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quinta-feira, 9 de junho de 2011

Indignados



Joaquim Simões encerrou, há dias, o Portugal e outras touradas. Ontem, enviou-me um email, perguntando-me se estaria interessado em publicar os artigos que Luís Dolhnikoff lhe for enviando até Setembro, data em que abrirá um novo blogue. Dada a qualidade dos textos de Dolhnikoff, que já transcrevi aqui por mais de uma vez, respondi-lhe que sim, que os publicaria. Poucas horas depois, recebi este, e nada poderia vir mais a propósito para fazer reflectir sob este assunto.

INDIGNADOS DE TODA A EUROPA, UNI-VOS!

1. A nova união europeia

Um espectro ronda a Europa: o espectro dos “indignados”. Esse espectro talvez assuste, mas quiçá não devesse, entre outras coisas, porque dele está a nascer uma nova união europeia, enquanto a já velha UE original ameaça definhar. A nova união é a desse mesmo espectro: a união européia dos “indignados”, ou a união dos “indignados” europeus.

Tudo começou em 12 março, quando a “geração à rasca” (abandonada, frustrada, ao-deus-dará), a dos atuais jovens portugueses, saiu às ruas de Lisboa e do Porto para exigir... não se sabe bem o quê. E aqui o espectro que ora ronda a Europa assume afinal ares trágicos, mais especialmente, hamletianos.

Em 15 de maio, em todo caso, foi a vez dos Indignados, com maiúscula, nome da atual juventude espanhola, que ocupou a Porta do Sol em Madri e a praça Catalunha em Barcelona, para exigir...

Então os Aganaktimeni, que vêm a ser os mesmos Indignados, agora em versão grega, no dia 25 de maio, ocuparam a praça Syntagma em Atenas, para exigir... Se não sabem bem o que, ao menos já sabem que querem fazê-lo unidos:


O grego Aryiris Panagopoulos desembarcou anteontem na Espanha com um objetivo: combinar com os colegas espanhóis um "protestaço" simultâneo para hoje nas emblemáticas praças do Sol, de Madri, e Syntagma (da Constituição), de Atenas (Carolina Vila-Nova, “‘As pessoas estão fartas, é isso’, diz manifestante”, Folha de S. Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft0506201112.htm).


2. Da indignação

A indignação é uma atitude moral, uma reação da dignidade perante a indignidade, ou da virtude ante o vício, enfim, do certo frente o errado. Em si, por ser moral, ou seja, não pragmática, não leva a resultados políticos. A indignação só pode fazê-lo ao deixar de ser indignação para se tornar outra coisa, não fim, mas origem, causa de um efeito outro, fonte de energia moral para uma ação positivamente política, lançada contra a própria causa original da indignação. Sem isso, a indignação política não é indignação política, pois incapaz de intervenção política. É, de fato, tão somente indignação. Pode levar pessoas às praças, mas não pode levar as praças e suas pessoas para próximo o bastante do poder.

Essa foi a fonte do fracasso da “revolução” de 1968, que afinal se limitou a uma “revolução cultural”, na verdade, uma reforma comportamental facilmente absorvida e servida pelo sempre proteico sistema capitalista. Hoje todos usam jeans e camisetas e ouvem rock’n roll (ou hip hop) e fazem sexo à vontade, nem por isso o mundo deixou de ser, bem, indignante.

Esse é o motivo de a sociedade brasileira jamais conseguir reformas fundamentais. Assim, quando em meio à maré de violência crônica há uma onda especialmente sangrenta, a população, indignada, sempre pede por “paz”, mas jamais exige segurança. Fora uma situação franca de guerra, o que não é apesar de tudo o caso, a paz é um conceito algo abstrato, um tanto existencial, enquanto a segurança pública é um objeto jurídico e um objetivo político. Mas a impotência histórica da pseudocidadania brasileira é incapaz de perceber isso, e de se mover por isso.

Essa é a razão de os movimentos populares da “primavera árabe”, aos quais estão sendo comparados os dos “indignados” europeus, terem dado e não dado certo. As populações árabes têm um primeiro objetivo político claro, o fim da respectiva ditadura. Ao mesmo tempo, ao contrário do que afirmam os crédulos, não há clareza alguma quanto ao objetivo reformista de em seguida construir, no lugar da ditadura derrubada pela praça, uma democracia moderna. Há questões tribais, há a presença tóxica do islã na mentalidade geral, nos hábitos sociais e nas referências legais, há o sectarismo sunita-xiita, há a falta absoluta e absolutamente antidemocrática de cidadania feminina, há um analfabetismo e um atraso generalizados etc. A “primavera árabe” pode caminhar mais rápido do que se imagina para um outono precoce, se não for afinal para um longo e cinzento inverno.

O caso do “indignados” quase unidos da Europa é ainda pior. Pois se 1968 afinal resultou em mudanças comportamentais reais, apesar de jamais ameaçar o status quo político-econômico, se a demanda concreta por segurança em vez do desejo abstrato por paz é uma possibilidade afinal negada aos brasileiros por sua própria ignorância e inépcia políticas, e se a “primavera árabe” ainda não se despetalou de vez, com a atual juventude quase unida e muito indignada do Velho Continente nada parece poder resultar de sua justa indignação, pois ela não passa e talvez não possa passar de indignação. A “geração à rasca” ficaria assim também à rasca de uma ação política minimamente consequente.

3. Os “indignados”

Eles também se chamam, na Espanha, “nini”: “Ni estudia, ni trabaja”. Não estudam, porque já estudaram: em termos históricos, trata-se da geração mais bem preparada na maioria dos países europeus. Nem por isso trabalham, porque não há trabalho: em Portugal, o desemprego atinge 28% dos indivíduos entre 15 e 25 anos; na Espanha, inacreditáveis 45%; na Grécia, 35%. Quase a metade num caso, um terço nos demais. E aqueles que porventura, ou por desventura, ainda têm trabalho, normalmente não trabalham bem, pois estão ou em estágios precários, ou em setores de serviço como o turismo, apesar de formados em profissões muito distintas, em mais de um sentido.

Daí as reivindicações dos “indignados”: reformas políticas (a despeito de ninguém saber exatamente quais), mais assistência social, mais trabalhos mais dignos, menos precários e de maiores salários.

Tudo muito bem. Tudo muito certo. Tudo muito digno. Mas apesar disso completamente incerto, e mais do que isso, improvável, e no limite, impossível.

São vários os motivos, e vão dos estruturais, como o envelhecimento da população – com sua pressão sobre os benefícios sociais – e a competição dos emergentes, aos conjunturais, como a crise de 2008-2009 e as dívidas dos países europeus do sul. Provavelmente não há, então, como aumentar a assistência social, mas fortíssimas pressões para contê-la ainda mais. Trabalhos menos precários e salários menos precarizantes, por outro lado, no sistema capitalista, passam pela regulação política do mercado, sim, mas igualmente pela geração de riqueza pelo mesmo mercado. A riqueza europeia não é pouca, de fato. Mas até por isso, também não é pouca a dívida de vários países. Pode-se, politicamente, questioná-la. Mas não se pode, economicamente, não-equacioná-la.

Trata-se de um dilema afinal advindo da vitória histórica do reformismo europeu, ao lado da derrota histórica da Revolução mundial.

4. A grande confusão contemporânea

Com o fracasso da última, a alternativa de poder ao capitalismo deixou de existir no horizonte do futuro histórico concebível. Com o sucesso do primeiro, o capitalismo dickensiano do laissez-faire seculodezonovista, com seus salários de fome, suas crianças servilizadas, suas jornadas de 12 horas diárias, suas semanas de setes dias e sua total ausência de direitos trabalhistas deixou de existir para dar lugar ao Estado de bem-estar, em que o capital é obrigado a reconhecer direitos fundamentais do trabalho, o qual, a partir daí, passa a lutar diretamente também por uma maior participação na própria riqueza gerada. O que por sua vez aumenta o nível básico de demanda da economia, e portanto o da oferta, e por fim o tamanho do mercado interno, e assim também da riqueza geral do país, num círculo materialmente virtuoso.

Tudo isso é história em terras europeias ocidentais. A juventude europeia atual não vive como a juventude europeia do tempo de Dickens. Nem do tempo de Marx, não por acaso o mesmo: pois o capitalismo dickensiano era a própria razão de ser do marxismo. Porém sua reforma vingou, enquanto a Revolução feneceu. E, acrescente-se, cada uma por mérito e demérito próprios (o fenecimento histórico da Revolução não se deu pela vitalidade histórica das reformas).

A discussão parece girar aqui em círculos, assim como as multidões nas praças europeias. A indignação da juventude europeia se dá, em suma, fundamentalmente por falta de trabalho e falta de salários. Parece a mesmas coisa, mas não é. A falta de salários dignos leva ao empobrecimento material, a falta de trabalhos dignos leva ao empobrecimento existencial. A atual juventude europeia então se indigna por muito boas razões. Mas não sabe se a causa e/ou a solução é política, econômica ou político-econômica.

Talvez seja a última, mas há a possibilidade de ser, apesar disso, fundamentalmente a segunda, incluindo a existência da moeda única européia... Em parte talvez seja por haver Estado de menos, como no caso da pouca regulamentação do mercado internacional de capitais, fonte da crise de derivativos de 2008. Mas em parte talvez seja por haver Estado demais, como em qualquer comparação entre o pujante capitalismo europeu e o sempre mais pujante capitalismo norte-americano...

Ninguém sabe ao certo. É afinal por não se saber, e talvez por não se poder saber nada ao certo que os jovens europeus se indignam, e se indignam apenas. Se não repropõe a Revolução, tampouco demandam por reformas substanciais e consubstanciáveis, como as famosas manifestações do fim do século 19 pela jornada de oito horas. Pode-se cortar a jornada de trabalho por decreto. Mas não se pode, pelas leis próprias da economia de mercado, aumentar por decreto os salários, ainda que se possa estabelecer por decreto um salário mínimo, não por acaso uma conquista pós-dickensiana básica. Mas não se trata agora de salário mínimo, mas de salários dignos. Porém o Estado só parece poder criá-los em situações de enfraquecimento extremo do mercado, como no New Deal rooseveltiano pós Grande Depressão. Mas neste caso, a “dignidade” dos trabalhos e dos salários estatais é relativa à indignidade extrema da miséria generalizada. Nada disso contempla a atual situação europeia.

O que pedem os “indignados” europeus é, apesar de tudo, bastante claro. Mas completamente obscuro, por outro lado, é o que eles podem. E não por ignorância política, como as “massas” que seriam guiadas pela “vanguarda” iluminada da Revolução rumo ao Futuro. Mas pela pura e simples inexistência de qualquer projeto político, diga-se, político-econômico, reformista minimamente consistente, uma das marcas principais, aliás, da grande confusão contemporânea.

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