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terça-feira, 24 de abril de 2012

Da surdez no clítoris - 3



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A viabilidade e a verdade do socialismo científico enquanto único sistema político natural ao Homem depende, portanto, da verdade dos princípios, ou seja, da medida em que eles traduzam efectivamente a realidade. O materialismo dialéctico ou materialismo histórico ou marxismo procede, deste modo, ao contrário do que afirma ser: uma ciência; porque o pensamento científico não afirma a existência de algo antes de a provar, sem o que não seria ciência mas doutrina. Não podendo os teóricos do marxismo saltar no tempo para se assegurarem de que a sua análise e previsão são verdadeiras, o marxismo não é mais do que isso: uma doutrina que parte da simplificação conceptual da complexidade do real. E que procura disfarçar essa sua fragilidade conceptual com a complexificação teórica sobre uma evolução social desde os tempos arcaicos até aos nossos dias, para fazer afirmações seguras sobre como ela chegará ao seu termo e considerando esse final como o reencontro da Humanidade perdida consigo própria. No que, como se sabe, para grande embaraço dos marxistas, falhou todas as previsões, já que foi nos países em que a teoria previa uma mais tardia chegada à revolução proletária aqueles onde se instalaram as primeiras ditaduras comunistas.

Daí que Sartre, enquanto militante comunista, haja escandalizado as cúpulas teóricas do socialismo ao dizer que o materialismo dialéctico não tem ponta por onde se lhe pegue, e fosse repescar Hegel para justificar o comunismo pela via do existencialismo  — o que, eliminando a possibilidade da previsão segura, retirava o carácter messiânico à propaganda comunista, para grande irritação do PCF. De facto, o marxismo situa-se ao nível da fé, melhor dizendo: da fezada. É esta a dimensão da “fé socialista”, expressão que, como se pode ler em cartas trocadas entre ambos, Marx e Engels, ambos decidem abandonar por equívoca (cf. O prefácio ao Manifesto do Partido Comunista, publicado pelas Edições Avante!), tanto mais que abastardava o carácter “científico” de que os autores queriam revestir o materialismo dialéctico. Nem é preciso chamar Freud. Mas, para o que interessa no final desta minha resposta, é precisamente Freud que é preciso chamar.

Dizia Rorty, o maior filósofo americano contemporâneo, desde sempre ligado à esquerda dos EUA, que para justificar o desejo que todos temos de sermos decentemente pagos pelo nosso trabalho não é preciso arranjar uma tão complexa justificação como é a que deu Marx. Ou, como diria o diácono Herman: não havia nescheschidade… hmm …hmm. Complexidade essa, para cúmulo, assente em conceitos tão superficiais que pouco resistem a uma análise séria. Mas tais fragilidades do marxismo revelaram-se, afinal como a sua maior força de expansão! É que essa superficialidade preto-no-branco de onde parte depois o rendilhado dialéctico é facilmente absorvível e manejável por qualquer um à saída da adolescência, a época em que todos organizaríamos facilmente o mundo — bastaria que nos dessem o poder para tal, que isto era cá um cortar a direito…!

A disseminação e penetração desses conceitos nos mais diversos sectores das sociedades europeias e norte-americanas, facilitadas e justificadas por via das oscilações, das asneiras e dos desmandos que nelas ocorreram no período de transformação das suas economias desde o final do século XIX, acabaram por as constituir como as referências principais do mapa intelectual do Ocidente. Com as inevitáveis consequências no plano da perspectivação dos problemas que nele surgiram e nas soluções para eles propostas ou adoptadas. Dos jovens intelectuais aos jovens e velhos trabalhadores de menor ou média qualificação, muitos deles injusta e estupidamente afastados, quer do alargamento dos estudos quer do capital que lhes permitiria a dinâmica empresarial que poderiam desenvolver, por uma estrutura social ainda demasiado estratificada, a Oeste o aparelho conceptual da esquerda popularizou-se como ferramenta intelectual de serviço para sucessivas gerações de gente com mais ou menos legítimas aspirações à mudança. O desenvolvimento industrial e tecnológico expandiu-o por todos os continentes.

A esquerda, porém, ao longo do seu percurso histórico, não apenas criou o “caldo cultural” em que vivemos (para cuja existência e influência avassaladora ao nível conceptual e do correspondente raciocínio o Lidador não se cansa de alertar) como, inevitavelmente, se deixou permear pelos acontecimentos e pela evolução social e política decorrentes da segunda e da terceira vagas da industrialização, procurando tratar, com os mesmos conceitos, os novos problemas, procurando apresentar o marxismo como uma teoria, na sua essência, trans-histórica.

É o firmar de uma outra cultura que visa estabelecer, uma cultura de homens por fim livres, aquilo que constitui o terreno em que a esquerda assentará o assumir da sua luta no plano cultural. De início somente empenhada na luta pelo acesso de todos aos bens anteriores e na produção de outros, diferentes, desse tipo, que constituíssem, em simultâneo, instrumentos de luta contra o capitalismo e visões da desejada sociedade nova — a chamada “arte comprometida” com as lutas do “bom povo” — a esquerda foi, progressivamente, geração após geração, sendo posta perante novos problemas decorrentes do processo em curso nas sociedades em que se gerou. Em que se incluíram, a partir de certa altura, não apenas novos dados como outros elementos, até aí estranhos à noção de cultura, que contrariavam muitos dos anteriores.

Na sua A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels faz, no final do último dos três capítulos iniciais, nos quais traça a evolução do conceito de família desde as sociedades arcaicas até ao final do século XIX, uma advertência às gerações seguintes: embora ele considere que a família monogâmica europeia oitocentista constitui o melhor modelo jamais conhecido, o que ele pensava nada valerá face ao que os homens futuros quiserem que seja a sexualidade e a família. Estes três primeiros capítulos, num total de oito em que se divide o texto de Engels, e que constituem metade da obra, foram referidos sumariamente e pela última vez em público por Lenine, num discurso aos estudantes, em 1919 (os restantes cinco estão na base da propaganda oficial dos partidos comunistas de todo o mundo). A revolução bolchevique, aquela que o nosso Mário Castrim considerou como o acontecimento que marcava a saída do Homem da Pré-História, decretou logo após o casamento monogâmico como o único válido nos Amanhãs Canoros da URSS, mesmo que contra as sacrossantas tradições de muitos dos povos que a integraram voluntariamente ou à força.

Porquê? Porque os grandes argumentos dos comunistas e dos revolucionários de todos os cambiantes sempre se basearam muito menos numa estrutura teórica do que na sua superioridade moral. Marx nunca propôs nenhum falanstério, nunca contestou a monogamia enquanto único paradigma moral sexual e familiar: contestava, isso sim, a degradação a que ela estava sujeita pela imoralidade do casamento burguês. Por cá, o Júlio Dantas e os republicanos também fizeram da superioridade moral, ao nível da justiça e da sexualidade, o esteio da sua justificação quanto à necessidade da revolução do 5 de Outubro para derrubar uma monarquia injusta, prepotente e, oh!, em permanente deboche.

Termino amanhã.

(...)

7 comentários:

Unknown disse...

Uau!

Sem palavras.

Carmo da Rosa disse...

Lidador, sem palavras ficava a fotografia MUITO MAIOR e a gente ainda conseguia ver o que o gajo está a fazer e aprender umas coisas...

José Gonsalo disse...

Lidador:
Julgo, sinceramente, a bem da moral pública, que esse UAU se refira ao texto...

José Gonsalo disse...

CdR:

Repito o que disse na resposta que lhe dei há bocadinho: acho que alguma coisa lhe anda a perturbar a visão. Até agora tem sido na leitura do que eu escrevo. Agora, já chega às gravuras.
Não é "o gajo", é "a gaja".

José Gonsalo disse...

Alegoricamente, é claro. Entre o cabelo e os sapatos e... o resto. Antes que você tome tudo à letra.

Carmo da Rosa disse...

JG:

Mas que importa que seja gajo ou gaja? O importante é que sejam felizes...

Unknown disse...

Ao texto, claro.

Superior.

Claro que a imagem tb está muito boa....