5. Interregno afegão ou começa a jihad
Se o 11 de Setembro de 2001 começou a nascer em 1º de fevereiro de 1979, com o retorno triunfal do aiatolá Khomeini a Teerã, que levaria à guerra Irã-Iraque de 1980-1988 e esta à invasão do Kuwait por Saddam Hussein em 1990, levando por sua vez as tropas americanas à vizinha Arábia Saudita num movimento preventivo, e encolerizando um jihadista saudita chamado Osama Bin Laden então recém-aposentado, o segundo espasmo uterino do 11 de Setembro deu-se em 25 de dezembro daquele mesmo ano de 1979: quando a URSS invadiu o Afeganistão para apoiar o governo militar esquerdista de Cabul, ameaçado por milicianos tribais e islâmicos contrários às suas reformas modernizantes, e que agora olhavam para Teerã. Além disso, a revolução iraniana, se fora antiamericana, também era antissoviética: o aiatolá Khomeini e seus asseclas de turbante perseguiram e massacraram os membros do Partido Comunista Iraniano com tanta ferocidade quanto invadiram a embaixada americana. A eventual queda do governo de Cabul, além da perda de um aliado, significaria a exportação da revolução islâmica para o coração da Ásia Central. Nada que a URSS, no auge da Guerra Fria, estivesse disposta a aceitar.
Mas tudo deu errado. O fator religioso fez o papel que, em outros países, seria do nacionalismo, de agregar e estimular os combatentes locais contra um invasor estrangeiro. Não só: pois o islã não tinha um apelo apenas local. Assim, surgiu uma espécie de repetição farsesca das Brigadas Internacionais que, nos 1930, saíram voluntariamente de todo o mundo para lutar na guerra civil espanhola, estimuladas pela solidariedade socialista e pela luta antifascista. Cinquenta anos depois, seria a vez das brigadas internacionais islâmicas que foram lutar voluntariamente na guerra afegã, estimuladas pela solidariedade muçulmana e pela luta contra os “infiéis”.
Ao mesmo tempo, o contexto global, ou extraislâmico, era o do auge da Guerra Fria. Nele, os inimigos do meu inimigo, no caso, a URSS, eram meus amigos. Em 1984, os EUA passaram a fornecer aos mujahedin mísseis leves terra-ar da família Stinger, capazes de, a partir dos ombros, derrubar um helicóptero de ataque e mesmo um caça MIG. Os soviéticos perderam primeiro o controle do ar e depois a guerra. Acabariam por deixar derrotados o Afeganistão em fevereiro de 1989. Antes do final desse ano, e tendo a derrota no Afeganistão como golpe de misericórdia, a própria URSS deixaria de existir.
Parte importante do mundo comemorou o fim da URSS. Assim, enquanto a esquerda, com exceções, lamentava o fim da “grande pátria socialista”, apesar de toda sua apregoada rejeição (mais de boca do que de coração) ao stalinismo, os liberais e os muçulmanos a aplaudiram. Os primeiros por motivos óbvios. Os segundos por motivos igualmente óbvios – ao menos para os próprios militantes muçulmanos. Pois estes viam a URSS como uma potência imperialista e ateísta, contra a qual deram seu sangue (o sagrado sangue dos mártires) no Afeganistão por dez anos.
A derrota e a subsequente implosão da URSS não seriam, porém, seguidas imediatamente pela paz no Afeganistão. Ainda haveria uma guerra civil para decidir quem, entre os muitos senhores de guerra tribais, ocuparia o poder agora vazio em Cabul. A vitória acabou nas mãos de um grupo islâmico apoiado, principalmente, pelo vizinho Paquistão: o Taleban. Corria o ano de 1996. Bin Laden retorna, vindo de seu exílio no Sudão.
Cinco anos depois, após vários ataques indiretos durante os dois governos Clinton, entre os quais às embaixadas americanas na Tanzânia e no Quênia e ao encouraçado U.S.S. Cole no Mar da Arábia, a Al Qaeda está pronta para seu grande ataque ao coração dos EUA. Ou melhor, aos corações dos EUA, animal ao menos tricárdio: o coração econômico, representado pelo Word Trade Center; o coração militar, representado pelo Pentágono; e o coração político, representado pela Casa Branca. Os três seriam atacados ao mesmo tempo naquela manhã de 11 de setembro. A Casa Branca só não foi destruída porque o avião a ela destinado atrasou vinte minutos na decolagem. Com isso, quando foi sequestrado em voo, seus passageiros receberam ligações de parentes contando dos ataques ao WTC e ao Pentágono, acontecidos minutos antes. O vôo 93 da United Airlines caiu na Pensilvânia já em rota para Washington, durante a luta corpo a corpo dos passageiros e tripulantes contra os sequestradores.
6. Saddam, that bastard
Havia de fato uma ligação entre o Iraque de Saddam Hussein e o 11 de setembro, como pretendia Bush-filho. Pois o 11 de Setembro foi resultado direto da instabilidade geopolítica do Oriente Médio causada por Saddam a partir de 1991. E se Bush-pai conseguira obrigá-lo a sair do Kuwait, também deixaria no poder um Saddam machucado, pronto para aproveitar qualquer oportunidade para causar problemas: Bush-pai, diplomata de carreira e membro dos serviços de inteligência com conhecimentos profissionais da Ásia, temia a instabilidade do país com a queda de Saddam, e a eventual subida ao poder de mais uma teocracia islâmica, imposta pelos xiitas do sul com apoio do vizinho Irã.
Saddam manteria tropas ostensivamente na fronteira saudita, estressando o já estressado mercado mundial de petróleo, e ajudaria também ostensivamente os grupos palestinos que se opunham ao caminho recém-adotado (Oslo, 1993) pela OLP, de negociações com Israel. Depois de 11 de setembro de 2001, resultado e culminância de uma década de instabilidade gerada pelo ditador iraquiano, derrubar Saddam era mais do que um desejo dos EUA. Em muitos sentidos objetivos, era uma necessidade.
Bush-filho errou ao acreditar que seria mais fácil dizer que Saddam era aliado da Al Qaeda, além de mentir ao afirmar que ele possuía armas de destruição em massa, tornadas intoleráveis com o 11 de setembro. A Al Qaeda era inimiga de Saddam Hussein desde sempre, e ele não tinha tais armas. Mas como explicar tudo isso para o grande público em dois minutos pela TV? A verdade é que, além de estar na origem do 11 de Setembro, ao ameaçar invadir a Arábia Saudita natal de Bin Laden e levar o rei a pedir a presença americana em 1991, a grande instabilidade mundial gerada pelo 11 de Setembro não poderia conviver, ainda por cima, com a continuidade da pequena grande instabilidade regional representada por Saddam Hussein.
Bush-filho invadiu o Afeganistão com autorização da ONU para acabar com o governo pária do Taleban e com a Al Qaeda por ele protegida, e o Iraque sem autorização da ONU para acabar com governo desestabilizador de Saddam Hussein. Mas não foi o petróleo?! Claro, foi o petróleo. Aproveitar toda essa confusão para garantir a mão na mesa do grande jogo para as próximas décadas etc. Enquanto isso, os EUA compram boa parte de seu óleo da Venezuela de Chávez. Poderiam muito bem comprar de Saddam. Aliás, haviam feito isso mesmo por muitos anos. Nada impedia que continuassem a fazê-lo, assim como sempre fizeram com a Arábia Saudita. A não ser, é claro, as atitudes erráticas e perigosas de Saddam Hussein desde a não-vitória na guerra contra o Irã em 1988 – cuja causa foi a revolução iraniana de 1979. Revolução popular que, em seguida, tornou-se islamofascista. Não é novidade: a Revolução Francesa resultou no Terror jacobino, e a Revolução Russa no stalinismo. Revoluções são, afinal, como as guerras: sempre se sabe como começam, mas jamais como terminarão.
Resta apenas imaginar alternativas. Como a queda de Saddam Hussein afinal se revelou uma antevisão da queda de outros ditadores árabes dez anos depois, o fim desses ditadores talvez acabe por levar de roldão, depois de Muamar Kadafi, também Bashar Assad no Síria e os teocratas islâmicos em Teerã. Desde que, obviamente, não se abram assim as portas para novos teocratas islâmicos...
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