Ninguém ensina os professores?
A greve dos professores suscitou um manifesto de apoio por parte de 22 autodesignados artistas, do cançonetista Carlos Mendes ao filhote de Lucas Pires. O manifesto começa com uma relativa evidência: "Sem Educação não há país que ande para a frente." Infelizmente, prossegue com generalizações diversas, umas difíceis de provar, outras fáceis de desmentir. O tom geral é o de que a classe docente constitui uma entidade abstracta, sempre maravilhosa, incansável e esclarecida. Em Portugal, o sabujismo rende.
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Donde a proliferação dos sabujos. Além de subscrever o texto, o escritor José Luís Peixoto alinhavara, em 2011, um texto pessoal no qual desenvolveu os arrebatamentos líricos e que o site do Bloco de Esquerda agora resgatou: os professores, garante a promessa da ficção nacional, trazem consigo "todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu". Além disso, os professores "não vendem o material que trabalham, oferecem-no", visto que "o trabalho dos professores é a generosidade". Os professores, com "as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás" são, jura o sr. Peixoto, "os guardiões da esperança". Os professores "ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar". E quanto a nós, antigos alunos, "basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores".
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Bonito, porém improvável. Se me inclinar ao tal esforço mínimo, e máximo, da memória, não abundam os "plims" (?) pequeninos de gratidão. Ao contrário do sr. Peixoto, homem de sorte, nunca tive professores que trabalhassem de borla, tive poucos carregados de conhecimento, ignoro os modelos dos automóveis que conduziam e, ao que me lembro, a função da maioria consistia justamente em encher-nos de certezas rígidas e opacas. Comecei a espernear no dia em que me arrastaram para a "primária". Parei de espernear no dia em que concluí a licenciatura, de longe o maior alívio que senti na vida.
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É claro que, da primeira à quarta classe e à custa de salvíficas reguadas, a dona Julieta me ensinou a fazer contas (da leitura e da escrita os meus pais e avós trataram antes). É claro que, no liceu, recordo meia dúzia de almas competentes e uma dúzia de almas esforçadas. E é claro que não esqueço um certo professor de história económica na faculdade. O resto foi uma imensa perda de tempo, às vezes uma tentativa de desvitalização do cérebro e, muito por feitio meu, uma longa tortura, que nem as benesses escolares alheias às aulas resgataram. Levei com gente que nos forçava à escuta de "Zeca" Afonso, gente que presumia a familiaridade de adolescentes com Schrödinger, gente convencida de que Pierre Bourdieu era um pensador, gente parcialmente analfabeta, gente que corria para a janela a cada avião, gente que sumia o ano inteiro mediante "baixa" (juro que não me importava), etc. Fabricar uma imagem idílica da docência é equivaler as fraudes aos profissionais sérios - e caluniar estes.
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Pior: nivelar os professores por cima é uma burla idêntica à padronização por baixo que há décadas se aplica aos alunos e que, de resto, torna anacrónica a conversa acerca das virtudes e defeitos do ensino. A época em que, bem ou mal, os professores ensinavam morreu. Hoje, procuram sobretudo escapar das agressões verbais e físicas que alunos e famílias de alunos lhes dedicam. As criaturas que por oportunismo louvam em tons absurdos o papel dos professores são as mesmas que se calam quando um professor apanha uma sova por ousar sossegar a irreverência das criancinhas. Com frequência, o Ford Fiesta aparece sem pneus a título punitivo.
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E se não são delinquentes a humilhar os professores, os próprios tratam do assunto por via sindical: marcar uma greve que se pretende incómoda para as datas dos exames é assumir que já só são imprescindíveis nas funções de vigilância, tarefa que uma câmara de 50 euros ou um contínuo com o salário mínimo desempenhariam com brio similar. E o Governo, que não accionou a câmara nem o contínuo, dá-lhes razão fingindo não a dar. Para quem acumula todo o conhecimento do mundo, impressiona o desconhecimento que tantos professores têm do seu. Ninguém é capaz de os ensinar?
Os gregos
O fecho da televisão e da rádio públicas na Grécia está a provocar um "choque (...) na opinião pública grega e no resto da Europa". Pelo menos essa é a interpretação feita pelo jornalista da nossa RTP que redigiu a notícia, certo de conseguir interpretar o sentimento da humanidade. A Comissão de Trabalhadores da RTP é mais modesta e acha-se apenas capaz de interpretar o sentimento dos portugueses: "Somos todos gregos", afirma um comunicado da entidade, que apropriadamente compara o acontecimento à opressão comunista no Leste europeu e, não satisfeita, ainda lembra o silêncio dos emissores de Atenas durante a ocupação nazi. Do Gulag e do Holocausto ao fim do Preço Certo a diferença é residual. Mas seremos de facto todos gregos?
Duvido. Tirando os dois ou três amigos distantes que tenho nos canais do Estado, os quais defendem justificadamente o emprego, e um amigo próximo, aliás de esquerda, que passou por lá, não gostou do que viu e sonha com vingança, não conheço ninguém que sequer notasse o eventual sumiço da RTP. Salvo para coisas como a PBS americana, co-financiada por recolhas de fundos e centrada na transmissão de documentários sobre a desova do salmão, uma estação pública não faz sentido por princípio. Uma estação pública cuja programação sai cara e se confunde com a de largas dezenas de alternativas é um insulto ao bom senso.
Há quem discorde? A julgar pelos ecos na imprensa, parece que sim. Não faltam gritos de alerta a cargo de (chocadíssimos) patriotas que elevam a RTP a garante da liberdade, da democracia, da coesão, da soberania e, delírio por delírio, da independência nacionais. Seja. Dado que a mim me incomoda menos a existência da RTP do que ter de pagá-la, os patriotas que a paguem. No fim, ainda se sentirão mais falidos, mais gregos e, pelos vistos, mais felizes.
O voto e a vergonha
Não tinha idade para votar Eanes e, na medida em que não sou masoquista, nunca votaria Soares ou sequer nesse monumento à candura chamado Jorge Sampaio. Votei em Cavaco Silva para a presidência. Duas vezes. Dadas as alternativas, ainda não me arrependi. Convinha era que o prof. Cavaco não forçasse a nota. Mesmo que os seus antecessores não fossem estetas da língua, as recentes inovações lexicais do "fazerei" e dos "cidadões" confundem. Mesmo que os seus antecessores não descurassem as artimanhas de conveniência e sobrevivência política, o discurso do Dez de Junho, voltado para a justificação dos actos próprios enquanto primeiro-ministro, deprime. Já o julgamento sumário do exaltado que chamou chulo a Sua Excelência e a mandou trabalhar assusta: mesmo que pelo menos um dos seus antecessores mandasse suprimir um livrinho incriminatório e o respectivo autor, eu, repito, não votei nele nem nos demais. Votei neste, e se o confesso sem orgulho, não tarda escondo-o com vergonha.
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