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terça-feira, 22 de outubro de 2013

Portugal visto por...




Sonhos revolucionários



Primeiro, o Governo deixa escapar a notícia do saque às pensões das viúvas. Depois, fingindo-se zangado, o Governo faz o anúncio oficial: o saque limita-se a três por cento das beneficiárias. Por fim, desvenda-se o Orçamento e instala-se a confusão acerca da percentagem do saque. Entretanto, cem por cento dos socialistas outrora inquilinos de Belém imitaram uma cantilena em voga e apelaram à insurgência das massas.

Evidentemente, o apelo não foi explícito. Jorge Sampaio, no estilo críptico que desenvolve há sessenta anos, ofendeu-se sobretudo com o desrespeito do sagrado Tribunal Constitucional e pediu "um assomo patriótico", o que quer que isso seja. Mário Soares falou dos "delinquentes" no poder e confessou temer que "o ódio do povo se torne violento", formulação que numa cabeça matreira e pouco sofisticada significa que espera com impaciência a sublevação das massas.

Não pretendo defender as aventuras dos Drs. Coelho e Portas, de facto próximas do grotesco. Porém, é esquisito que alguns dos nossos mais celebrados democratas tenham uma visão peculiar da democracia, maravilhosa quando aclama os nossos, detestável quando premeia os restantes. Se não estou em erro, o Governo em funções resultou de uma escolha dos cidadãos, chamados a votar em eleições livres e justas. O Governo é mau? É, sim senhor, embora por não cortar onde devia e não pelos motivos que o Dr. Soares e o Dr. Sampaio sugerem. O Governo é ilegítimo? Não é, não senhor, excepto na opinião de criaturas como o Dr. Soares e o Dr. Sampaio, para quem a legitimidade advém da coincidência entre os titulares dos cargos e as suas simpatias pessoais. Simular preocupação com a "pátria" ou o "povo" para tentar impor as simpatias é estrategicamente compreensível. Mas é também uma trapaça.

Não me lembro de ouvir o Dr. Sampaio reclamar "assomos" enquanto o Governo anterior inscrevia a pátria na sopa dos pobres europeia. E sou capaz de jurar que, nesses gloriosos tempos, nunca o Dr. Soares avisou para os riscos da plebe indignada. A verdade é que ambas as alminhas citadas representam com brio o ramo do pensamento filosófico lusitano segundo o qual a "direita" (ou o que em Portugal passa por direita) moralmente não merece mandar. Se o povo real e bruto decidiu assim, há que imaginar um povo iluminado capaz de decidir assado e correr com a "direita" à bordoada.

Por enquanto, trata-se apenas da imaginação de dois antigos presidentes da República, felizmente para nós e, no fundo, felizmente para eles: nem sempre a fúria popular pendura uma comenda no pescoço dos respectivos instigadores. Às vezes, limita-se a uma corda.





Ai, a humanidade!



Uma amiga que trabalha no ramo falou-me recentemente e entre risos do sofrimento de inúmeros pais no momento de deixar o rebento no infantário. Ao que parece, a coisa não se distingue da despedida dos soldados que partiam para o Ultramar, com lágrimas e tudo. Uma das poucas diferenças é que os combatentes em África não estavam "monitorizados" (julgo ser o termo usado) por um sistema de vigilância que informasse os familiares das suas actividades diárias. Os rebentos começam a estar.

Vi no "telejornal". O sistema chama-se My Child, já foi adoptado em Portugal por dezenas de creches e similares e consiste numa "rede social" (também é o termo usado) que permite aos paizinhos acompanharem no computador, através de fotografias e vídeos, o fascinante quotidiano dos filhinhos. O filhinho come flocos ao pequeno-almoço? Os paizinhos vêem. O filhinho desenha um rabisco? Os paizinhos observam. O filhinho dorme a sesta? Os paizinhos contemplam. O filhinho bolsa? Os paizinhos admiram, ao longo do dia e com provável prejuízo do trabalho pelo qual alguém absurdamente lhes paga.

Não cabem aqui algumas considerações sobre as maleitas sociais e psíquicas de que semelhante toleima é sintoma: a solidão e o vazio de tantas vidas, a infantilidade dos padrões de comportamento, o alheamento face às responsabilidades, a obsessão maníaca elevada a norma. Limito-me a lembrar que o desmesurado zelo dedicado ao presente das crianças garante-lhes um futuro no mínimo sombrio. E isso, se as circunstâncias não dessem vontade de rir, é que mereceria copioso pranto.


(Recomenda-se a leitura deste e de outros posts do blogue de onde foi retirada esta foto)



Um modelo



Mário Soares, que diligentemente tenta bater o recorde de afirmações esdrúxulas na mesma semana, estranhou que Cavaco Silva não fosse julgado pelo "caso" BPN. Com a paciência que não dedica aos jornalistas e populares que o insultam, o Prof. Cavaco remeteu o Dr. Soares para os esclarecimentos que já prestara sobre a matéria e que, sendo verdadeiros, o colocam na posição de simples depositante do banco em questão. Segundo o Expresso, o Dr. Soares terá enviado um discreto pedido de desculpas ao chefe da Casa Civil, confessando que não dera pelos ditos esclarecimentos. Mas essa não é a questão.

A questão é a radiante facilidade com que o Presidente da República está sujeito ao tipo de ataques que ninguém ousa lançar aos ex-presidentes. Veja-se o mero exemplo da Fundação Mário Soares, que em 2014 receberá 210 mil euros do erário público, a juntar aos cerca de milhão e meio que já recebeu entre 2008 e 2013. Não espantaria que, em tempos de crise extremada, um populista pedisse o julgamento do Dr. Soares e dos benfeitores do Dr. Soares por aquilo que qualquer cidadão menos cauteloso no verbo poderia classificar de roubo, embora um roubo legalíssimo. O espantoso é que esse populista não surgiu. O respeitinho que o Dr. Soares suscita é directamente proporcional ao desrespeito que o próprio dedica ao mundo em seu redor, desde o Chefe de Estado ao simples contribuinte. Em países normais, semelhante fenómeno deveria servir de alerta. Aqui, serve de modelo.




A provocação e a serenidade



 Para quem abomina a propriedade privada e venera a estatal, a CGTP possui uma noção peculiar de ambas. Ao longo de um fascinante debate que durou semanas, a central sindical exigiu dispor de duas pontes em Lisboa e no Porto como se ambas pertencessem à espantosa multidão que presumivelmente viria gritar contra o Governo, a austeridade, a troika e etc. Contas feitas, o solitário motivo de espanto foi a pequenez da empreitada.

A cada dia, passam pela Ponte 25 de Abril cerca de 150 mil carros, talvez 300 mil criaturas. Proibidos de desfilar a pé, os fiéis do sindicalismo conseguiram que umas dúzias de autocarros percorressem o tabuleiro devagarinho. À saída, em Alcântara, as notícias da "concentração" falam em "milhares de pessoas", maneira genérica e simpática de descrever o que, à hora a que escrevo, tresanda a fracasso.

No Porto, onde as previsões arriscavam 30 mil manifestantes e não houve a divertida desculpa da chuva, "fracasso" tresanda a eufemismo: a TSF contou "centenas" de indignados. A "capacidade de mobilização" da CGTP só impressiona por comparação com a do microscópico Movimento Que Se Lixe a Troika, que normalmente mobiliza com dificuldade a quantidade de elementos de uma equipa de râguebi (sem suplentes). Ou por comparação com os poderes místicos que comentadores de diversa índole lhe atribuem.

A única proeza que a CGTP cometeu no sábado prende-se com o facto de as autoridades terem por sua causa encerrado ao trânsito uma série de ruas nas duas maiores cidades do país, afinal subjugando o lendário interesse comum à ambição imediata do extraordinário Arménio Carlos, leia-se atrapalhar a vida alheia.

Sem querer, e referindo-se ao FMI, o Sr. Arménio afirmou ao DN o essencial sobre a relação do sindicalismo com a sociedade: "Aqui mandamos nós." É o que parece, por muito que apeteça perguntar porquê. Ainda a propósito do FMI, o Sr. Arménio prosseguiu: "Respondemos à provocação com serenidade." E nós, incluindo os milhões que por óptimas ou péssimas razões já não aguentam o Governo mas não se iludem com prepotentes e reaccionários no pior sentido, pelos vistos também.

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