O resultado das guerras costuma ser determinante no destino das
nações, e ganhar ou perder depende frequentemente, como a História
mostra, da vontade e da capacidade de uso da força.
Como dizia Tu Yu em “A Arte da Guerra”, de Sun Tsu (séc. IV a.C.):
“Há ocasiões, na guerra, em que muitos não podem atacar
poucos e outras em que os fracos podem dominar os fortes. Quem tais
circunstâncias souber manipular, sairá vitorioso.”
Esta é uma verdade cartesianamente evidente que podemos comprovar não
só nas guerras que a História documenta, mas também nos episódios de
pancadaria que eram comuns na infância de anteriores gerações em tempos
em que, pelo menos os rapazes tinham de, por si mesmos, literalmente
lutar para estabelecer a sua posição na hierarquia dos grupos de que iam
fazendo parte. É verdade que os mais fortes tinham uma vantagem
inicial, pela percepção de poder que incutiam nos outros, mas alguns
putos, mais reguilas e destemidos, ainda que franzinos, conseguiam, em
regra, marcar também a sua posição, porque eram temerários e não se
encolhiam.
Foi assim também em incontáveis batalhas e guerras.
Para não ir mais longe, em Aljubarrota, numa batalha cujo aniversário
se comemorou há três dias, o exército castelhano, ainda que largamente
superior, em número, armas, treino e equipamento, desmoronou-se
psicologicamente, debandou desordenadamente, e sofreu uma espantosa
derrota.
No Afeganistão, para além das estratégias, das tácticas, dos
pormenores, e das diversas incidências circunstanciais, terá acontecido
algo parecido e o Exército afegão, muito superior em número, equipamento
e organização, evaporou-se quase instantaneamente face a uma horda de
“estudantes de teologia” cujas únicas vantagens são intangíveis ,como a
determinação, o querer e sobretudo uma crença.
Porque razão isto aconteceu, ainda se irá apurar em pormenor e haverá certamente as mais especiosas teorias.
Na minha opinião, o facto de ter sido formado e treinado à imagem do
Ocidente, segundo um modelo funcional que há muito deixou de valorizar
os incorpóreos de combate, para apostar todas as fichas no gesto
técnico, no saber fazer, na tecnologia, na máquina, terá sido uma das
explicações.
Este Exército, referem aqueles que por lá passaram, tinha tudo menos
coesão e vontade de lutar e não tinha esses intangíveis, porque não só
eles escasseiam também no arsenal daqueles que o construíram, como as
próprias lealdades tribais se sobrepõem ali a qualquer identidade do
tipo nacional.
O Ocidente, do qual fazem parte os militares que tentarem construir
aquele Exército, é também cada vez mais uma frágil construção kantiana,
relativista, que abomina o nacionalismo, aspira a ilegalizar a guerra e
se acredita já para lá da História, tendendo a pensar que as guerras são
indesejáveis reflexos de um mundo antigo e deixando-se embalar na ideia
de que só devem ser travadas em tabuleiros assépticos, desenhados
segundo determinadas regras.
Como nas guerras reais, o “outro” não colabora e não hesita em usar
as regras “éticas” do inimigo para se proteger e atacar, os mais fortes
surgem frequentemente em manifesta desvantagem porque embora disponham
de capacidades organizacionais e tecnológicas aparentemente superiores,
estão cada vez mais limitados no seu uso por uma intrincada teia de
condicionamentos éticos, morais, legais, estratégicos, organizacionais e
instrumentais que os transformam em Gullivers, enojados de si mesmos e
voluntariamente à mercê de liliputianos determinados.
Por isso, não ganharão nenhuma guerra em que se confrontem com um
“hostis” determinado e coeso. Essa foi a razão pela qual a guerra no
Afeganistão se arrastou ao longo de tantos anos.
A NATO e os países que colocaram tropas no terreno,
auto-limitaram-se nos objectivos, nos meios, nas estratégias e no
próprio uso da força face a inimigos que, sabendo não ter hardware
para vencer, transferiram o esforço para o campo das vontades e dos
interditos (legais e morais). No Afeganistão, o combate foi sempre
levado a cabo sob múltiplas restrições e caveats a que, em
2006, o antigo SACEUR (Comandante Supremo Aliado para a Europa) da Nato,
o general James Jones, chamou “cancro operacional”.
Como se a guerra fosse uma justa de cavalaria, com lanças embotadas e cavaleiros galantes e leais.
A vitória nestas condições era manifestamente impossível.
O efeito cumulativo e corrosivo das auto-limitações ao uso da força,
traduz-se na redução da capacidade de dissuasão, encorajando os pequenos
actores a avançar.
E assim, tendo vergonha de explorar a sua superioridade tecnológica,
temendo as baixas próprias, civis e do inimigo, atormentado pela
compulsão moralista de limitar os danos infligidos ao inimigo, o
Ocidente vê-se sempre na contingência, ou de combater em desvantagem ou
de declarar unilateralmente a derrota e render-se.
É que, quando as batalhas não se travam ou não decidem, a guerra é um
mero teste de vontades e será ganha por aquele que a mostre como
inabalável. Quem usa a força de forma previsível, tíbia, limitada e
pouco dissuasora, estimula apenas a agressão e não a desistência do
inimigo.
Foi assim que os EUA perderam a guerra do Vietname, foi assim que a NATO perdeu no Afeganistão.
Mas a fuga desordenada do Exército afegão, tem uma outra causa: a
desastrosa decisão da Administração Biden, embebida até à medula de
ideologia “woke”, de não lutar.
Não lhe teria sido difícil parar a ofensiva taliban.
Com alguns ataques aéreos maciços tinha feito duas coisas
essenciais, no campo das vontades: incutir medo aos atacantes,
dissuadindo-os de avançar; e dar confiança ao Exército afegão. A
dissuasão depende da percepção (pelo adversário) da nossa capacidade e
vontade de usar a força e a Administração Biden deu todos os sinais de
que não tinha essa vontade.
Em consequência, os taliban avançaram com o destemor do puto reguila e
os soldados do Exército afegão percepcionaram-se a si mesmos como
derrotados. Ninguém luta muito por algo a que não “pertence” e dai ao
medo e ao pânico foi um instante e o matulão fugiu do recreio acossado
pelo puto franzino.
O que há aqui é sobretudo uma assimetria de querer.
De um lado há paixão, causas, crenças e outros intangíveis; do outro
lado, apenas armas e gente que não se reconhece em nada de relevante,
que não tem um “nós” que agregue e pelo qual lute. De um lado
identidade, pertença e coesão; do outro alteridade, relativismo e
atomização.
Como escreveu Yeats, em The Second Coming (1919):
“The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.”
(“Aos melhores faltam convicções,
enquanto os piores estão cheios de uma intensidade apaixonada”).
Esta falta de querer e de pertença, é também facilmente discernível
nas nossas sociedades nas quais, por via ideológica ou por emergência de
determinados valores que substituem aqueles pelos quais se luta e se
morre, o nosso “nós” está a desagregar-se e a tornar-se detestável a
largos sectores da sociedade, conduzindo ao ódio a si mesmo e ao grupo
do qual se faz parte.
Anteontem, Yanis Varoufakis, o darling grego da esquerda festiva e woke,
manifestava a sua alegria pela “derrota do imperialismo e do
liberal-neo-conservadorismo”, o qual aconteceu às mãos de um movimento
retrógrado islamista. Quanto às mulheres, condenadas à irrelevância, à
ignorância e à subalternidade, atirou-lhes um hipócrita “aguentem-se”.
Que diria a espantosa criatura se fosse a sua filha a ter de
“aguentar-se” na escravatura?…
Esta derrota no Afeganistão não é contudo um mero problema local, mas mais um sinal de que o matulão tem medo e foge.
Os inimigos do Ocidente percebem bem isto e, tal como a URSS aproveitou a débacle
americana do Vietname para avançar em todos os palcos, naquilo que,
durante uns tempos, foi uma ofensiva imparável, o que se segue a esta
derrota, e sobretudo à forma como ocorreu, vai reforçar as percepções de
que o recreio tem novos senhores.
E quando o antigo senhor se retrai, trai os amigos e se morde a si
mesmo, como está a acontecer pela marcada divisão interna, a perda de
coesão, de orgulho nacional, e de pertença, as hienas avançam e impõem a
sua regra.
Esta Administração americana, tão louvada pelos média, tão protegida
pelas redes sociais, tão lustrada pelos fracos políticos europeus, soma
desastres sobre desastres e, a menos que haja uma ressurgência do
patriotismo, da confiança e do orgulho nacional, o Afeganistão poderá
muito bem ter sido o prego mais determinante no caixão da era americana.
E, por consequência, o sinal do advento de uma nova era na qual os
nossos descendentes, aqui também na Europa, vão ter de sair do
condomínio kantiano e enfrentar por si mesmos a realidade hobbesiana que
os novos bárbaros lhe trarão até às portas.
Num conflito existencial o que importa é quem prevalece, e não se
pode ser agnóstico ou neutral em questões existenciais. Há que assumir
que, em determinadas circunstâncias, o uso da força não só é legítimo
como necessário. Mas só eficaz quando se baseia num núcleo duro de
valores indiscutíveis, em torno dos quais se endurece a coesão.
Quem deseja a paz, não pode vacilar na vontade de pagar o preço desse
bem essencial que jamais foi gratuito. E que, muito menos, depende dos
apelos patéticos do Secretário-Geral Guterres e do Papa Bergoglio, cujas
intervenções cada vez mais fazem lembrar a converseta das misses nos
concursos de beleza.
Igitur qui desiderat pacem, praeparet bellum (“Portanto,
quem quer a paz, prepare a guerra”) escreveu Vegécio, há mais de 1.500
anos. Oxalá não tenhamos de reaprender isto da pior maneira.
José do Carmo
Editor de Defesa do Inconveniente
** O autor usa a norma ortográfica anterior.