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segunda-feira, 27 de maio de 2013

Dou, de novo, a palavra a Alberto Gonçalves...





... que escreve aqui:


O elogio da desconfiança

A pretexto da circum-navegação do Governo em redor do novo imposto sobre os pensionistas, dos cómicos apelos de Cavaco Silva aos santinhos tradicionais e aos do Conselho de Estado e da demagogia alucinada em que a oposição perpetuamente vive, os portugueses, povo de descobridores, descobriram pela enésima vez uma extraordinária coisa: os políticos não são de fiar. Ou, para usar o léxico em voga, os políticos não têm credibilidade. Ai, quanta saudade do tempo em que os políticos eram credíveis.

Lembro-me como se fosse hoje de quando elegíamos gente cumpridora, unicamente preocupada com os célebres interesses do País e alheia quer a interesses partidários quer pessoais. Gente altruísta que sacrificava a popularidade a fim de servir o bem-comum. Gente ponderada, que nunca criaria as condições para entregar a nação ao FMI. Gente lúcida, que jamais permitiria a destruição, paga em cheque, do sector primário. Gente esclarecida, que sabia aplicar com rigor e parcimónia os "fundos" europeus. Gente determinada, que não cedia à atracção dos sindicatos pelo caos. Gente precavida, que se negou a autorizar o crescimento incessante da máquina estatal. Gente racional, que preferiu perder votos a alimentar a ficção de um assistencialismo desaconselhável e inviável. Gente insubmissa, que não sossegou enquanto não desmantelou uma Constituição devotada ao socialismo e acarinhada pelos comunistas. Gente avisada, que sempre preservou o equilíbrio das contas públicas. Gente decente, que combateu por dentro os naturais apetites do Estado para controlar a ralé desde o bolso até ao hábito. Gente democrática, que acautelou a probidade do sistema judicial. Gente visionária, que garantiu a exigência e a qualidade do ensino. Etc.

Agora a sério: alguma vez Portugal teve políticos honrados, fiáveis, escapatórios, vá lá? Lamento, mas não. E é da natureza da política que assim seja. Da natureza de Portugal é a propensão para ambicionar o contrário. É escusado referir o brilhantismo das duas primeiras repúblicas: se o pai da terceira é um indivíduo da estatura moral de Mário Soares, não teria custado adivinhar o nível dos filhos, netos e enteados. A todos, o bom povo deu sucessivamente o aval nas urnas para em seguida perceber com pasmo que se enganou, esquecendo os enganos e os pasmos anteriores.

Infelizmente, notar tamanha evidência passa por "populismo". Não é. O entendimento corrente do populismo consiste em substituir os políticos habituais por políticos que fingem não o ser. Sobretudo porque não temos outra, o ponto aqui implica aceitar a classe política que temos - sem aceitar a ilusão de que esses senhores, que de resto não caíram do céu, concorrem para resolver os nossos problemas. Mudar de regime é uma aventura menos recomendável do que mudar os cidadãos. Dito de maneira diferente, discutir a credibilidade dos políticos é conversa fiada: o problema nacional é a credulidade dos portugueses.


Cem anos de mitificação

O centenário de Álvaro Cunhal, em Novembro, levou a TVI a antecipar festividades e a realizar uma daquelas reportagens que tentam revelar o homem por detrás da figura pública. O que conseguiu foi revelar as baixezas a que o jornalismo (?) hagiográfico pode descer. O trabalho recorreu a depoimentos da irmã, de camaradas de partido, que falam sempre com o tom e a cadência "do Álvaro", o modo pelo qual ainda tratam o eterno chefe, e de interlocutores avulsos, desde o médico Joshua Ruah ao distinto historiador Fernando Rosas, passando por Miguel Sousa Tavares. Não fora o prazer de assistir ao célebre romancista de Equador referir a "áurea" (sic) do "doutor Álvaro Cunhal", qualquer texto evocativo do Avante! teria alcançado idêntico efeito.

Ficámos então a saber que Cunhal era sensível, bem-disposto, atencioso, inteligente, criativo, culto, poliglota e óptimo dançarino. Ou seja, de tanto extrair o "político" da "pessoa", a reportagem deixou apenas um esqueleto enganador e etéreo, que fez o favor de passear, ou dançar, entre os mortais. Do conspirador manhoso que, antes de 1974, perseguia e destruía adversários internos e lutava contra a ditadura em prol de outra ditadura pior, nem uma palavra. Do esboço de tiranete que, depois de 1974, lutou contra a democracia em prol da ditadura do costume, pouquíssimas e, em geral, compreensivas palavras.

Em suma, mitificação em abundância. É natural. Por cá, o fascínio que uma criatura medíocre como Cunhal desperta só encontra paralelo em Salazar. Não vale a pena mencionar os devotos: mesmo os que odeiam o beato de Santa Comba e o estalinista de Seia atribuem--lhes propriedades quase sobrenaturais. Sem tradição de liberdade, os portugueses adoram quem segura a trela e promete mantê-la curta, e não é à toa que, há uns anos, colocaram essas duas recomendáveis peças nos primeiros lugares de um concurso destinado a "decidir" os melhores da nossa história. Nem é à toa que a nossa história deu nisto.





A palavra interdita

Ler na imprensa portuguesa as notícias sobre os motins em Estocolmo levará um leigo a imaginar centenas de protestantes loiros a incendiar automóveis noite após noite. Já os iniciados nos códigos da correcção política percebem que não se trata de protestantes nem de católicos, budistas, hindus, judeus, xintoístas, animistas, membros da IURD ou agnósticos: à semelhança dos psicopatas que esta semana degolaram um soldado britânico numa rua de Londres, os criminosos da Suécia agem em nome do Islão, termo que as boas consciências preferem esconder em favor de "sentimentos de exclusão social" ou delícia do género. A própria ministra sueca da Justiça usou o eufemismo sem se rir. Um dia, os que como ela defendem a abdicação perante cultos da morte não rirão por razões de peso.


Clichês na própria baliza

O futebol é um espelho do País? Parece que sim e, infelizmente, parece também que vice-versa. Não falo das falências. Nem do aborrecimento. Nem da corrupção. Falo das ideias feitas e do poder destas em subjugar a realidade: quando enfiamos um disparate na cabeça, não o conseguimos retirar nem com o auxílio de uma rebarbadora. Vejamos primeiro um exemplo da bola.

Graças à intervenção dos media e dos "especialistas" do ramo, ao longo dos últimos anos convencionou-se que o treinador do Benfica é um génio e o do Porto um monumento à incompetência. Não importa que a equipa do sr. Jesus perca quase todas as competições em que participa, nem que saia regularmente humilhado dos jogos com o Porto, nem que o génio em causa tenha dificuldade em fazer--se entender pelo cidadão (e, suponho, pelo jogador) médio, nem que revele uma arrogância altamente desproporcionada face ao seu currículo. E não importa que o sr. Pereira seja campeão duas vezes seguidas, ao que li com uma derrota em 60 partidas. Acima dos factos, o que importa é a força do clichê difundido, a qual é responsável pela vontade dos adeptos benfiquistas em ver a permanência do sr. Jesus no clube e pela vontade dos adeptos do Porto em ver o sr. Pereira à distância.

Absurdo? Não mais do que os clichês que tomam conta da actualidade nacional, ou do pedacinho da actualidade que escapa ao futebol. Para os media e os "especialistas" da política e da economia, logo para a vasta maioria da opinião pública, a austeridade em que caímos é opcional. O Governo desatou a empobrecer os portugueses só porque retira farto gozo do exercício e não porque uma dívida descontrolada nos deixara próximos do colapso e em plena dependência da caridade (a juros) do exterior. Poucos se dão ao trabalho de notar que sem os apertos vigentes (e os que faltam) a troika não nos atura, que sem a troika os apertos serão imensamente maiores e que no mundo real não há descontos: os golos sofrem-se muito antes dos 92 minutos.



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