Deixo aqui hoje mais duas crónicas certeiras de Alberto Gonçalves:
A liberdade sob Cavaco
Não me interpretem mal: acho que o grau de liberdade experimentado numa dada sociedade é directamente proporcional à dimensão do enxovalho infligido em público aos respectivos líderes. Dito de outra maneira, quanto mais achincalharmos quem manda em nós, mais livres somos. Não falo de tecer reparos, criticar construtivamente, satirizar com bom gosto, opormo-nos através do fatídico sentido de Estado. Falo de insultar com à-vontade e baixeza, à semelhança do programa televisivo americano que mostrava George W. Bush como um símio (as tentativas de mostrar Barack Obama de igual forma mereceram o epíteto de "racistas" e a condenação quase geral) e do papel higiénico britânico que ostentava o rosto de Isabel II.
Durante anos, e anos teoricamente democráticos, gozámos dessa liberdade a propósito de quase todas as personagens do poder. Quase. A excepção era o presidente da República (PR), ao qual se reservava no máximo uma discordância respeitosa. Salvo nas mesas dos cafés e nas paragens de autocarro, beliscar o PR constituía uma actividade praticada com moderação, ainda que o titular do cargo inventasse um partido para anexar o regime, fizesse campanha declarada contra o Governo em funções ou congeminasse uma estratégia tortuosa para favorecer activamente os seus camaradas.
Sob Cavaco, soltaram-se as amarras. De repente, comentadores, humoristas e diletantes habitualmente comedidos desataram a atacar com inusitada violência o alegado mais alto magistrado da nação. Alguns até transformaram os ataques numa rotina semanal, tenham ou não razão, tenham ou não pretexto. E embora talvez também não tenham consciência, a verdade é que abriram o caminho para que, de futuro, nenhum PR volte a suscitar as mesuras de antigamente. Mesmo, note-se, que seja apoiado pelo exacto PS que nunca deixou de achar um usurpador o actual inquilino de Belém, por acaso duplamente eleito por decisão popular. Cavaco é um PR fraquinho? Com certeza, mas pelo menos muitos constroem uma carreira a gritar que é péssimo, enquanto de outros, que eram de facto péssimos, insinuava-se em receosa surdina que eram fraquinhos
Sinais de fumo
O Bloco de Esquerda (BE) é um acérrimo opositor da iniciativa privada em quase tudo, excepto no que lhe cheirar a "transgressão". Ou a haxixe. Num momento em que o País está mais para lá do que para cá, o BE fez o que se impõe a um partido responsável e apresentou no Parlamento uma proposta que visava legalizar o cultivo doméstico da canábis e a sua venda em clubes da especialidade.
Por mim, acho óptimo que cada cidadão tenha o direito a plantar e a vender o que quiser e acho encantador que o BE tome, enfim, uma posição amiga do livre-arbítrio. Mas também acho tontinho que o faça motivado por um desejo pueril de confrontar um imaginário "sistema". Que idade tem o dr. Semedo? Se a resposta for dezassete anos, tudo bem. Acima disso, a coisa começa a resvalar para o ridículo.
Em qualquer dos casos, tudo isto poderia ser uma iniciação do BE e do eleitorado do BE às agruras do ramo empresarial. Em circunstâncias ideais, esses hippies requentados saltariam da exploração da canábis para a produção têxtil ou o sector dos transitários e, num ápice, estariam a rebelar-se contra o que importa, leia-se o peso do Estado. Infelizmente, da canábis não se salta para nada, excepto para o sofá entre risinhos. Aliás, a proposta parlamentar acabou rejeitada e os interessados provavelmente nem notaram...
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