No Blasfémias, excelente artigo de Rui A.
Começo por esclarecer que não considero necessariamente José Sócrates um patife. Também não acho que seja o único responsável pelo lamentável estado a que o país chegou, não obstante ter desempenhado nesse drama o papel daqueles protagonistas que surgem a meio de uma longa-metragem atribulada e lhe põem fim com a fatal consumação da adivinhada tragédia. Não me interessam igualmente os aspectos da sua personalidade e do seu carácter. Pressuponho-os sempre inexistentes ou distorcidos nos políticos de profissão, que não considero muito mais saudáveis do que jogadores viciados de casino, e não tenho o hábito de me debruçar sobre essas recônditas paragens das almas alheias. Por conseguinte, é-me indiferente que seja, ou não, narcísico, mentiroso, egocêntrico, trafulha e ladrão, ou tudo isso por junto e atacado. Por fim, tenho a questão da sua licenciatura como absolutamente menor (no processo de Bolonha já seria certamente doutorado…), a não ser pelo divertimento que me causou a história do exame de «inglês técnico» feito numa soalheira tarde de domingo, e o encalacranço público em que por causa disso se meteu, e que culminou com uma circunspecta entrevista televisiva, que me fez lembrar aquela outra do seu colega norte-americano que teve de vir a público explicar a diferença entre sexo e o princípio da oralidade… Os meus problemas com José Sócrates não são estes. São outros.
Sócrates não foi mais, enquanto governante, do que um rapaz que aplicou o que sempre ouvira dizer ao outros, em particular às «sumidades» que conhecia e respeitava, umas pessoalmente, outras por alguns livros e artigos de revista que certamente terá lido. E o que sabia Sócrates? Que os países em crise só saem delas se tiverem governos fortes e resolutos que injectem dinheiro na economia para a animar, que criem emprego com obras públicas, incentivem a economia com estímulos na procura interna para provocarem a resposta da produção que gerará desenvolvimento e prosperidade para todos. Se os governos mantiverem o controlo das rotativas que fabricam notas, devem fabricá-las, pois então, porque o dinheiro em abundância traz a fidúcia das pessoas no futuro do país, anima-as a gastar e, gastando-o, criam riqueza e emprego para todos. Isto é, grosso modo, o que ainda hoje se ensina na maioria dos cursos de Economia das Universidades portuguesas (as tais que sempre reclamam o seu quinhão na abundância do dinheiro do governo), e era só isto que ainda há bem pouco tempo se ensinava em todas as Faculdades de Economia das Universidades portuguesas, sem excepção. Nada a que um sábio governante deva ficar alheio.
José Sócrates foi, assim, um entusiasta keynesiano que pôs em prática os ensinamentos do mestre. Quando o país já estava falido, ele fez-lhe o diagnóstico e aplicou-lhe a infalível receita: a economia murcha porque não há investimento; não há investimento porque os portugueses não têm emprego nem dinheiro para gastar; assim, cria-se emprego através de um arrojado programa de obras públicas e público-privadas (a mesma coisa, como é sabido), que o estado pagará ao longo das gerações futuras, sendo que estas enriquecerão graças ao desenvolvimento que aquelas arrojadas medidas inevitavelmente provocam. O financiamento de que o governo imediatamente precisava vai buscar-se aos impostos, aos bancos e aos prestamistas externos. O melhor dos mundos, portanto. Krugman, o Nobel que povoava os sonhos de Sócrates, olhava, com ternura, para o sagaz discípulo.
Entretanto, em seis anos, a receita duplicou o calote público, aumentou o desemprego e reduziu a pó milhares de empresas, umas verdadeiras esmagadas pela «generosidade» do governo, outras absolutamente fictícias, apenas existentes graças a essa mesma «generosidade». O estado deixou de ter dinheiro para pagar a sua despesa corrente e teve de endividar-se num plano de emergência que o próprio Sócrates pediu e assinou, já com a corda a apertar-lhe o gasganete, em condições humilhantes e nefastas para todos. Aos resultados disto se chama agora, em português corrente, «austeridade» («austerity», em inglês técnico). Que é uma consequência e não uma política, ao invés do que Sócrates por aí anda a dizer, não se sabe se por simples vingança, se por pura inconsciência.
O que chateia nisto é que nos arriscamos – Portugal e os portugueses – a passar por tão dura experiência, sem dela colhermos a única coisa boa que nos poderia dar, que era entendermos o que nos aconteceu, para que o não o voltássemos a repetir. Entretidos a chamar nomes ao novo mestre em Ciência Política, habilitamo-nos a olhar a árvore sem contemplar a floresta. Sem compreendermos que o mal está na receita que nos aplicaram e menos em quem a aplicou. Ou seja, na primeira oportunidade voltaremos a confiar o voto e o governo a outro charlatão qualquer que nos assegure que o seu governo criará 150.000 novos empregos. Em trinta e quatro anos seguidos fizemo-lo por três vezes. Se pudermos, em breve, haveremos de fazê-lo de novo.
Quanto a Sócrates, a sua menoridade política manifesta-se por não ser capaz de confessar que se enganou. Ou melhor, em não reconhecer que aquilo que aprendeu e aplicou como sendo infalível, afinal, redundou num gigantesco fracasso. José Sócrates honrar-se-ia se dissesse que, afinal, a solução não está no governo atirar com falso dinheiro numa economia também ela pouco verdadeira. Que os incentivos que as medidas do seu governo não deram em nada. Ou melhor, serviram apenas para gastar dinheiro mal gasto, que agora todos iremos pagar por muitos anos. Sócrates continua convencido de que o que fez fez bem feito. Se lhe derem outra oportunidade, da qual ainda não desistiu, ele mesmo repetirá todos os erros que cometeu. Se não chegar lá, outro por ele o fará. Com o nosso voto, claro.
It is quite gratifying to feel guilty if you haven't done anything wrong: how noble! (Hannah Arendt).
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