanidade conheceu.

Princípio, aliás, que, de igual modo, serve de justificação à excisão do clítoris, travestida de medida de sanidade religiosa. Trata-se somente de inverter o conhecido “Se não podes com eles, junta-te a eles” num “Se não podes com elas, tira-lhes a pila — que, tirando-lhes o prazer, tiras-lhes o apetite para cuja satisfação tu, sozinho, não venhas, eventualmente, a ser suficiente, e assim terás c… vagina sem concorrência”. Apresente-se o apetite sexual da mulher como devassidão que contraria os preceitos de um Transcendente legislador e punidor e a coisa ganha então uma solidez quase indestrutível. Considerar a possibilidade da sexualidade humana possuir outros contornos e dimensões para além do apreensível e, eventualmente, suportável pelos que determinam a excisão clitoriana (incluindo a bissexualidade feminina), é algo que lhes é apavorante, na medida em que põe em dúvida a sua auto-compreensão.

A razão pela qual, porém, não é feito o paralelo entre o caso relatado e a mutilação genital feminina assenta em dois factores:

- Primeiramente, por a sexualidade se manter no topten das preocupações das sociedades ocidentais. E isto porque, por um lado, durante milhares de anos a consideração do que ela é ou possa constituir tem vindo a ser impedida por motivos semelhantes àqueles que acabei de referir, gerando confusões e a correspondente existência de elementos que nem sempre ajudam a uma visão mais clara e objectiva sobre o sexo e a sua vivência —antes, por vezes, a turvam ou impedem. Em consequência do que, por outro, a sexualidade, em especial a que respeita à do sexo feminino, em conjugação com a afirmação do feminismo, nos seus mais lúcidos e ilúcidos cambiantes, a torna num ponto da maior sensibilidade no que concerne às liberdades.

- Depois, porque a excisão do clítoris é perspectivada como acto de barbarismo, próprio de culturas primitivas, repressivas, que se firmam no obscurantismo das religiões. Enquanto que o casamento homossexual e o direito a educar uma criança dentro dele —por custódia parental, adopção ou geração laboratorial— é entendido como libertação de tabus e combate à repressão do “sistema”, em prol do aparecimento de uma Humanidade nova.

E foi precisamente neste ponto que se originaram os mal-entendidos presentes na caixa de comentários, das quais o Godot (obrigado pelo apreço!) se apercebeu muito bem, ao situar a questão da excisão do clítoris como o essencial da minha resposta, bem como a ligação que ela tem com a esquerda.

Cito, de novo,  um dos grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, completamente esquecido após a sua morte, quase trinta anos atrás, com quase toda a obra por editar, e de quem eu (nessa altura um puto) tive o enorme privilégio de ser amigo, Manuel Grangeio Crespo, num livro que publicou pouco antes das primeiras eleições legislativas pós-25 de Abril: “Revolução Cultural é um pleonasmo: não há outra”. Com efeito, toda a revolução assenta na necessidade de se estar, de se viver de outro modo, mesmo que essa necessidade se apresente, de início, com contornos de menor precisão. O que não tiver tal necessidade por fundamento não passa de um mero golpe de Estado.

Ora a esquerda aponta, desde o seu início, para uma nova cultura, a cultura de uma Humanidade dos Amanhãs que Cantam, proveniente da racionalização da posse e utilização dos meios de produção assim como do consumo dos bens produzidos. A viabilidade e a necessidade dessa cultura baseiam-se, contudo, em princípios insuficientemente demonstrados, mas simpáticos para as tendências sociais dos tempos em que os formularam, ou até em meros postulados (para quem não saiba, figura da Lógica que designa algo não demonstrável, mas que terá que se supor verdadeiro para que todo um conjunto teórico possa ganhar sentido). Todos eles, como não poderia deixar de ser, intrinsecamente relacionados com o ensino e a pedagogia. Vejamos, mais que abreviadamente, aqueles que foram e continuam a ser determinantes, na respectiva sequência histórico-cultural. 


(...)