...disse Alberto Gonçalves, aqui:
Perder na secretaria
Ou porque o seu presidente andou com problemas de saúde ou porque a equipa de futebol não anda a jogar bem, é voz corrente que o FC Porto está em fim de ciclo. Talvez esteja, talvez não, para mim tanto faz: fui do Benfica na idade em que liguei ao assunto, sou completamente neutro desde que deixei de ligar. De qualquer modo, se o fim do ciclo é discutível, o ciclo não é.
Nos últimos 35 anos, o FC Porto largou a irrelevância que o marcava e começou a discutir a hegemonia com os clubes da capital. Nos últimos 20, assumiu a hegemonia sozinho e deixou a irrelevância aos outros. Os processos utilizados não interessam muito e, sobretudo, não me interessam nada. À semelhança dos fundamentos do sucesso do Benfica de há meio século e, em menor escala, no sucesso do Sporting de há três quartos, suponho que o FC Porto é melhor dentro do campo e fora dele, incluindo-se aqui matéria lícita e, apesar do falso pudor das virgens que dominaram o sector em 1950 e em 1970, ilícita. Nestas coisas não há acasos: sem "ajudas" provadas, Lance Armstrong teria sido igualmente superior aos adversários, tal como antes o fora Merckx, evidentemente com "ajudas" por provar. Salvo pormenores ocasionais, nem o Benfica de Eusébio nem o FC Porto de, por exemplo, Deco, careciam de favores para humilhar a concorrência. Os adeptos, maioritariamente do Norte e ainda mais do Grande Porto, agradeceram a proeza e tomaram-na a título de desagravo do centralismo lisboeta. Fizeram mal.
Ao mesmo tempo em que celebravam as vitórias nos estádios, os portistas, portuenses e nortenhos viam-se derrotados no mundo real. As glórias do FC Porto coincidem com o período em que a região que o clube pretende representar perdeu influência nos destinos do País, peso no respectivo PIB e riqueza proporcional dos seus cidadãos. Trata-se, justamente, de uma coincidência, já que as mudanças devem-se menos às cabeçadas de Gomes e Jardel do que a factores um bocadinho alheios. A globalização desmantelou boa parte da estrutura produtiva do Norte, assente na indústria e nas exportações. Portugal tornou-se um lugar de serviços, crescentemente sediados a Sul. O desenvolvimento nacional passou a fazer-se a expensas dos "fundos" europeus, cuja distribuição, por fintas e mergulhos dignos de Paulo Futre, teima em concentrar-se nas imediações do proverbial Terreiro do Paço. Enquanto o FC Porto reinava, o Porto, cidade e área metropolitana, secava. Entretida com os remates certeiros, e orgulhosa de um clube caracterizado pela organização eficaz, taças em abundância e, por comparação aos rústicos rivais, um genérico ar "moderno", a população não reparou que, no que importa, Lisboa começava a golear o Porto.
Não falo apenas de política. Ou de economia. Ou, descontada a ridícula dimensão pátria, de cultura. Basta ver televisão, onde as referências sortidas ao Porto ou ao Norte, com frequência a cargo de criaturas nadas e criadas no Porto ou no Norte, crescentemente não dispensam a distância imposta pelo advérbio "lá": lá em cima, lá para aquelas bandas, lá no Porto, lá no Norte. De forma oficiosa, quase oficial, o Porto é província, quase ultramar (o Norte nem isso). Hoje, Lisboa só precisa do Porto na medida em que o Porto precisa do interior nortenho: para simular carências e açambarcar os apoios de "convergência". E o bom povo lá de cima (ou cá de cima, na minha perspectiva) convenceu-se de que os êxitos na bola, erguidos a símbolo e a orgulho regionais, compensam o resto. Não compensam, pelo que fica a esperança de que o alegado fim de ciclo do FC Porto aconteça e sirva para recordar que um esboço de equilíbrio geográfico não se alcança aos pontapés no famoso esférico.
Convém, para evocar um cliché, que o Porto - os cidadãos, não as autarquias, delegações e pechisbeques afins - desvie os olhos da baliza e veja o essencial. E o Norte, que cavalgou sem retribuição o apogeu do FC Porto e, repito, sofre em benefício do Porto o exacto desprezo que o Porto sofre em prol de Lisboa, também. O bairrismo é cretino, mas a demografia conta.
Escravos
"É cada vez maior o número de portugueses sujeitos a trabalho escravo no seu próprio país", lia-se num título do Público. No corpo da notícia, procurei as senzalas, os feitores, os chicotes, o sofrimento de sol a sol. Nada. Afinal, tratava-se apenas de sujeitos que, no Alentejo e no Douro, trabalham nas colheitas a troco de 30 euros diários, não declarados ou através de, cito, "falso recibo verde". Enquanto averiguo o que é um recibo verde autêntico (explico na próxima semana), adianto que, conforme reconhece a Autoridade para as Questões de Trabalho num momento de maior serenidade, a questão é sobretudo grave para o fisco e a Segurança Social. Que me lembre, não era esse o principal drama nos campos do Mississippi ou de Minas Gerais.
Podemos achar, e eu por acaso acho, que a profissão de assalariado agrícola não é das mais confortáveis, que 600 euros mensais é um rendimento curto e que desempenhar funções clandestinamente impede o acesso às prodigiosas reformas que aguardam a maioria dos nossos compatriotas. Porém, daqui à escravatura vai um salto tão grande quanto comparar a larica das seis da tarde com a fome em África ou o bullying (sic) nas escolas ao Holocausto.
Uma coisa é o Público apreciar espalhafato, outra é presumir que essa é a função de uma reportagem. Não é. Se o leitor não for irremediavelmente estúpido, a descrição rigorosa dos factos basta-lhe para formar uma opinião. Haverá leitores a considerar a "escravatura" alentejana e duriense uma vergonha; haverá leitores, principalmente entre os que procuram emprego em vão, a invejá-la. Por azar, vivemos numa época em que alguma imprensa (na televisão não vale a pena falar) tende a desaprender as regras básicas do ofício e, como um cómico que avisa que a piada seguinte é particularmente engraçada, a incluir no relato da realidade os sentimentos que a realidade nos deve inspirar. E isso não é jornalismo, mas uma ofensa, maior do que os portugueses "escravos" em Portugal. Uma dúvida: no estrangeiro a escravatura é tolerável?
Perigoso, porque ambicioso e utópico
"O ex-primeiro-ministro José Sócrates defendeu hoje que o Estado social libertou o indivíduo, numa intervenção em que fez um ataque cerrado ao neoliberalismo, advertindo que se trata de um sistema perigoso, porque "ambicioso e utópico"." O texto é da Lusa, que não se esqueceu de notar que o engenheiro Sócrates se apresentou "sem gravata e de calças de ganga". E apresentou onde? Ora essa: "Perante um auditório cheio no ISCTE." Ainda mais do que as "praxes", eis a prova de que o ensino superior vai pelas ruas da amargura.
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