(imagem obtida aqui)
Um novo texto, a não perder, de Alberto Gonçalves, no DN:
O que falta dizer sobre Hugo Chávez que ainda não tenha sido dito? Quase tudo. Embora as convenções aconselhem a não insultar um morto recente, o bom senso dispensaria a veneração respeitosa que por aí vai, mais adequada a um santo do que a uma personagem pouco recomendável.
Imagine-se um insignificante militar transformado em agitador, que jovialmente mistura a leitura de três citações de Marx com a incarnação de Simon Bolívar, por acaso um ódio particular daquele. Imagine-se que o agitador promove sucessivas conspirações "anticapitalistas" até tentar, e falhar, um golpe de Estado. Imagine-se que, após breve passagem pela cadeia, regressa à agitação e, mediante um talento inato para o populismo, alcança finalmente o poder pela via democrática, que se apressa a demolir de modo a perpetuar o seu reinado. Imagine-se que não falamos de Berlim em 1933, mas de Caracas em 1998: eis Chávez, cujas semelhanças com o velho führer terminam aí.
Privado da força necessária, Chávez não invadiu os seus inimigos, limitando-se a atirar-lhes adjectivos e fúria analfabeta. No resto, só moderadamente difamou e perseguiu a comunidade judaica, só se aliou a líderes psicopatas para efeitos simbólicos e só causou estragos em terceiros no que toca à paciência. Se descontarmos certa influência nas repúblicas das bananas vizinhas, a acção devastadora de Chávez circunscreveu--se à Venezuela, que sob o carismático da praxe viu suprimida a liberdade de expressão, incrementada a violência (oficial e civil), saqueada a propriedade privada, potenciada a corrupção e reduzida a economia à estrita dependência do petróleo, o qual, mal por mal, impediu a bancarrota absoluta. Os simpatizantes de ditaduras aplaudem as "políticas sociais", leia-se as migalhas com que a nomenclatura do regime, crescentemente multimilionária, comprou os votos dos miseráveis. Em determinadas franjas do Ocidente do século XXI, o estereótipo do "pai da pátria" continua a suscitar ternura.
Sem surpresas, em Portugal o falecimento de Chávez não ajudou a lembrar estas trivialidades. A generalidade dos media, vergada ao alegado fascínio do "comandante", tratou a coisa com desmesurada pompa e inusitado detalhe, decidindo esclarecer-nos pela enésima vez que um tirano, logo que prospere à custa da invocação dos oprimidos, é um "revolucionário". Quanto à classe política indígena, que ao dito alto nível já celebrara Chávez em vida (ver, por favor, a comenda atribuída por Jorge Sampaio, as vénias de Mário Soares e a admiração aparentemente sincera de José Sócrates), resolveu cobrir o ditador de elogios fúnebres, menos grotescos à direita (o "amigo de Portugal", de acordo com Paulo Portas) do que à esquerda (o combatente do "liberalismo e do capitalismo selvagem", de acordo com Alberto João Jardim).
Em qualquer dos casos, as opiniões são irrelevantes: a obra de Chávez revela-se no seu legado, desde os herdeiros políticos que recuperam a hilariante tese do cancro infligido (pelos EUA, claro) ao típico encobrimento da doença (há um par de semanas, a Embaixada da Venezuela acusou-me de exagerar a respectiva gravidade), desde o cortejo de luminárias presentes no funeral (Ahmadinejad, o segundo Castro e o sr. Lukashenko da Bielorrússia tiveram dieito a lugares de primeira fila; Kadhafi não durou o suficiente) até ao embalsamento do cadáver (à semelhança, garantiu o sucessor Nicolás Maduro, "de Ho Chi Min, Lenine e Mao Tsé-tung"). Por enquanto, a loucura folclórica do "chavismo" sobrevive ao seu mentor.
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