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O mais antigo encontra-se na afirmação de Aristóteles de que
“todo o ser humano deseja, por natureza, conhecer”. O que é inegavelmente
verdadeiro por simples constatação das características comuns aos indivíduos de
uma espécie que, através de um salto qualitativo na evolução do cérebro e em algumas
particularidades físicas, foi investido nas funções de assistente de gestão do
planeta.
O que Aristóteles passa por alto, porém (de boa-fé ou convenientemente
para o que pretendia com essa afirmação), é algo que se inclui na mesma experiência
em que se baseou para formular o princípio referido: que nem todos os seres
humanos se empenham de igual modo em obter conhecimentos tanto em extensão como
em profundidade, tal como nem sempre se encontrem preocupados por aí além
quanto a eventuais erros e injustiças que venham a cometer.
Descartes, já no século XVII, formulou o segundo desses
princípios, tentando, ao mesmo tempo, colmatar em parte as falhas de
Aristóteles. Define ele a razão, ou bom- senso, como a capacidade de distinguir
o verdadeiro do falso, capacidade que se encontra por igual em todos os seres
humanos. Se todos erramos, uns mais que outros, nos nossos raciocínios é porque
não utilizamos o método correcto, coisa que Descartes procura evitar propondo
um, de sua autoria, com base nos procedimentos lógico-matemáticos, do qual já
retirara muitos bons resultados. Se aplicarmos rigorosamente esse método,
chegaremos à verdade, tal a evidência com que as conclusões a que nos leva se
impõem ao nosso espírito. Mas não deixa de fazer notar que ele próprio, apesar
de tentar proceder desse modo, também se engana. Porquê? Porque a mesma vontade
que nos impele para o conhecimento leva também, pela sua intensidade, a que nos
precipitemos e, assim, não observemos os necessários passos a percorrer. Uma
questão de excesso de impetuosidade, portanto.
O tempero final veio de Jean-Jacques Rousseau. Para o suíço
que escreveu, poucos anos antes da Revolução Francesa, o primeiro tratado da
pedagogia humanista na forma de romance, Emílio,
o ser humano é igual e originalmente curioso e bom, é um “bom selvagem”. O seu
desenvolvimento exige a socialização; mas, se a sociedade em que se desenvolver
estiver corrompida pelos vícios e pela imoralidade, ele tornar-se-á tão
estúpido, mau e corrupto como essa sociedade. É a sociedade, portanto, que é
necessário reformar, educar.
Não havendo maneira de demonstrar a teoria, uma vez que não
existe uma experiência social anterior conhecida correspondente a uma “sociedade
boa” que lhe sirva de referência e a realidade se apresenta num jogo
constituído por uma enormíssima multiplicidade de situações e factores, o que
Rousseau diz não ultrapassa uma afirmação sem outro fundamento maior do que a
convicção pessoal. É, por assim dizer, uma fé, uma fé claramente mais inserida
em horizontes políticos decorrentes dos tempos de mudança que se vivia. Está
definitivamente aberto o caminho aos Grandes Reformadores Sociais e aos Grandes
Educadores do Povo.
Já agora, a propósito do carácter dessa convicção do “bom
selvagem filosofante” é interessante relembrar alguns pormenores da sua vida.
Rousseau foi abandonado pelos pais e passou a sua infância com um tio, a quem
ficou a dever não apenas a vida mas também uma educação cuidada. O exemplo do
tio, contudo, não foi seguido pelo fundador da pedagogia moderna, que abandonou
todos os seus filhos na roda. Rousseau, aliás, tinha um carácter tão intratável
e sofria de tais distúrbios de personalidade que David Hume, seu grande
admirador e amigo, foi obrigado a afastar-se dele. Pelos vistos, a corrupção e
a imoralidade sociais fizeram-se sentir mais fortemente sobre o seu carácter do que a acção do pobre tio.
As teorias socialistas, enunciadas num contexto cultural que
absorveu até hoje acriticamente a vulgata desses princípios e em meio de um
movimento de transformação social em que predominava a ideia de igualitarismo
político, justificaram-se, implicitamente, com eles e a partir deles. Com
efeito, na ideologia e na propaganda socialistas estão omnipresentes, implícita
ou explicitamente, estes pressupostos, sem qualquer necessidade de prova: os
seres humanos são igual e naturalmente dinâmicos quanto à disposição para obter
conhecimento; todos são capazes de aceder ao topo do saber se forem devidamente
incitados ao estudo devidamente planeado, tornando-se assim iguais em
capacidades e merecimento; o que impede o paraíso terrestre é, afinal, a
sociedade gerada pelo sistema de produção em que assenta o capitalismo, e a sua
máquina repressora do povo trabalhador, o Estado. Uma sociedade que só a
Revolução Socialista poderia gerar, apoderando-se do Estado (isto, na
perspectiva marxista) para, proletarizando-o, o destruir. O pensamento de
Hegel, a quem ambas, esquerda e direita, devem os fundamentos filosóficos de
raiz e as posteriores derivações com que se ornamentaram, conferiu estrutura final
ao ramalhete.
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