Olavo de Carvalho:
Quaisquer que venham a ser os desenvolvimentos da onda de protestos no Brasil, sua primeira vítima está ali, caída no chão para não se levantar nunca mais, e ninguém sequer se deu conta da sua presença imóvel e fria: é a "direita" brasileira.
Durante décadas, desde os tempos do governo militar, os partidos e movimentos de esquerda vieram construindo sistemática e obstinadamente o seu monopólio das mobilizações de massa, enquanto o que restava da "direita" , atropelado e intimidado por acontecimentos que escapavam à sua compreensão, ia se contentando cada vez mais com uma concorrência puramente eleitoral, tentando ciscar nas urnas umas migalhas do que ia perdendo nas ruas.
Não sei quantas vezes tentei explicar a esses imbecis que o eleitor se pronuncia anonimamente de quatro em quatro anos, ao passo que a militância organizada se faz ouvir quantas vezes bem deseje, todos os dias se o quiser, dando o tom da política nacional e impondo sua vontade até mesmo contra um eleitorado numericamente superior.
Mas a ideia de formar uma militância liberal e conservadora para disputar o espaço na praça pública lhes inspirava horror. Como iriam bater de frente na hegemonia do discurso "politicamente correto", se este, àquela altura, já se havia impregnado tão fundo nos seus próprios cérebros que já não viam perspectiva senão imitá-lo e parasitá-lo, na ânsia de ludibriar o eleitor e conservar assim os seus cargos, ainda que ao preço de esvaziá-los de qualquer mensagem ideológica diferenciada e própria?
Era inútil tentar fazê-los ver que, com isso, se enredavam cada vez mais, voluntariamente, na "espiral do silêncio" (v. Elisabeth Noelle-Neumann, The Spiral of Silence, The University of Chicago Press, 1993), técnica de controle hegemônico em que uma das facções é levada sutilmente a abdicar da própria voz, deixando à inimiga o privilégio de nomeá-la, defini-la e descrevê-la como bem entenda.
Alguns eram até idiotas o bastante para se gabar de que faziam isso por esperteza, citando o preceito de Maquiavel: aderir ao adversário mais forte quando não se pode vencê-lo. Belo mestre escolheram. O autor doPríncipe foi um bocó em matéria de política prática, um fracassado que esteve sempre do lado perdedor.
Assim, foram se encolhendo, se atrofiando, se adaptando servilmente ao estado de coisas, até o ponto em que já não tinham outra esperança de sobrevivência política senão abrigar-se sob o guarda-chuva do próprio governo que nominalmente diziam combater.
Ao longo de todo esse tempo, ia crescendo a insatisfação popular com um partido que fomentava abertamente o banditismo assassino, cultivava a intimidade obscena com terroristas e narcotraficantes, tomava terras de produtores honestos para dá-las à militância apadrinhada e estéril, estrangulava a indústria mediante impostos, demolia a educação nacional ao ponto de fazer dela uma piada sinistra e, last not least, expandia a corrupção até consagrá-la como método usual de governo.
Milhões de brasileiros frustrados, humilhados, viam claramente o abismo em que o país ia mergulhando. Essa massa de insatisfeitos, como o demonstravam as pesquisas, era acentuadamente cristã e conservadora.
Em 2006 escrevi: "Com ou sem nome, a direita é 70 por cento dos brasileiros. Um programa político ostensivamente conservador teria portanto sucesso eleitoral garantido". Mas, com obstinação suicida, a "direita" se recusava a assumir sua missão de porta-voz da maioria. Apostava tudo nas virtudes alquímicas da autocastração ideológica.
"Um pouco mais adiante – escrevi na mesma ocasião – , ela agravou mais ainda a sua situação, quando, após a revelação dos crimes do PT, perdeu a oportunidade de denunciar toda a trama comunista do Foro de São Paulo e, por covardia e comodismo, se limitou a críticas moralistas genéricas e sem conteúdo ideológico."
Etanto tempo se passou, tão grande foi o vazio, que de recuo em recuo essa direita foi abrindo, que a própria esquerda acabou notando a necessidade de preenchê-lo, mesmo ao preço de sacrificar uma parte de si própria e, como sempre acontece nas revoluções, cortar as cabeças da primeira leva de revolucionários para encerrar a fase de "transição" e saltar para as rupturas decisivas, as decisões sem retorno. Há mais de um ano o Foro de São Paulo vinha planejando esse salto, contando, para isso, com os recursos do próprio governo, somados aos da elite globalista fomentadora de "primaveras".
Como não poderia deixar de ser em tais circunstâncias, o clamor da massa conservadora acaba se mesclando e se confundindo com os gritos histéricos do esquerdismo mais radical e insano, tudo agora instrumentalizado e canalizado pela única liderança ativa presente no cenário.
Condensando simbolicamente essa absorção, a vaia despejada sobre a presidenta Dilma Rousseff no Estádio Nacional de Brasília, autêntica manifestação popular espontânea, já não se distingue da agitação planejada e subsidiada que acabou por utilizá-la, retroativamente, em proveito próprio.
Não se pode dizer que a esquerda tenha "roubado a voz" da direita, pois a recebeu de presente. A opção pelo silêncio, o hábito reiterado da autocastração expulsou a direita nacional de um campo que lhe pertencia de direito e de fato, e terminou por matá-la. Ela não se levantará nunca mais.
A insatisfação conservadora transmutou-se em baderna revolucionária e já não tem nem mesmo como reconhecer de volta o seu próprio rosto. Talvez algumas cabeças esquerdistas venham a rolar no curso do processo, mas as da direita já rolaram todas.
It is quite gratifying to feel guilty if you haven't done anything wrong: how noble! (Hannah Arendt).
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segunda-feira, 24 de junho de 2013
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7 comentários:
Dizia o camarada Agostinho Neto que a direita só tem hipóteses onde a esquerda falha. Ver as coisas deste modo é uma lapalissada. No que consegue ser a minha perspectiva deste lado do Atlântico, no Brasil estão ambas a perder e ambas a ganhar, cada uma em seu campo, já que nem uma nem outra têm razões para abdicar dos seus objectivos e cada uma pode aproveitar-se de diferentes aspectos da situação. O que me importa, o que, para mim, está em causa, é que, tal como a Revolução Francesa se dividiu entre Girondinos e Montanheses, com as consequências e as vicissitudes sociais e políticas futuras que daí advieram para a França e para o mundo, as coisas nunca mais foram as mesmas e a democratização da sociedade francesa e das restantes sociedades do planeta começou aí, pelo "hábito" de as pessoas, a população, o povo, se manifestarem e se mexerem politicamente (e isso inclui costumes e cultura) de outro modo.
Espero que tenha razão. Eu, receio que quem se vá mexer, e bem, seja o Lula.
Receio que o mexer político do povo tenha que esperar pelo fim da segunda próxima ditadura (admitindo que o presente regime ainda não é).
Os marxistas não gostam de perder nem a feijões.
José Gonsalo
Pareceu-me que você atribuiu as liberdades que hoje temos (e que já refluem a algum tempo) à revolução francesa. Discordo. A tradição de liberdade anglo-saxã, que agora está se tornando francamente minoritária mesmo nos países de origem, seguia uma outra linha diferente da revolução francesa, com outras bases, outras conclusões e gerando outro tipo de instituições. Os EUA foram fundados como uma república miniarquista, e suas instituições parecem ter sido copiadas, em parte, das suíças.
A mim parece que os filhos da revolução francesa não foram os países livres, mas a URSS, os países da cortina de ferro, China, Coreia do Norte, Cambodja, Cuba, o bolivarianismo, o terceiro-mundismo, o fascismo e o nazismo. O roteiro é sempre muito parecido, sempre inclui atiçar a plebe para obter legitimação, dar poderes absolutos a um grupo em nome da liberdade do povo, destruir a justiça em nome do bem comum, guerras internas (muitas vezes mortais) dentro do poder, e geralmente massacres pavorosos dos povos "libertados" (só os genocídios comunistas chegaram a algo entre 100 e 170 milhões de pessoas). Ao massacrar 10% da população da França, e reduzir a "justiça" a apenas um instrumento político, a revolução francesa inaugurou a era em que vivemos, a era em que são os próprios governantes os genocidas de seus súditos.
Finalmente, sobre as manifestações no Brasil, as pessoas que conheço que apoiam as manifestações, pelo menos aquelas a quem perguntei, acham que estão fazendo algo contra os corruptos "mensaleiros". Nem sequer entendem que os cabos-eleitorais dos mensaleiros e de seus apoiantes é que criaram as manifestações. Figurantes não sabem o roteiro do filme, amadores não são mais hábeis que profissionais, e só nos filmes de kung-fu acontece de um cego vencer uma luta contra alguém que enxerga. Os pecados serão cobrados na outra vida, mas pela burrice, pagamos aqui mesmo, nós e nossos filhos...
Sou brasileiro, e os colegas estranharão, talvez, o meu modo de expressar-me. Peço vossa paciência.
Quanto a mim, tanto a sua explicação como o português são transparentes. Limpinhos.
Chapelada.
Aprendiz:
Não, não atribuo à Revolução Francesa a origem das liberdades que hoje temos. É, como diz, na tradição anglo-saxónica que ela se encontra. A Revolução Francesa foi, por assim dizer a compreensão que bárbaros iluminados poderiam ter tido do pensamento estruturado gerado em Inglaterra (os alemães tiveram dele uma leitura centrada na moral e também podem limpar as mãos à parede) e que, por isso, espalhou a liberdade aos solavancos pela Europa e pelo mundo. Aos solavancos, entenda-se: às cabeçadas dolorosas e perigosas que eles provocaram até hoje. Mas, apesar de tudo, ajudou a espalhá-la.
Se me perguntasse qual o processo que eu preferiria como o único que tivesse ocorrido, julgo que não haverá dúvidas sobre qual seria. Mas o mundo é o que é, o mundo é diverso e tortuosos são os dinamismos e os seus caminhos. O princípio proudhoniano segundo o qual a revolução só existirá quando cada elemento da massa for revolucionário foi dos venenos paralisantes mais mortais para o mundo que alguma vez saíram dos laboratórios das ideias.
Para terminar, devo dizer-lhe que não tenho a mais pequena dúvida de que o PT se meteu nisso. Mas, do lado de cá da poça, também tenho muito poucas de que parte do tiro lhe estará a sair pela culatra e continuará a sair. Canalhice não é imaginação e, para enganar as pessoas por muito tempo, é preciso uma boa capacidade imaginativa, coisa que, manifestamente, falta à bota e à luva marxistas. Continuo a prever que, por muito sucesso que tenham, não terão tanto como já conseguiram noutros tempos e lugares, porque os resultados não podem ser eternamente es.condidos ou mascarados.
Finalmente, não peça nem paciência nem desculpa. Homem, faça-nos o favor de ser brasileiro!
De qualquer modo, lembrei-me agora de lho referir também, não se esqueça de que o pensamento político inglês moderno não vem de parto virginal. Ele surgiu somente, com John Locke, algumas décadas após os sete anos da Guerra Civil inglesa, da decapitação do rei Carlos I, em 1649, e da república presidida por Cromwell, que teve fim onze anos depois. E que o reinado de Carlos II bem como os seguintes não apresentaram enormes diferenças em relação aos que geraram a revolta popular e seu aproveitamento pelos senhores da república.
E ainda que, como certeiramente observava à época Voltaire, a tolerância, para os franceses, é artigo de importação.
Grato pelas respostas.
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