Inicio aqui a transcrição do texto que Luís Dolhnikoff publicou no Ablogando.
Nota introdutória
Há poucos dias, nosso grande José Gonsalo publicou
neste sublime blogue um breve comentário sobre um importante livro recém-saído
no Brasil, Por que virei à direita, em que três respeitados
ensaístas, um deles o conhecido João Pereira Coutinho (acompanhado dos
brasileiros Luiz Felipe Pondé e Denis Rosenfield), defendem o ideário liberal
enquanto criticam o pensamento e a prática política de esquerda. Aproveito, então,
para dar à luz em terras portuguesas uma análise que fiz há pouco do mesmo
livro. Como a análise é extensa, será aqui publicada em três partes diárias
consecutivas.
Na verdade, meu texto parte da análise do livro, mas nela não se detém. Porque
seus argumentos permitem ampliar a discussão para duas outras questões
igualmente importantes: as diferentes vertentes do pensamento conservador,
incluindo a que chamo de obscurantista (neste caso, personificada por Luiz
Felipe Pondé) e a possível insuficiência do pensamento conservador (apesar de
qualquer virtude e da necessidade da crítica à
esquerda).
1. Direita, volver!
A esquerda surgiu, historicamente, durante a Revolução Francesa. Mas não tinha,
então, o significado de alternativa ao sistema capitalista na economia e à
democracia representativa na política – mesmo porque, o primeiro não estava
inteiramente desenvolvido e a segunda não existia. A esquerda como a
reconhecemos nasceu na segunda metade do século XIX – e teve como certidão de
nascimento oManifesto comunista de Marx e Engels (1848). Ela,
porém, logo morreria, soterrada pela queda do muro de Berlim (novembro de
1989). Mas se o socialismo como alternativa de poder ao capitalismo deixou
então de existir, isto não resultou nas duas consequências lógicas ou
necessárias: 1) o abandono de um (agora) tardoesquerdismo tão impotente quanto
renitente e, afinal, caricato (cuja figura recente exemplar é o “companheiro
bolivariano” Hugo Chávez); 2) uma nova crítica radical do capitalismo, livre do
fracasso histórico e do ranço ideológico da esquerda (e baseada, talvez, nos
pressupostos do ambientalismo – se este conseguisse conceber um novo modelo
socioeconômico, o que parece tão improvável quanto a múmia de Lênin se erguer
na Praça Vermelha).
Enquanto o pensamento de esquerda sobreviveu como uma fantasmagoria ideológica,
assombrando principalmente (mas não exclusivamente) a academia, em particular
as ciências humanas, o pensamento de direita revelou-se incapaz de ir muito
além da repetição de uma constatação histórica: o próprio fato de que a
esquerda fracassou. Haveria uma justificativa para tal reiteração da direita: a
insistência da mesma esquerda em seu discurso esvaziado, de negar ou desdenhar
o capitalismo apesar de não poder mais sustentar um modelo alternativo. Assim,
se o discurso de esquerda se recusa a incorporar a principal lição da história
contemporânea (ou seja, que o capitalismo é o pior sistema socioeconômico, fora
todos os demais), a direita parece disposta a não deixar o discurso da esquerda
em paz. Além disso, e talvez mais importante, há as práticas residuais “de
esquerda” ainda sustentadas ou defendidas por tal discurso, como o ridículo mas
não inócuo “socialismo bolivariano” de Chávez, ou o “aparelhamento” do Estado
brasileiro pelo lulo-petismo.
Por que virei à direita – três intelectuais explicam sua opção pelo
conservadorismo (São Paulo, Três estrelas, 2012) contém exemplos das
principais vertentes do discurso conservador. Como destaca a “orelha”, João
Pereira Coutinho discute “os riscos das utopias propagadas pelas esquerdas”;
Luiz Felipe Pondé, mais metafísico, insiste em que “o pensamento progressista
tem uma falha essencial: ignora aquilo que é próprio do ser humano”; Denis
Rosenfield, por fim, ao (re)analisar a “teleologia da esquerda, que vê o Estado
como a encarnação máxima da moral, faz também dura crítica à ‘democracia
participativa’ implementada pelo PT”.
2. Como virar à direita e se separar
João Pereira Coutinho, na verdade, revisita o conhecido receituário do (e alguns
dos autores clássicos sobre o) “cético”, que, neste caso, é outro nome para o
não-rousseauniano. Tenho plena simpatia pela antipatia de Coutinho
(característica dos liberais) com o Rousseau de “os homens nascem bons e a
sociedade os corrompe”. Porque este pressuposto é falso e autoritário (além de
mera paráfrase do mito judaico-cristão do Paraíso e da queda): falso por não
corresponder aos fatos, autoritário por se travestir de verdade axiomática. E
porque apenas o nazifascismo seria capaz de cometer mais crimes do que o “campo
rousseauniano”, nascido dessa crença do “homem bom versus sociedade
má”.
Um dos méritos do texto de Coutinho é reiterar, a partir de Michael Oakeshott,
o contraponto entre “fé” e “ceticismo” em política, além de explicitar que a “fé”
é um mal que acomete, na verdade, tanto a esquerda quanto a direita, na forma
de utopias cuja base é a crença (ou a “fé”) de que tal ou qual sistema
“corrigirá” a sociedade, para adequá-la à “bondade natural” do homem. Daí o
totalitarismo: pois para corrigir a sociedade é preciso, ora, corrigir a
sociedade.
O texto de Luiz Felipe Pondé, em seguida, é, sob alguns aspectos, muito
parecido com o de Coutinho. Há, porém, diferenças fundamentais.
Começando pelas semelhanças mais evidentes, ambos os textos, de caráter ao
mesmo tempo analítico e memorialístico, chegam à mesma conclusão/afirmação
sobre seus autores: Coutinho se diz um “estrangeirado” em seu Portugal natal,
com isso querendo dizer-se anglicizado: “As múltiplas referências
anglo-saxônicas [...] denunciam-me como um ‘estrangeirado’” (p. 47). Pondé
diz-se a mesma coisa: “Penso como um britânico” (p. 81). Não é por acaso:
trata-se do bom e velho pensamento liberal inglês, da linhagem que liga Edmund
Burke e David Hume a Isaiah Berlin. O primado do indivíduo, do ceticismo e do
empirismo versus a primazia do coletivo, da fé e da
teoria/ideologia. Ler os dois textos em seguida, porém, é revelador: pois suas
semelhanças, incluindo a lista de autores citados, servem, afinal, para
destacar suas profundas diferenças.
Há direitistas e direitistas. Só o esquerdista mais insano (ou mais estúpido)
seria capaz de afirmar que Churchill e Mussolini significam a mesma coisa. Se
todo fascista é conservador, nem todo conservador é fascista. Alguns (na
verdade, muitos) são liberais. E ser liberal significa, de certa forma, não
ser, sequer, de fato conservador. A direita é, talvez, ainda menos homogênea ou
monolítica do que a esquerda.
Pois a esquerda, cujos métodos variam do reformismo gradualista da
social-democracia “clássica” ao revolucionarismo voluntarista bolchevique, tem
em comum a crença na existência (e no reconhecimento, pela própria esquerda) da
verdadeira “natureza humana”, a bondade “natural” rousseauniana. O papel da
política seria, então, criar uma sociedade que não a “corrompesse”, para usar o
termo de Rousseau, como todas as sociedades históricas. No limite, isto leva,
como já dito, ao totalitarismo, ou seja, ao stalinismo (cujo verdadeiro nome
deveria ser leninismo). Existe igualmente, porém, o totalitarismo de direita,
cuja expressão máxima é o nazismo. Nazismo que não deixa de ser também
rousseauniano. A diferença fundamental está no nazismo ser particularista, e
não universalista. Acredita, assim, na “bondade” ou “virtude” ou “pureza” de
parte da humanidade, a “raça ariana” (corrompida, então, não por certa
organização social, mas por outra “raça”, a judaica). E assim chegamos a uma
diferença pouco conhecida ou reconhecida entre esquerda e direita: esta é, ao
fim e ao cabo, mais contraditória (felizmente). Pois se, no fundo, toda
esquerda é rousseauniana, parte da direita também o é, enquanto outra parte é
radicalmente antirrousseauniana. Esta parte se chama liberalismo.
Tão importante quanto reiterar os conhecidos males do rousseaunismo/esquerdismo
e o possível antídoto do liberalismo (o que os três textos, a seu modo, fazem),
seria, no entanto, apontar as possíveis insuficiências do próprio liberalismo,
o que principalmente Coutinho esboça.
Como referido no início, se o fim do socialismo como alternativa de poder ao
capitalismo não matou o tardoesquerdismo, tampouco fez surgir uma nova crítica
radical do capitalismo, livre do fracasso histórico e do ranço ideológico da
esquerda. Faz sentido: pois, obviamente, essa nova crítica, se não poderia vir mais
da esquerda, tampouco pode, apesar disso, vir da direita. Se a direita é
perfeitamente capaz de fazer a crítica radical do esquerdismo como prática e
como ideologia, como nos três ensaios do livro, não se mostra apetente em fazer
a crítica radical do capitalismo. Mesmo porque, esta é uma característica do
pensamento de esquerda. Dados o fracasso histórico deste e a inapetência
daquela, fica o "capitalismo de consumo" atual livre de qualquer
crítica abrangente, apesar de ainda possível e necessária.
3. A inveja narcísica e o chifre do unicórnio
No contexto do livro, em que o liberalismo é defendido com rigor e argúcia por
Coutinho (enquanto Rosenfield se detém no caso particular da esquerda
brasileira), Pondé revela-se, afinal, um liberal inconsistente, ou falso,
porque não é um cético consistente, ou verdadeiro.
Assim como os esquerdistas acreditam haver e creem conhecer a essência ou a
natureza humana, que seria a "bondade" rousseauniana, Pondé acredita
haver e crê conhecer a mesma coisa, com a única diferença de uma troca de
sinal, para a “maldade” no sentido cristão, ou decaimento pelo pecado original:
Ainda criança, comecei a ter esse temperamento de desconfiar das utopias, por
perceber nelas um ódio essencial ao mundo tal como ele é – ódio que não sinto.
Para mim, o mundo era antes de tudo uma das faces da insuficiência humana,
carregando consigo a deformação de nossa dor crônica e infinita.[i]
É difícil entender, a princípio, que Pondé não perceba suas gritantes
inconsistências. Depois, desconfia-se fazerem parte da receita (que se descobre
não ser original). Aqui ele se apodera de um dos principais argumentos dos
céticos, dos laicos, dos descrentes e da ciência – que rejeitam a crença e os
deuses, justamente, por aceitar o mundo tal como ele é, enquanto a religião,
como se sabe, o odeia, repele e “condena”. O cristianismo, por exemplo (que
Pondé não cansa de propagandear), vê o mundo real, o mundo do dia a dia, como
um lugar de pecado, corrupção e concupiscência, e rejeita “a carne” em nome do
“espírito”, o mundo material em nome do “reino do céu”, o presente em nome do
futuro (qualquer semelhança com as utopias políticas não é coincidência). Numa
palavra, rejeita a vida e adora a morte, que chama de verdadeira vida. Não
satisfeito em aplicar o famoso argumento contra a crença religiosa às utopias,
mas às utopias somente, livrando, assim, a crença religiosa, Pondé afirma, em
seguida, que o “mundo tal como ele é” é insuficiente e deformado: “O mundo é
antes de tudo uma das faces da insuficiência humana, carregando consigo a
deformação de nossa dor crônica e infinita”...
A dor provocada por aquela tragédia e o silêncio raivoso [de um irmão do
morto] são exemplos do que entendo como condição do homem diante de Deus.
Relendo o mito da queda de Adão e Eva, muitos anos depois, vi que esse
sentimento é a matriz do pecado: a revolta contra Deus era inevitável. É essa
inevitabilidade da revolta, sustentada por uma inveja atroz da imortalidade dos
deuses, que me fascina.[ii]
A mim não fascina, mas espanta, por ser, no limite, incompreensível. Como se
pode, em sã consciência, invejar o inexistente? Seria o mesmo que um cavalo
invejar o chifre do unicórnio. Se invejasse o chifre do rinoceronte, vá lá. Mas
um cavalo que invejasse o unicórnio estaria invejando uma miragem. Ou um mito.
Tal cavalo não teria um verdadeiro problema existencial, já que unicórnios não
existem, mas psicológico. A diferença pode ser sutil, mas é real. Se nosso
cavalo imaginasse o unicórnio e desejasse ser como ele, estaria expressando um
desejo, uma fantasia. Mas o passo seguinte, sentir inveja de seu objeto
imaginário, de sua própria autoimagem idealizada, não é evidente nem
necessário. É, na verdade, infantil – portanto, deveria ser normal (ou da
norma, além da normalidade) apenas em crianças, não em cavalos nem em adultos.
Pois seria o mesmo que um menino “invejar” o Super-homem. Essa “inveja” de uma
fantasia pode ser verdadeiramente angustiante para uma criança, mas adultos são
indiferentes a isso. Não porque ser adulto signifique ser perfeitamente lúcido,
mas sim imperfeitamente fantasista: a imaginação infantil é maior. Um adulto
pode invejar, e muitas vezes inveja, vidas que edulcora, mas habitualmente não
vai além disso: acreditar que certa celebridade vive uma vida perfeitamente
maravilhosa não é o mesmo que acreditar que tal pessoa possa levitar. Quem
perderia tempo se angustiando por não poder levitar? Principalmente,
angustiando-se por sentir inveja de certa pessoa que acredita poder levitar?
Afinal, sabe-se que ninguém pode levitar. É contra a natureza das coisas. Ora,
a imortalidade não é menos, mas muito mais fantasista do que a levitação.
Apesar disso, a maioria das pessoas não é crente, ou seja, não acredita na
existência real de seres imortais, os deuses? Sim. Mas, em primeiro lugar, a
crença na existência de algo não é suficiente para que esse algo exista de
fato; em segundo lugar, a verdade não é democrática. A verdade não depende da
quantidade dos que a afirmam, mas da qualidade dos argumentos que a apontam (daí
a fábula A roupa nova do rei). Um verdadeiro liberal sabe bem disso, como bem o
sabia Alexis de Tocqueville, ao apontar a “ditadura da maioria” como um dos
perigos da democracia moderna. Pondé, aliás, cita e recita Tocqueville, o que
naturalmente não basta para torná-lo um liberal verdadeiro.
Ao contrário de Coutinho e também de Rosenfield, Pondé não se satisfaz,
portanto, com a rejeição das utopias políticas da modernidade, mas dá mais um
passo, assumindo, agressivamente, a rejeição da própria modernidade. Tal
rejeição não evidencia o liberal, mas esconde (mal) o obscurantista.
[i] “A formação de um pessimista”, in Por
que virei à direita, p. 51.
[ii] Idem, p. 52.
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