G. K. Chesterton
A nossa época é uma época profundamente obscurantista. E tanto mais obscurantista quanto mais se arroga a representação exclusiva e definitiva de um pensar objectivo, laico e humanista, isento de anteriores superstições impeditivas do acesso à verdade e à liberdade, às liberdades, espelho de uma imparável evolução da Humanidade.
Uma das ideias nela muito difundida é a de que todas as religiões se equivalem:
- ou porque todas elas resultam de um apelo do e a um Transcendente comum e que, pela parcialidade e correspondente sectarismo de cada uma dessas visões, todas elas comungam de iguais virtualidades e culpas nos seus efeitos sociais e políticos - sobretudo culpas;
- ou porque se limitam a reflectir o temor e o tremor da humanidade, e benefícios em busca de uma protecção na luta contra os elementos hostis e ameaçadores da sua existência, antes deste dealbar da sua libertação pelo pensamento científico e respectivas conquistas;
- ou porque não passam de uma artimanha destinada a que uns quantos cimentem o seu poder sobre os restantes, manobrando-os e explorando-os mais facilmente e a seu bel-prazer;
- ou porque resultam de uma síncrese de todos estes factores, próprios, uma vez mais, de uma espécie que não atingiu, e estará ainda muito longe, da sua maturidade - e ainda que, céus!, se dirige já para as estrelas, podendo contaminar todo o universo com a sua moléstia moral.
Neste papaguear generalizado entre os eruditos e disseminado superficialmente através de uma vulgata dos conceitos – entre a maioria dos políticos e a restante população da civilização ocidental (mas só desta!) – com a preciosa ajuda dos jornalistas, esses aprendizes da informação que tanto têm contribuído para a generalização da confusão e da degradação, um dos pontos fortes da autoflagelação decadente da moda é que o cristianismo é uma religião como qualquer outra.
E não é.
Dizia Chesterton que os cristãos não são nem melhores nem piores do que os outros. Só são piores na medida em que teriam a obrigação de serem melhores.
Chesterton tinha toda a razão.
No cristianismo, e só no cristianismo, se encontra a raiz que levou ao surgimento do conceito de humanidade, de uma irmandade humana, pela ideia de uma cristandade universal – o budismo, ao dirigir-se a todos os homens mas ao fazer da salvação individual a sua pedra de toque, nunca foi capaz de o gerar.
E, mais ainda do que no budismo, é no cristianismo, e só no cristianismo, que a violência é condenada. Porque o é mesmo que em favor de Deus, quando Pedro é repreendido por Cristo ao puxar da espada para defender o Mestre. Porque Deus só é Deus de alguém enquanto for resultante do seu livre reconhecimento enquanto tal.
É no cristianismo, e só no cristianismo, que o estádio de desenvolvimento humano a que chamamos infância é valorizado pela boca do próprio divino, conferindo assim dignidade à totalidade da existência humana, dois mil anos antes do nosso tempo.
É no cristianismo, e só no cristianismo, como também Chesterton põe em relevo, que da boca do Enviado de Deus, um mero carpinteiro, saem não impropérios, ameaças, condenações e afirmações de grandeza, mas coisas do mais elementar bom senso, como um “que atire a primeira pedra quem ainda não pecou”. E em que, acrescento eu, o corpo é declarado como o Templo dos templos a Deus.
Estou a ouvir quem leia o que acabei de escrever a ripostar-me de imediato: “Mas, ó meu caro, não tem sido a história do cristianismo a negação de tudo isso ou, pelo menos, a sua negação quase total, a negação da vida? As crianças, por exemplo, não foram elas tantas vezes utilizadas, mal tratadas ou mortas no meio do fanatismo da cristandade? Não foram os não-cristãos tantas vezes perseguidos e aniquilados?”.
Sim.
Mas há nisso tudo uma diferença essencial, crucial.
É que os princípios nos quais dizem firmar-se os que o fizeram, os condenam sem equívocos, tal como Chesterton faz notar.
A cristandade terá, tal como os muçulmanos e outros o têm feito recentemente e por diversas vezes, sacrificado crianças e jovens para fins políticos e ambições pessoais, apresentando-os como “mártires do Reino de Deus”. Mas, ao contrário dos restantes, que nisso são sancionados pelos seus textos sagrados, o Evangelho faz desses cristãos mentirosos e condena-os a um julgamento divino inexorável.
A cristandade poderá ter sofrido poderes discricionários e prepotentes em nome de uma Cidade de Deus governada por iluminados de todos os matizes. Mas é nos textos cristãos – no “quem não é contra nós é por nós” (astutamente invertido pelo ditador Salazar) e no episódio da Paixão de Cristo que referi – que estão as sementes e as raízes da argumentação de John Locke em prol de uma sociedade democrática. A democracia ocidental tem a sua origem no cristianismo, não na “democracia” grega, assassina de Sócrates, o único democrata de Atenas, como ele sabia e disse aos seus juízes, incomodando-os e irritando-os.
A cristandade poderá ter depreciado o corpo como Templo de Deus, como o laboratório da Vida, criada por Deus. Mas essa depreciação e mesmo a sua mortificação é fruto (como qualquer estudante de Filosofia ou de Cultura Clássica o sabe) da infiltração dos misticismos grego e oriental, que consideravam o corpo como o túmulo da alma, logo no cristianismo dos primeiros séculos (“soma”, corpo, e “sema”, túmulo, têm a mesma raiz). Porque a sua glorificação vem, no Evangelho, na boca do próprio Cristo.
De facto, os valores que – ateus, crentes ou nem por isso – dizemos contemporâneos e as características que atribuímos aos seres humanos da futura humanidade diferente, tudo isso se encontra no Evangelho. Porque o cristianismo é diferente de tudo o mais.
Este o sentido da frase de Chesterton, para quem ele é a única religião que celebra a Vida, na acepção mais fundante do termo.
Defender os valores cristãos é, portanto, como se vê, defender e incentivar a evolução da espécie humana na própria óptica dos ateus e dos indiferentes e não o oposto, como o venenosamente prepotente obscurantismo reinante na nossa era pretende. E isto leva-me a um último aspecto não menos importante, o qual, em profunda relação com os anteriormente apontados, se torna também não menos decisivo.
O cristianismo é, enquanto religião do corpo, uma religião do finito e, por consequência, do limite. O mundo, qualquer mundo, é “o lugar” e por lugar entende-se algo de-limitado, de-finido. Donde se infere, por tabela, dois planos distintos inter-relacionados – tal como a pele é, em simultâneo, o que, separando-nos, nos liga inevitavelmente a tudo o mais. O mundo é o plano do limite, é “o caso”, na deliciosa expressão de Wittgenstein, o que faz com que tudo o que nele acontece tenha, necessariamente, limites.
O Cristo que toca os corações das boas almas de todos os credos e continentes, que anda na boca dos cantores de rock, nos discursos e cerimónias do correcto humanismo do Ocidente de todos os quadrantes políticos e que eu próprio pus em destaque, até agora, nas suas implicações mais profundas, é o Cristo compassivo, manso, misericordioso. A sua firmeza é a firmeza da resistência, de certo modo passiva, à barbárie, firmeza que afirma o que a esta se opõe.
O Cristo de que não falei e que todos eles, por diferentes motivos, procuram ignorar o mais possível é o outro, o que expulsou os comerciantes do Templo, chamando-lhes ladrões, virando-lhes as mesas e mesmo chicoteando-os. Coisa estranha, já que aparentemente contraditório não apenas com o fundamental da sua atitude e mensagem mas também com o facto de ser uma característica da Antiguidade que todos os actos fundamentais da vida humana, do comércio ao acto sexual que consumava o casamento, tivessem lugar no templo, assim ligando o mundo profano ao mundo sagrado, com o Templo no lugar de “pele” do profano.
Ironicamente, é a esquerda, na sua superficialidade, a que menos vira a cara e mais se aproxima de um enquadramento lúcido ao que é narrado. Na época, essa relação entre o profano e o divino estaria – dizem-nos os documentos que nos dão conta do ambiente religioso entre os judeus da época, divididos entre o judaísmo tradicional e o judaísmo helenizado, o ascetismo orientalizado e outras tendências que incluíam elementos das diferentes religiosidades presentes na região, num crescente clima de relativismo – muito desvirtuada pelo pendor para o mero comércio a pretexto do religioso.
Se Pessoa, na Mensagem, diz que no Portugal em que vive, “ninguém sabe que coisa quer/ninguém sabe que alma tem/ nem o que é mal nem o que é bem”, isto é, que Portugal, não tendo limites, não existe por falta de limite, por inexistência de de-finição que o faça existir, pela separação que o torne dinâmico (e note-se que definir-se é o oposto de tornar-se rígido), que o torne significativo, sinal da presença de algo vivo, Cristo age no mesmo sentido.
Cristo age e, pela acção, marca o limite a partir do qual deixa de ser possível estabelecer a ligação e a interacção entre o homem, a sua acção e o seu destino, isto é, deixa de ser possível criar vida entre o sentido e o valor que a serve e a mede. Ao expulsar os mercadores do Templo, não está a condenar os exploradores do povo mas a travar o esvaziamento da existência humana para o nível da mera sobrevivência animal, mais aperfeiçoada e sofisticada, a afirmar um conjunto de valores vitais.
Porque não é possível transigir sem que isso implique o desaparecimento e a morte de quem transige. E se são os vendilhões quem representa e concretiza tal degradação e perigo, cristianismo significa não unicamente resistência activa, mas acção clara de repúdio.
Este é um Cristo que estraga os “arranjinhos” sempre possíveis de serem feitos com o lado que fica melhor na “fotografia”, publicada pela comunicação social com a conveniente regularidade. É um Cristo inconveniente, incómodo, não contextualizável na hipocrisia funda que vivemos. É um Cristo que não serve ao farisaísmo humanista, porque é um Cristo afirmativo.
E se há algo que faz guinchar os vampiros da cultura ocidental da nossa praça, que vivem do esgotamento da sua vitalidade, mistificando-o sem escrúpulos para servir os seus fins, é uma afirmação de cristianismo.
Concordo com Montesquieu quando aconselha a que não se pretenda dizer tudo no que se escreve, para que também o leitor possa completar assumir o texto e as suas conclusões, pela compreensão e pelos raciocínios que com ele aproveitou para fazer. Limitar-me-ei, portanto, por esse motivo e por escassez de tempo, a sugerir a quem teve a paciência de me acompanhar até aqui, que imagine o que eu poderia dizer quanto ao que provavelmente seria, a meu ver, a acção de Cristo no caso do juiz que sobrepôs a sharia à lei americana, referido no post d’O Lidador.
Peço desculpa pelas gralhas que possa haver no texto, inclusive as de ligação, mas já não tive tempo para o rever.
7 comentários:
"A democracia ocidental provém do cristianismo"
Um texto de elevadíssimo nível. E esta ideia de que a democracia e o cristianismo estão ligados, resume-se na frase de Nietzche, segundo o qual a democracia é a versão profana do cristianismo.
José Gonsalo: ”… também o leitor possa completar o texto,”
Excelente texto que dá para matutar durante alguns tempos.
Como leitor nem sequer quero mudar uma vírgula, mas no interesse do leitor acho – na minha MODESTA opinião - que este texto precisa de um tipo de letra um pouco maior e espaço entre os parágrafos.
Lidador:
Obrigado pelo apreço.
Quanto ao Nietzsche, ele diz isso mesmo, mas di-lo num sentido pejorativo quer para a democracia quer para o cristianismo, como sabe. Eu penso exactamente o contrário e ando a espicaçar a preguiça para ver se ela me deixa tratar do assunto um destes dias, num ou mais textos.
Talvez depois de um desses comícios e bebícios de que anda a falar desde há tempos, é claro. Para quando o primeiro?
CdR:
E acha muito bem, quero dizer, também julgo o mesmo. Mas, na altura, não tive tempo para isso. Vou ver se o consigo agora.
Sim, claro, Nietzsche não apreciava nem a democracia (homens massa, satisfeitos consigo mesmo...) nem o cristianismo (essa religião de escravos, como lhe chamava).
Mas isso não retira força à associação entre uma e outra, bem pelo contrário.
Um bom trabalho de síntese sobre este tema é a célebre obra de Fukuyama, "O Fim da História e o ùltimo homem". O "último homem" é, como sabe, uma das imagens criadas por Nieztsche.
O mais curioso neste texto é que você defende o cristianismo através da selecção de certos valores e ideias apregoados pelo cristianismo (por oposição a outras religiões), e julga-os segundo uma bússola de valores que é diferente do cristianismo. Faz sentido: se é para julgar e comparar, comparamos com coisas diferentes. Mas então, talvez a "religião" dessa bússola de valores seja ela própria superior ao cristianismo.
Não estou a dizer que esta defesa seja ilegítima ou que o cristianismo não tenha virtudes e não melhor do que outras religiões mas, definitivamente, não é a referência cultural de quem escreveu este texto em sua defesa ;)
(E fiquei com curiosidade de perceber porque é que o judaísmo é pior do que o cristianismo, acho que falta argumentação nessa área.)
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