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quarta-feira, 19 de junho de 2013

Revolta civil no Brasil. Por quê? Por que agora?




O que de repente mudou no Brasil na semana passada, para que o Brasil parecesse de repente mudado? A pergunta, algo circular, reflete a dificuldade generalizada em compreender o que se passa e mesmo por que se passa, pois o Brasil é, historicamente, caracterizado por uma cidadania débil, que em momentos de exceção se manifesta para, como regra, viver mergulhada na apatia política. Trata-se, então, de mais uma exceção. Ou será o começo de uma mudança histórica?


Estou em São Paulo, e, pela TV, parece Istambul. Mas os manifestantes logo respondem a isso: “Não é a Turquia / Não é a Grécia / É o Brasil / que saiu da inércia.” Em mais uma exceção, ou como início de uma mudança histórica?

Se em Istambul o estopim foi um parque, em São Paulo foram vinte centavos de aumento na passagem do ônibus. Mas logo isso foi rapidamente ultrapassado: “Não são os centavos, são os direitos!”. E esses direitos todos sabem quais são.

Eles são, simplesmente, os direitos básicos de uma sociedade moderna, como saúde pública de qualidade, educação pública de qualidade, transporte público de qualidade, segurança pública que mereça o nome e uma administração democrática, republicana ou transparente da coisa pública. Nada disso jamais existiu no Brasil, mas o contrário, sim. Saúde pública abjeta, educação pública indigente, transporte público infame, segurança pública nenhuma, administração corrupta e autista da coisa pública.

Mas se sempre foi assim, por que agora?

A questão, então, não é de fato por que, mas por que agora.

O Brasil sempre viveu em meio ao binônio anomia (política) e apatia (pública). Quando terminou a ditadura militar, a vitória das forças democráticas lhe foi roubada. Enquanto em todos os demais países da América Latina o fim do governo militar foi o fim do governo militar, com sua substituição pelos líderes e partidos da oposição ao regime militar, no Brasil foi feito um arranjo pelo qual um nome palatável para os militares, Tancredo Neves, foi indicado presidente por uma “eleição indireta” dentro do Congresso controlado pelos mesmos militares. Ele morreu sem tomar posse. Assumiu seu vice, o notório José Sarney, oligarca nordestino e líder notório do partido de sustentação do regime militar... Depois houve, por fim, eleições diretas. Mas num quadro político-institucional e midiático tal que o eleito foi outro membro do partido de sustentação do regime militar, além de também oligarca nordestino, Fernando Collor. 

Collor levou seu voluntarismo oligárquico de Fortaleza para Brasília, onde pretendeu governar com sua camarilha, além de tentar impô-la à grande camarilha oligárquica que tocava seus negócios habituais no Congresso. Daí nasceu seu processo de impeachment, que foi abraçado pelas massas nas ruas, num súbito surto de participação política. 

Assume então seu vice, Itamar Franco, afinal egresso da oposição ao regime militar, mas político mineiro provinciano e sem envergadura, que convoca para apoiá-lo o “príncipe da sociologia brasileira”, Fernando Henrique Cardoso, a quem designou primeiro para o ministério do exterior, depois para a economia, quando dá cabo da hiperinflação histórica e cria uma nova moeda, o real. FHC então se elege sucessor de Itamar e abre o mercado, libera o câmbio e institui as agências reguladoras dos serviços públicos, além do primeiro programa de inclusão social, o bolsa-escola. Então FHC foi substituído por Lula. E agora estamos perto da atual revolta civil.

Pois resultou que Lula e o PT eram uma farsa (uns poucos o perceberam de imediato; muitos o estão percebendo agora). Farsa porque passaram vinte anos afirmando ser a socialdemocracia brasileira, que realizaria as reformas históricas jamais realizadas (para além das reformas da conjuntura econômica de FHC), cujo adiamento adiava a entrada do país na modernidade e da população na cidadania moderna. Mas era farsa e era mentira. O PT não tinha um programa de governo, quanto mais um projeto de reformas de base. Era uma máquina de subir ao poder. Uma vez lá, não teve alternativa além de se integrar e se entregar à velha política brasileira, agora na condição de líder.

A política econômica de FHC foi, então, basicamente mantida, com controle de inflação via juros altos. Isso gerou certa estabilidade que permitiu algum crescimento econômico, e também algum aumento de consumo, tanto pelo crescimento econômico quanto pelo aumento da oferta de crédito subsidiado quanto, afinal, pela ampliação dos mecanismos de distribuição direta de renda, com o bolsa-escola de FHC agora transformado em bolsa-família. E isso é quase tudo.

Pois tudo o mais que era grave e grande carência histórica nacional, e que só poderia ser alcançado através de grande e grave conjunto de reformas, jamais foi sequer esboçado. Nada de reforma política, fiscal, previdenciária, educacional, jurídica, policial etc. Mas muitas reformas de estádios de futebol, para a Copa do Mundo vindoura, a um custo de dezenas de bilhões de reais (ou de euros).

Ao mesmo tempo, o país via o conjunto de sua infraestrutura ser sucateada. Hoje, estradas, portos, aeroportos, ferrovias, distribuição de energia, segurança pública, escolas públicas estão aos pedaços ou estressados e à beira do colapso. Mas há incontáveis novos estádios.

Quando a galinha de Lula afinal pousou, foi a gota d'água. A galinha é o crescimento da economia no Brasil. Pois aqui se diz que a economia brasileira, historicamente, quando cresce, cresce em “voo de galinha”. Ou seja, uma rápida subida para um ainda mais rápido tombo logo à frente. Lula jurou e berrou que desta vez a galinha voaria como uma águia. Mas galinhas são galinhas. A incapacidade do Estado, apesar dos níveis suecos de arrecadação de impostos, de melhorar a infraestrutura a fim de manter o voo explica sua não-manutenção, assim como a própria incapacidade se explica pela inépcia, pela corrupção generalizada, pelos objetivos particulares das lideranças políticas, pelas políticas erráticas, pelo cacoetes ideológicos e pela necessidade de agradar aos grupos de interesse. Mas, em compensação, o governo, agora com Dilma, foi eficiente na construção de dezenas de novos e modernos estádios de futebol, naturalmente superfaturados, pois ninguém é perfeito.

Quando a galinha desceu, a inflação subiu. Com ela, subiram as passagens de ônibus. Então um grupo de estudantes saiu às ruas em São Paulo para exigir a revogação do aumento. A truculenta e militarizada polícia estadual os atacou selvagemente, ferindo muitos e detendo muitos mais. Tudo somado, de repente a população saiu às ruas em todas as cidades do país, como formigas abandonando um formigueiro inundado, em reação a tudo isso.

A atual revolta civil no Brasil, que não para de se espalhar e de se intensificar (manifestações ainda maiores foram convocadas para a próxima quinta-feira, 20/06), não tem líderes e não tem reivindicações claras. É um movimento de indignação, que significa, em primeiro lugar, o fim da ilusão lulopetista do “novo Brasil” dourado, e marca também o fim de certa resignação histórica profunda, de uma sociedade sempre mantida distante do Estado muito além da distância normal ou aceitável numa democracia moderna.
Não há nenhum líder, e sequer há muitas palavras de ordem. A mais objetiva, até agora, é “Abaixo os impostos!”. E, claro, “Não são os centavos [das passagens], são os direitos [básicos]”.

Mas, afinal, por que exatamente agora?

Porque houve um recente crescimento econômico, antes de a galinha gorda de Lula e Dilma começar a adernar perigosamente as asas. Porque esse crescimento tirou da sombra parte da grande parte dos excluídos históricos. E também lhes levou mais informação, incluindo a internet. 

A revolta brasileira deve ser a mais conectada de todas as recentes revoltas mundiais. Não existe um brasileiro fora dos berçários sem celular.
Portanto, apesar de ainda galináceo e manco, o país não é mais um país perfeitamente pobre. Mas se não é mais um país pobre, por que ainda é um país de merda? Em suma, pela primeira vez na história parece que os brasileiros, menos pobres e melhor informados, não aceitam mais viver num país fedido (o Brasil tem a 6a. maior economia do mundo, e é o 85o. no IDH [índice de desenvolvimento humano]: uma defasagem de mais de mil por cento).


Ninguém sabe ou pode saber em que tudo isso vai dar. Mas em algo já deu. Quebrou o autismo da classe política brasileira, que acreditava poder governar o país como se habitado por um bando de palhaços, a quem só interessam o carnaval e o futebol. Os brasileiros estão gritando “Fora Copa!”. Além disso, fez perder a virgindade política da sociedade civil, que rompeu o hímen de sua apatia histórica ante a anomia igualmente histórica do Estado. Portanto, não há volta. Não há mais virgens.

Ainda que essa revolta sem líderes nem demandas políticas claras, e, portanto, exigíveis, acabe por perder o ímpeto, e se desfaça como uma onda na praia da indiferença política, esse mar que se comportava como um lago sabe agora ser um mar, e que pode produzir ondas quando queira. Não importa tanto, portanto, ainda que agora importe tudo, o possível ou provável fim dessa onda, mas o fato de que, no futuro imediato, outras ondas se erguerão, assim que algum vento de través soprar. E eles sempre sopram no Brasil.

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