(...)
A viabilidade e a verdade do socialismo científico enquanto
único sistema político natural ao Homem depende, portanto, da verdade dos
princípios, ou seja, da medida em que eles traduzam efectivamente a realidade. O
materialismo dialéctico ou materialismo histórico ou marxismo procede, deste
modo, ao contrário do que afirma ser: uma ciência; porque o pensamento
científico não afirma a existência de algo antes de a provar, sem o que não
seria ciência mas doutrina. Não podendo os teóricos do marxismo saltar no tempo
para se assegurarem de que a sua análise e previsão são verdadeiras, o marxismo
não é mais do que isso: uma doutrina que parte da simplificação conceptual da
complexidade do real. E que procura disfarçar essa sua fragilidade conceptual
com a complexificação teórica sobre uma evolução social desde os tempos
arcaicos até aos nossos dias, para fazer afirmações seguras sobre como ela
chegará ao seu termo e considerando esse final como o reencontro da Humanidade
perdida consigo própria. No que, como se sabe, para grande embaraço dos
marxistas, falhou todas as previsões, já que foi nos países em que a teoria
previa uma mais tardia chegada à revolução proletária aqueles onde se instalaram
as primeiras ditaduras comunistas.
Daí que Sartre, enquanto militante comunista, haja
escandalizado as cúpulas teóricas do socialismo ao dizer que o materialismo
dialéctico não tem ponta por onde se lhe pegue, e fosse repescar Hegel para
justificar o comunismo pela via do existencialismo — o que, eliminando a possibilidade da
previsão segura, retirava o carácter messiânico à propaganda comunista, para
grande irritação do PCF. De facto, o marxismo situa-se ao nível da fé, melhor
dizendo: da fezada. É esta a dimensão da “fé socialista”, expressão que, como
se pode ler em cartas trocadas entre ambos, Marx e Engels, ambos decidem
abandonar por equívoca (cf. O prefácio ao Manifesto
do Partido Comunista, publicado pelas Edições Avante!), tanto mais que abastardava
o carácter “científico” de que os autores queriam revestir o materialismo
dialéctico. Nem é preciso chamar Freud. Mas, para o que interessa no final
desta minha resposta, é precisamente Freud que é preciso chamar.
Dizia Rorty, o maior filósofo americano contemporâneo, desde
sempre ligado à esquerda dos EUA, que para justificar o desejo que todos temos
de sermos decentemente pagos pelo nosso trabalho não é preciso arranjar uma tão
complexa justificação como é a que deu Marx. Ou, como diria o diácono Herman:
não havia nescheschidade… hmm …hmm. Complexidade essa, para cúmulo, assente em
conceitos tão superficiais que pouco resistem a uma análise séria. Mas tais
fragilidades do marxismo revelaram-se, afinal como a sua maior força de
expansão! É que essa superficialidade preto-no-branco de onde parte depois o
rendilhado dialéctico é facilmente absorvível e manejável por qualquer um à
saída da adolescência, a época em que todos organizaríamos facilmente o mundo —
bastaria que nos dessem o poder para tal, que isto era cá um cortar a direito…!
A disseminação e penetração desses conceitos nos mais
diversos sectores das sociedades europeias e norte-americanas, facilitadas e
justificadas por via das oscilações, das asneiras e dos desmandos que nelas
ocorreram no período de transformação das suas economias desde o final do
século XIX, acabaram por as constituir como as referências principais do mapa
intelectual do Ocidente. Com as inevitáveis consequências no plano da
perspectivação dos problemas que nele surgiram e nas soluções para eles
propostas ou adoptadas. Dos jovens intelectuais aos jovens e velhos trabalhadores de menor ou média qualificação, muitos deles injusta e estupidamente
afastados, quer do alargamento dos estudos quer do capital que lhes permitiria
a dinâmica empresarial que poderiam desenvolver, por uma estrutura social ainda
demasiado estratificada, a Oeste o aparelho conceptual da esquerda popularizou-se
como ferramenta intelectual de serviço para sucessivas gerações de gente com
mais ou menos legítimas aspirações à mudança. O desenvolvimento industrial e tecnológico
expandiu-o por todos os continentes.
A esquerda, porém, ao longo do seu percurso histórico, não
apenas criou o “caldo cultural” em que vivemos (para cuja existência e
influência avassaladora ao nível conceptual e do correspondente raciocínio o
Lidador não se cansa de alertar) como, inevitavelmente, se deixou permear pelos
acontecimentos e pela evolução social e política decorrentes da segunda e da
terceira vagas da industrialização, procurando tratar, com os mesmos conceitos,
os novos problemas, procurando apresentar o marxismo como uma teoria, na sua
essência, trans-histórica.
É o firmar de uma outra cultura que visa estabelecer, uma
cultura de homens por fim livres, aquilo que constitui o terreno em que a
esquerda assentará o assumir da sua luta no plano cultural. De início somente
empenhada na luta pelo acesso de todos aos bens anteriores e na
produção de outros, diferentes, desse tipo, que constituíssem, em simultâneo, instrumentos de
luta contra o capitalismo e visões da desejada sociedade nova — a chamada “arte
comprometida” com as lutas do “bom povo” — a esquerda foi, progressivamente,
geração após geração, sendo posta perante novos problemas decorrentes do
processo em curso nas sociedades em que se gerou. Em que se incluíram, a partir
de certa altura, não apenas novos dados como outros elementos, até aí estranhos
à noção de cultura, que contrariavam muitos dos anteriores.
Na sua A Origem da
Família, da Propriedade Privada e do Estado, Engels faz, no final do último
dos três capítulos iniciais, nos quais traça a evolução do conceito de família
desde as sociedades arcaicas até ao final do século XIX, uma advertência às
gerações seguintes: embora ele considere que a família monogâmica europeia oitocentista
constitui o melhor modelo jamais conhecido, o que ele pensava nada valerá face ao
que os homens futuros quiserem que seja a sexualidade e a família. Estes três
primeiros capítulos, num total de oito em que se divide o texto de Engels, e
que constituem metade da obra, foram referidos sumariamente e pela última vez
em público por Lenine, num discurso aos estudantes, em 1919 (os restantes cinco
estão na base da propaganda oficial dos partidos comunistas de todo o mundo). A
revolução bolchevique, aquela que o nosso Mário Castrim considerou como o
acontecimento que marcava a saída do Homem da Pré-História, decretou logo após
o casamento monogâmico como o único válido nos Amanhãs Canoros da URSS, mesmo que
contra as sacrossantas tradições de muitos dos povos que a integraram
voluntariamente ou à força.
Porquê? Porque os grandes argumentos dos comunistas e dos
revolucionários de todos os cambiantes sempre se basearam muito menos numa
estrutura teórica do que na sua superioridade moral. Marx nunca propôs nenhum
falanstério, nunca contestou a monogamia enquanto único paradigma moral sexual
e familiar: contestava, isso sim, a degradação a que ela estava sujeita pela
imoralidade do casamento burguês. Por cá, o Júlio Dantas e os republicanos
também fizeram da superioridade moral, ao nível da justiça e da sexualidade, o
esteio da sua justificação quanto à necessidade da revolução do 5 de Outubro para derrubar uma monarquia injusta, prepotente e, oh!, em permanente deboche.
Termino amanhã.
(...)
7 comentários:
Uau!
Sem palavras.
Lidador, sem palavras ficava a fotografia MUITO MAIOR e a gente ainda conseguia ver o que o gajo está a fazer e aprender umas coisas...
Lidador:
Julgo, sinceramente, a bem da moral pública, que esse UAU se refira ao texto...
CdR:
Repito o que disse na resposta que lhe dei há bocadinho: acho que alguma coisa lhe anda a perturbar a visão. Até agora tem sido na leitura do que eu escrevo. Agora, já chega às gravuras.
Não é "o gajo", é "a gaja".
Alegoricamente, é claro. Entre o cabelo e os sapatos e... o resto. Antes que você tome tudo à letra.
JG:
Mas que importa que seja gajo ou gaja? O importante é que sejam felizes...
Ao texto, claro.
Superior.
Claro que a imagem tb está muito boa....
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