O Egipto, a Tunísia e a Líbia vão ter que escolher entre Sharia ou sharia light, mais cores não há, e o melhor é os
islamistas ganharem as primeiras eleições, é o que nos diz Hamed Abdel-Samad, um alemão de origem egípcia que dá aulas no Instituto de História
Judaica na Universidade de Munique e permaneceu meses seguidos na praça Tahrir.
Será que o Norte de África, depois do
esperançoso sinal de revolução, vai escolher novamente a via da ditadura? Temo
que sim. Será que os bombardeamentos da NATO aplainaram o caminho para a
instauração da sharia na Líbia? Será que Bouazizi, o vendedor de legumes
tunisino, se imolou para que os integristas islâmicos agora tomem o poder no
seu país? Será que milhões de egípcios se manifestaram para que finalmente os
militares partilhem o poder com os Irmãos Muçulmanos? Será que o sonho árabe
acerca de democracia e liberdade não passa de um sonho? É perfeitamente
possível responder com um SIM a todas estas perguntas, mas a situação é
mais complexa.
Sharia como cavalo de Tróia
No Norte de África estamos perante um normal
desenrolar de acontecimentos em período pós-revolucionário. Em primeiro lugar
vêm à tona os males da própria sociedade, que a ditadura encobriu durante
muitos anos: uns querem voltar ao período despótico, onde tudo era previsível,
outros abraçam a primeira alternativa que se cristaliza. E como nos três países
acima referidos não há muito por onde escolher, as pessoas neste momento
hesitam entre sharia e sharia light. Uns querem integrar a lei islâmica em
estruturas democráticas, outros querem que a sharia seja logo de início o metro
padrão. Em ambos os casos a sharia é um cavalo de Tróia que pode fazer estagnar
todo o processo renovador e fazer recuar em séculos estes três países.
Em todo o caso, será o Islão compatível com
democracia? A resposta tem que ser um claro NÃO. Atrás da euforia provocada
pela revolução árabe, muitos viram, cedo de mais, nos movimentos de libertação
um sinal de que Islão e democracia são conciliáveis. Mas estes observadores
desconhecem possivelmente a essência do Islão e desta revolução - ela não foi
possível graças ao Islão, mas apesar dele. Antes e durante as revoltas as
autoridades religiosas no Egipto, Líbia, Síria e Marrocos insistiam junto da
população para não participarem nestas manifestações, porque seriam
‘anti-islâmicas’ e poderiam conduzir ao desmembramento dos respectivos países.
Até mesmo a oposição islâmica no Egipto, como os Irmãos Muçulmanos, mantiveram
inicialmente uma distância cautelosa – até ao momento em que era mais do que
evidente que a ditadura tinha os dias contados. Só nesse momento é que se
atreveram a sair à rua tentando monopolizar a revolta, e ultimamente, para
ganhar a simpatia da juventude, até falam em democracia.
A religião é parte do problema
Mas a democracia nunca nasceu do ventre de uma
religião, quase sempre se instaurou contra a vontade de autoridades religiosas.
O Vaticano não se democratizou nem nunca liderou movimentos democráticos, foi
simplesmente despojado do seu poder pelo Iluminismo. Mas este tipo de
cepticismo em relação à religião é, na maioria das sociedades muçulmanas, ainda
inexistente. A maioria dos árabes dizem que a religião tem que fazer parte da
solução. Eu digo que a religião é parte do problema. O Islão, por razões
muito simples, não se ajusta com uma democracia: o Islão parte do princípio que
Deus é o legislador sobre cujas leis, obviamente, não pode haver discussão.
Isto significa uma equidade entre a lei e a moral. A democracia, ao contrário,
vê o homem como legislador e confere-lhe toda a liberdade, enquanto isso não
afectar a liberdade dos outros. Mas o Islão também não precisa de ser adaptado
a um sistema democrático para que a democracia funcione num país muçulmano. É
apenas necessário compreender o contexto histórico do Corão, para assim se
poder relativizar o conteúdo. Mas a maioria no mundo árabe ainda lá não chegou,
e a minoria consciente deste problema evita o confronto. É verdade que a
maioria é a favor de um estado de direito, separação de poderes e eleições
livres. Mas sobre a defesa da liberdade individual as opiniões divergem
bastante.
Uma democracia que respeite a tradição
islâmica
Há uns meses atrás falei no Cairo com Abd
al-Munem Abu Futuh, o candidato à presidência no Egipto e ex-líder dos Irmãos
Muçulmanos. Ele não é a favor de uma república islâmica, porque nenhum homem se
pode pronunciar em nome de Deus. Não é adepto do modelo persa mas sim do modelo
turco: quer uma democracia que respeite a tradição islâmica e sobretudo as
particularidades, como ele diz, da sociedade egípcia. Por isso é que ele, como
presidente, não toleraria ‘liberdades desregradas’ que não se coadunem com o
Islão. Porque, segundo ele, nenhuma democracia pode sobreviver se não tiver em
conta as particularidades culturais de um país. Precisamente a mesma
argumentação é utilizada por Rachid Al-Ghanouchi, o líder do Partido Tunisino
para o Renascimento Muçulmano Islâmico (Ennahda). Mas os integristas
religiosos, que querem impor a sharia na totalidade do mundo árabe com enorme
apoio financeiro da Arábia-Saudita, pensam de uma maneira completamente diferente.
Na Líbia, Mustafa Abdul Jalil, o vitorioso
Presidente do Conselho Nacional de Transição, não quer esperar que um
parlamento eleito crie uma constituição para o país. Segundo ele o Corão será a
futura constituição do país. Pelos vistos a Líbia não tem outra alternativa a
não ser basear-se na sharia, porque até à queda de Kaddafi o país nunca teve
uma constituição, nem tampouco instituições políticas que pudessem servir de
modelo para o novo estado. Nesta situação os novos dirigentes podem apenas copiar
a constituição de um ou outro país europeu, ou fazer um apelo a uma legislação
que é aceite pela maioria. Mustafa Abdul Jalil acredita que a sharia poderia
servir para manter a lei e a ordem. Ele não percebe que está a trocar uma forma
de opressão por outra. Um problema adicional é a chegada ao poder de uma
geração que nunca fez outra coisa senão combater: jovens islamistas que nunca
tiveram um emprego, mas aprenderam a manejar uma metralhadora.
E a NATO? O que é a NATO pode ainda fazer pela
Líbia? A NATO formou uma aliança com o Conselho de Transição sem capacidade de
decisão sobre as regras para o período após a morte de Kaddafi. Além disso a
Líbia tem muito petróleo e não está especialmente dependente do Ocidente. Se a
Europa começar a implicar, os líbios podem, nas calmas, estabelecer relações
comerciais com os chineses ou os russos.
Na Tunísia e no Egipto a situação é diferente
Para obter rendimentos estes dois países estão
dependentes do turismo e de investimentos estrangeiros e não se podem dar ao
luxo de se isolarem. É por isso que os integristas islâmicos no Cairo e em
Tunis se comportam de forma moderada, sublinhando que não querem introduzir a
sharia, mas simplesmente alguns princípios inspirados na sharia: justiça,
solidariedade e a preservação da espécie. Fazem-no por puro pragmatismo, sabem
muito bem que as expectativas dos jovens egípcios e tunisinos são enormes.
Estes últimos querem emprego e prosperidade, não querem mais promessas vagas.
Os integristas, por seu lado, vêem-se confrontados com um sério dilema: se
abandonarem os seus slogans agressivos, para melhor se integrarem na vida
política estabelecendo compromissos, perdem, em relação às massas,
imediatamente a auréola de gente pura. Mas se se mantiverem fiéis à lei
islâmica, com por exemplo uma proibição ao consumo do álcool e cobrança de
juro, isso vai afastar os turistas e os investidores e destruir milhões de
postos de trabalho. Por isso é que o jogo democrático é uma armadilha, em que
os integristas podem cair.
Por esta razão penso que o melhor é os
islamistas ganharem estas eleições e ficarem eles com a responsabilidade
política e económica, para que as massas finalmente percebam que política em
nome de Deus não vai dar rios de mel e de leite. Muito pior seria os liberais
ganharem as eleições e perderem-se no grande desafio que têm pela frente. Sobre
os escombros desta experiência falhada os integristas poderiam construir o seu
projecto divino.
P.S. Neste link podem ver uma
curta entrevista (em inglês) com um íman sírio que é a favor de um estado livre
mas com sharia! Porque, segundo ele, “a finalidade da sharia é apenas dar
liberdade, dignidade e paz às pessoas…”
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