... em entrevista ao PÚBLICO:
Como avalia o modo como está a ser aplicado o programa de
austeridade em Portugal?
Julgo que razoavelmente bem. É esse o sentido das avaliações feitas pela troika
e pelos observadores externos, incluindo governos da zona euro. É um programa
com um amplo apoio político interno, uma vez que foi subscrito pelos três
partidos do chamado arco da governação e que consubstanciam 80% da
representação política. É desejável que essa coligação de apoio se mantenha.
Mas também admito que um apoio amplo, envolvendo governo e oposição, precise de
um mecanismo de “governance” adequado para o preservar, pois pode ser
complicado a quem esteja na oposição que só lhe seja pedido que carimbe
decisões.
Qual é a sua proposta?
Não se trata de criar nenhuma instituição, mas apenas do processo de
concertação, formal ou informal, para as decisões em que seja requerido, ou
seja desejável, o apoio das duas partes – governo e principal partido da
oposição. Acredito que haverá a inteligência necessária para o efeito, de modo
a prevenir que uma das partes se possa sentir refém da outra e abrir espaço
para uma desafectação do apoio. O amplo apoio político e social que suporta o
programa de ajustamento é um trunfo a favor do País e que nos ajudará a ter
mais sucesso do que de outra forma teríamos.
Como avalia a actuação do Primeiro-Ministro?
Favoravelmente. Está a cumprir as suas obrigações com o sentido de
responsabilidade que seria de esperar num contexto muito difícil como o actual.
Portugal está a fazer o trabalho de casa, para que no final da ajuda
internacional haja uma luz ao fim do túnel?
Espero bem que sim. Reconheço que o Governo está a fazer o que está ao seu
alcance para cumprir os compromissos. Mas o espaço de manobra é reduzido e a
envolvente externa é muito instável. O País não dispõe de todos os instrumentos
que seriam necessários para lidar com a totalidade do problema. A receita
típica do FMI para lidar com este desequilíbrio – excesso de despesa interna e
sucessão de défices externos – é reduzir a procura e desvalorizar a moeda. Este
é também o meu quadro analítico para lidar com um problema desta natureza, no
curto prazo. Mas não temos como fazê-lo. Só temos forma de actuar sobre a
procura. Está-se a apertar a política orçamental, como seria indispensável e
para o que não há escolha. Mas não temos a taxa de câmbio para estimular, no
imediato, a produção de bens transaccionáveis e compensar o aperto interno. Em
cima disso tudo e ao mesmo tempo, estão a apertar-se as condições monetárias da
economia, reforçando a componente contraccionista. A situação é, pois, muito
complicada.
O seu quadro analítico é semelhante ao do FMI?
Neste tipo de situações é muito próximo. Admito que possa haver quem tenha
soluções diferentes, mas gostava de as ver bem explicadas. Alternativas que
apelam à acção de terceiros podem ser apelativas, mas se não dispusermos de
instrumentos para levar os outros a fazer o que nós queremos, parece-me
conversa gratuita. O que não quer dizer que não se insista dentro da zona euro
por acção alargada e concertada a nível macroeconómico, porque o problema da
zona euro não se resolve apenas com austeridade. Mas voltando ao nosso caso e
creio que nisso o FMI também estará de acordo, para crescermos sustentadamente,
a médio e longo prazo, temos que fazer as chamadas reformas estruturais,
flexibilizando a economia e estimulando a produtividade. Porque só através da
produtividade poderemos melhorar sustentadamente o nível de vida da sociedade.
E neste campo receio que se esteja a perder o momento político.
O que quer dizer com isso?
Ainda não vi medidas significativas do ponto de vista estrutural, nomeadamente
no mercado laboral, no funcionamento dos mercados e na economia das rendas. À
medida que o tempo passa, as condições políticas não ficam mais favoráveis e as
forças do status quo reganham capacidade de resistência. A complicação que se
gerou à volta da meia hora de trabalho parece-me um mau presságio.
Concorda com ela?
Não quero discutir pormenores porque nos desviam do essencial. E o essencial é
que a contracção orçamental e as reformas estruturais são inevitáveis. E,
dentro do meu quadro analítico, é preciso desvalorizar a taxa de câmbio real se
se quiser travar e reverter o desemprego e amenizar a recessão que a
austeridade acarreta. Mas sem uma deflação relativa dos nossos custos e dos
preços dos sectores não transaccionáveis, não estou a ver como isso se consiga
no curto prazo, mas estou sempre aberto a aprender. E uma deflação relativa só
tem duas vias: ou os outros inflacionam e nós mantemos, ou nós deflacionamos
pura e simplesmente.
Propõe mexidas nos salários e nos preços?
Por muito que nos custe, os custos laborais terão que ajustar em baixa. A
descida da Taxa Social Única (TSU) permitiria fazer isso sem mexer nos
salários. O meu receio é que, se nada se fizer proactivamente, o ajustamento da
competitividade acabe feito à bruta, através de uma recessão muito grande para
que o mercado ajuste automaticamente. Uma solução concertada política e
socialmente seria preferível. Mas como a maior parte do emprego e dos
empresários está nos sectores protegidos, não creio que tal concertação seja
provável. Por outro lado, a ignorância sobre a substância dos nossos problemas
é imensa, mesmo entre a elite empresarial que, focada nas suas árvores, não
consegue ver a floresta.
E qual é a substância dos nossos problemas?
Ao longo dos últimos 50 anos, o rendimento disponível foi sempre superior ao
PIB (5% em média). Isto é, o que tínhamos para gastar foi sempre mais do que
produzíamos, graças às remessas dos emigrantes e ao que vinha da UE,
basicamente. Podíamos gastar mais do que produzíamos, até um certo ponto, sem
gerar desequilíbrios. Desde 1995, porém, o rendimento disponível, em
percentagem do PIB, entrou em “queda livre”, tendo perdido cerca de nove pontos
percentuais: caiu de 7% acima do PIB, para 2% abaixo. Mais: pela primeira vez
em mais de 60 anos (que é a série que tenho) e desde 2005, o rendimento
disponível tornou-se inferior ao PIB, o que quer dizer que o que temos para
gastar já é menos do que produzimos.
Quer aproveitar para explicar a que se deveu a queda do rendimento
disponível?
À redução das transferências, juntamente com o aumento dos juros a pagar ao
exterior. Entretanto, a sociedade não interiorizou esta alteração estrutural,
continuando orientada para um padrão de consumo, privado e público, que deixou
de ter sustentação. Por isso, à medida que tinha menos rendimento disponível,
mas ia mantendo o mesmo nível de despesa, a sociedade foi-se endividando para
cobrir a diferença. A dívida ia acumulando e os juros a pagar ao exterior
aumentavam, consumindo Rendimento que deixava de ficar disponível. Os juros
pagos ao exterior tornaram-se superiores às transferências. Daí a perda de
rendimento que referi. Agora, ajustar este desequilíbrio implica baixar o peso
dos consumos no PIB em cerca de oito pontos percentuais. Mas há mais...
Há mais?
Em 1995, por exemplo, a balança corrente com o exterior estava quase
equilibrada. A componente transferências e rendimentos era positiva (3,5% do
PIB) o que permitia que a balança comercial – exportações menos importações –
pudesse ter um défice equivalente ao simétrico daquele valor. Entretanto e como
já referi, aquela componente tornou-se negativa (á volta de 3% do PIB), pelo
que hoje, para termos equilíbrio externo, temos que ter uma balança comercial
positiva. Temos de exportar mais, e/ou importar menos, em percentagem do PIB,
do que em 1995. O que significa que, de então para cá, a taxa de câmbio de
equilíbrio da economia se desvalorizou. Isto é algo que eu ainda não vi
referido por mais ninguém. E quer dizer que, para podermos atingir o equilíbrio
externo, os custos e preços da produção nacional deveriam ter descido face aos
do exterior. Não obstante, os custos e os preços relativos entre a produção
nacional e a produção estrangeira subiram, pelo que a taxa de câmbio real
efectiva se apreciou, agravando o seu gap face às necessidades da economia. E
isto explica muita coisa.
Dá então razão ao economista João Ferreira do Amaral que discordou da nossa
adesão ao euro?
São coisas e planos diferentes. Há ainda discussão sobre se entrámos no euro
com a taxa adequada. E entrámos, mas com a taxa adequada às condições do
momento da entrada e atendendo ao que era a balança de transacções correntes da
altura. Só que a taxa de câmbio já não é adequada às condições de hoje, que se
deterioraram.
O que responde aos que defendem que a resposta aos nossos problemas passa
hoje pela saída do euro?
É verdade que com taxas de câmbio fixas – como já aconteceu com o padrão ouro
nos anos 30 –, a única forma de ajustar a taxa de câmbio real é através de uma
deflação de custos e preços e isso é extremamente violento. Mas a saída do euro
provavelmente terá uma violência ainda maior.
Acredita numa eventual saída do euro, por pressão externa? Devemos discutir
publicamente esta possibilidade?
Espero que não aconteça. Mas é verdade que há quem esteja a propor a saída do
euro. Não devemos recusar discutir esse assunto, como se fosse um dogma
religioso. Devemos ter disponibilidade para discutir todos os cenários. Mas
quem defende essa via deve pôr em cima da mesa as implicações desse cenário.
Mas qual é a sua opinião?
Na minha opinião o abandono do euro implicará, entre outras coisas, uma queda
do valor dos salários e das poupanças não inferior a 30 a 50%. Ou seja,
teríamos um grande e imediato empobrecimento. Além disso e durante uns meses
iria haver uma tremenda confusão na marcação dos preços e com a ausência de
notas e moedas para transaccionar. Contrariamente ao que alguém disse, não
seria possível carimbar notas de euros. Seria uma situação muito caótica e onde
os menos informados e mais vulneráveis seriam facilmente explorados pelos
oportunistas e vigaristas.
Porque é que, em caso de saída da moeda única, não seria possível carimbar
as notas do euro?
Porque as notas (euro) são um activo do Banco Central Europeu e não do Banco de
Portugal pelo que continuariam a valer euros.
Recentemente João Ferreira do Amaral veio defender que devíamos negociar a
saída do euro, de modo ordenado, e admitiu que haverá uma queda do poder de
compra violenta, mas, em contrapartida, diz que o ajustamento será mais rápido?
Faz-se mais rapidamente porque a desvalorização da taxa de câmbio real é
imediata. Mas a contrapartida é o considerável empobrecimento imediato. Assim,
ao rebaixar muito o ponto de partida, é fácil criar a sensação de melhoria. Mas
não me custa admitir que, se o ajustamento em curso não produzir o resultado
esperado num tempo razoável e se a recessão se aprofundar demasiado, engrosse a
opinião a favor da recuperação do controlo sobre a moeda e a taxa de câmbio,
sejam quais forem os custos imediatos. Assim como também não me custa admitir
que o emprego recuperasse mais depressa. Mas seria à custa de uma substancial
desvalorização dos salários. Acho é paradoxal que, face às consequências de uma
saída, aqueles que a defendem recusem ajustar os salários, ainda que mais
moderadamente, para nos mantermos.
O Governo e o Presidente da República não deveriam estar já a preparar
mecanismos para antecipar esta situação, caso se torne irreversível? Isto,
enquanto procuram evitar a saída do euro a todo o custo?
Não. A partir do momento em que as instituições se prepararem para a saída do
euro, esse cenário precipitar-se-á porque se desencadeará uma fuga de capitais.
E se há quem defenda essa solução temos que a pôr em cima da mesa e discuti-la.
Não corremos o risco de nos acontecer o mesmo que em 1974, em que Marcelo
Caetano se recusou a preparar o país para a descolonização que era uma
inevitabilidade?
Não é comparável. Temos que ponderar os custos de estar dentro e os custos de
sair, e enquanto os custos de estar dentro forem menores, devemos fazer todos
os possíveis para ficar no euro. Além disso, o euro não pode ser visto nem
discutido apenas na perspectiva económica. O euro faz parte de um projecto de
integração, que tem como objectivo último a paz na Europa. E isso tem que ser
devidamente ponderado. O problema tem que ser visto e resolvido sob o ângulo
político, embora este não possa deixar de respeitar as restrições económicas e
de se conformar com o espaço de possibilidades da economia. Caso contrário, os
ideais políticos serão inviabilizados pela realidade.
A Grécia será forçada a abandonar o euro?
Espero que não, pois abriria um precedente perigoso.
... e tornaria inevitável a saída de Portugal?
A razão por que não vou responder é porque vamos entrar numa espiral da qual
não há saída. É a história da dívida: a partir do momento em que as taxas
atingem um certo patamar, já não voltam para baixo. O processo
auto-alimenta-se. Espero que a Grécia não saia e, se sair, que não sejamos
obrigados a segui-la. Parte daquilo que conseguimos ser na vida, depende
daquilo que queremos ser. Se quisermos, é mais fácil conseguirmos. Desde que
nos apliquemos, claro. Uma eventual saída da Grécia tornará mais difícil, num
primeiro momento, lutar pela nossa permanência e poderá exigir mais
sacrifícios. Mas não é inevitável. Depende da vontade que pusermos no
objectivo.
Não terá sido o que aconteceu nos meses que antecederam a vinda da troika
para Portugal ? Quando economistas, analistas e decisores políticos, ao longo
dos meses, vieram pedir ou dar como um facto adquirido a intervenção externa?
Isso não terá dado força aos mercados e tornado a intervenção inevitável?
Essa era inevitável.
Há cerca de um mês o governador do Banco de Portugal disse que a Sr.ª Merkel
nunca quis a intervenção...
Não quero alimentar a discussão que é autodestrutiva por natureza.
A semana passada o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates,
Freitas do Amaral, acusou a Alemanha e a França de quererem correr com Portugal
do euro
Parece-me uma intenção pouco consistente com o facto de nos emprestarem o
equivalente a metade do PIB.
O Governo de Dublin já veio admitir poder referendar o euro. Portugal devia
fazer o mesmo?
Com uma representação política que recentemente obteve 80% das preferências
eleitorais – já depois de estar assinado o compromisso de ajustamento – a
expressar um sólido consenso favorável à permanência de Portugal no euro, um
referendo seria um desnecessário desafio à essência da democracia
representativa. Mas é preciso que um tal consenso seja consistente. Isto é, que
não se limite apenas a desejar a permanência no euro, mas que seja extensível
às condições instrumentais necessárias para a assegurar. Caso contrário,
gera-se uma desgastante contradição, que um referendo poderia, de facto,
resolver de forma definitiva.
Nos últimos meses, e depois de ter recebido a ajuda internacional, a Irlanda
voltou a aparecer como sendo um caso de sucesso ao dar sinais de estar,
aparentemente, a sair da crise. Mas recentemente não conseguiu ir levantar
fundos, mesmo com garantia europeia. O entusiasmo era prematuro?
Quando estes processos de ajustamento começaram, achei sempre que havia
demasiado optimismo no objectivo de se regressar aos mercados ao fim de um ou
dois anos. Estes processos vão demorar tempo, até que os resultados sejam
claros e convincentes. E além dos problemas intrínsecos de cada país, criou-se
um problema sistémico de toda a zona euro, que fez levantar a dúvida sobre a
sua sobrevivência. Até tudo isso ficar clarificado, os mercados vão manter-se
fechados, pelo menos, para estas economias.
O ex-director do FMI, o economista Raghuram Rajan, avisou que podermos estar
na eminência de enfrentar uma crise de dimensões catastróficas? Acha que este
risco é real?
Está na nossa mão evitar que isso aconteça. Mas se olharmos para o que se
passou nos anos 30, com o rebentamento de uma crise financeira em 1929 e a que
seguiu uma década de crise económica, com uma profunda depressão, não podemos
deixar de ponderar as semelhanças da situação actual. Há muitos ingredientes
parecidos, de facto. Já estamos em crise há quatro anos e a Europa continua em
grande efervescência. Só que hoje há mais instrumentos e mais conhecimento,
pelo que temos a obrigação de evitar que a história se repita.
Horas antes da reunião da cúpula da União Europeia, na última cimeira, a
agência de rating Standard & Poor's ameaçou rebaixar a nota da Alemanha,
Áustria, Finlândia, França, Luxemburgo e Holanda. O ministro das Finanças
alemão, Wolfgang Schauble, classificou a decisão como “a melhor motivação"
para que se aprovasse as propostas franco-alemãs. O que tem a dizer sobre isto?
As agências de rating tem uma agenda política?
Duvido muito das teses conspirativas e prefiro seguir a “lei da parcimónia” ou
“lâmina de Occam”, que diz que, entre várias explicações concorrentes, a
verdadeira é geralmente a mais simples, ou a que precisa de menos assunções. A
minha explicação para o comportamento das agências é que elas são apanhadas
numa espiral que se auto-alimenta: sem perspectivas de crescimento, a
sustentabilidade da dívida torna-se duvidosa; logo, aumenta o risco de crédito;
a agência sinaliza-o reduzindo o rating; redução do rating faz subir o prémio de
risco e, portanto, as taxas de financiamento; com taxas mais altas, a
sustentabilidade torna-se mais duvidosa; e assim sucessivamente. Aliás, nos
anos 30 passou-se praticamente a mesma coisa com os ratings... Agora, muito do
poder que as agências têm, é-lhes dado pelos reguladores, que obrigam à
utilização dos seus ratings pelas instituições financeiras supervisionadas e
usam esses ratings para as suas próprias acções. Se as autoridades acham que
são perniciosas, tirem-lhes as licenças, proíbam-nas de actuar, retirem-lhes o
valor que lhes dão... Fico com a sensação de que as agências são usadas como
bodes expiatórios para aquilo que os políticos não fazem ou fazem mal.
A última cimeira europeia de 9 de Dezembro foi anunciada como sendo a
cimeira do tudo ou nada. Ficou surpreendido com os resultados?
A experiência já nos devia ter ensinado que nunca há cimeiras decisivas. Há
cimeiras que vão construindo soluções, pedaço a pedaço. Esta foi mais uma. No
fundo, vão-se acumulando decisões parciais, provavelmente com demasiado atraso
face ao que era o desejo de todos. Mas também temos que compreender que gerir
uma cooperativa a 27, com interesses e visões particulares, por vezes
divergentes e até contraditórias, não é fácil, pois os vários interesses vêem
os problemas com perspectivas e urgências diferentes. E veja-se a complicação
processual: numa mesa com 30 participantes, se cada um falar 10 minutos, só
para expor a sua posição de entrada, gastam-se 5 horas só com a primeira vaza
do jogo. De qualquer modo nesta cimeira julgo que houve um sinal muito forte de
querer manter a unidade da zona euro. E isso é importante. Continua, porém, a
faltar pôr dinheiro em cima da mesa e aceitar um papel mais activo do BCE.
No quadro da cimeira europeia o Presidente do BCE, o italiano Mario Draghi,
anunciou medidas que facilitam o acesso dos bancos à liquidez e, por essa via,
de estímulo à economia real, mas recusou envolver-se na ajuda aos estados...
O BCE tem um estatuto que limita a sua acção nessa matéria. Segundo muitos, já
foi mais além do que os estatutos lhe permitem, invocando implicitamente um
estado de necessidade. Para poder ir mais longe precisará, julgo, de uma
alteração dos estatutos ou, pelo menos, de um amplo consenso político que
escude a sua responsabilização.
Mas podia ter ido, sem o tal apoio político, mais além na sua intervenção?
Eu acho que o BCE poderia ter sido mais ousado, desde há mais tempo, naquilo
que é o seu papel principal e que os estatutos não limitam. Deveria ter tido
uma política monetária mais acomodatícia. As suas duas últimas subidas de juro
foram dois graves passos em falso. Em 2008, nas vésperas da grande debacle
mundial, e há um par de meses, nas vésperas do agudizar da crise do euro. Vive
demasiado obcecado com a inflação que, neste momento, é o menor (e de qualquer
forma o mais controlável) dos riscos da zona euro. E deveria ter descido mais
as taxas e há mais tempo. Assim como deveria mostrar mais preocupação em
contrariar o aperto monetário em que se encontra uma parte da união monetária
porque esta, como tal, hoje não funciona e está segmentada. A liquidez não flui
e os mecanismos de transmissão da política monetária não estão a funcionar.
Isso provoca um grande aperto monetário numa parte importante da UE, ao mesmo
tempo que esta está a pôr em prática um grande aperto orçamental. Do ponto de
vista macroeconómico é uma combinação contraproducente. O BCE deveria, em minha
opinião e por exemplo, estar mais empenhado em aliviar esta dupla tenaz do que
em acelerar a desalavancagem nos mercados que estão isolados da união
monetária.
Essa é a grande preocupação da Alemanha. Acha que, hoje, à frente do BCE
está um alemão a falar italiano, Mario Draghi?
Acredito que o BCE tenha nascido com um grande complexo de merecer a confiança
do bundesbank. Mas acho que isso não é justo para Draghi, até porque com ele o
BCE já baixou as taxas de juro e já anunciou a disponibilidade para aumentar o
fornecimento de liquidez aos bancos. É um bom caminho
Mas não acha que uma declaração lida pelo presidente do BCE, Draghi, horas
antes de começar a cimeira, tem um peso diferente do que se dor dita por Vítor
Constâncio, o seu vice-presidente?
Estas questões não podem ser excessivamente personalizadas. Não é o Mario
Draghi que toma as decisões isoladamente. Ele terá uma posição liderante, e
cabe-lhe coordenar toda a instituição. Mas ele faz a declaração interpretando
aquilo que foi a decisão do Conselho de Governadores. E todos os governadores
participam nas decisões e são por elas responsáveis. Estou convencido que hoje
o BCE, e todos os que ocupam um lugar no BCE, vivem um dos raros momentos
históricos em que não vão passar despercebidos. O que quer que façam, bem ou
mal, vai ficar registado na História, e esta vai responsabilizá-los.
Normalmente as pessoas passam pelas instituições, e tirando a vizinhança
temporal da sua estadia, passam despercebidos da História. Desta vez, a equipa
que está no BCE não passará despercebida.
Como interpretou o facto de os mercados não terem reagido positivamente aos
resultados da cimeira?
O tempo dos mercados é mais rápido do que o tempo das decisões políticas. Estas
levam muito tempo a montar o puzzle da solução. Aqueles reagem rapidamente, em
função do que têm em cima da mesa. E neste momento a única coisa que há são partes
da solução que vai sendo construída. O que é pouco para os mercados.
Nos últimos dias, o euro iniciou uma trajectória de queda face ao dólar? É
um episódio ou é uma tendência que se vai manter? Neste caso é um mau sinal?
Para saber se é uma trajectória, ou apenas um sinal de volatilidade, precisamos
de esperar mais tempo. De qualquer forma, uma desvalorização do euro seria
favorável aos países da chamada periferia.
Recentemente Mário Soares acusou Angela Merkel de “cada vez que abre a boca
dizer disparates”. Foi justo?
Em relação à Sr.ª Merkel, independentemente de gostarmos ou não do que tem
feito, há que reconhecer uma coisa, isto do ponto de vista prático: é que
algumas das suas decisões hoje são aceites - e que conseguem ser postas em
prática -, se ela as tivesse tentado tomar há um ano, teriam sido liminarmente
rejeitadas no seu país e teriam ficado provavelmente impedidas de voltar a ser
consideradas. E há que perceber que ela também está condicionada pelo
eleitorado alemão e pelas balizas estabelecidas pelo seu Tribunal
Constitucional.
O ex-presidente da Comissão Europeia, entre 1999 e 2004, Romano Prodi acusou
Merkel de não estar a altura das circunstâncias. Qual é a sua opinião?
Para mim essas afirmações não passam de exercícios de arrogância estéril. Ainda
por cima vindos da parte de quem classificou de estúpido o Pacto de
Estabilidade e contribuiu intelectualmente para o descalabro financeiro que
agora nos está a consumir. Quanto à Sr.ª Merkel e como já disse, é preciso
compreender o seu quadro mental e as suas condicionantes. Porque a solução
destes problemas, envolvendo actores com interesses e visões diferentes –
contraditórias, por vezes – é um processo político que tem que passar por
extensas negociações. Nessas negociações é importante ter argumentos sólidos e
é preciso ser-se perseverante, investindo muito no processo. Que não pode ser
conduzido a um quadro moral, entre bons e maus, e no qual os ressentimentos são
o prior ingrediente. Se começarmos a encostar a Alemanha a um canto e a
culpabilizá-la por todos os males, ela pode enquistar-se defensivamente sobre
si própria, tornando-se menos cooperativa e podemos caminhar para rupturas que
não servem, nem à Alemanha nem aos demais países. Mas também temos que ter a
inteligência necessária para perceber que a relação de forças entre os vários
intervenientes não é equilibrada. Quem não tem dinheiro e precisa do dinheiro
dos outros está obviamente mais enfraquecido e dependente do que aqueles que
têm o dinheiro de que os outros precisam. Por isso, a melhor forma de
reequilibrar a relação de forças é deixar de depender do dinheiro dos outros.
Daí, insisto, a necessidade do nosso ajustamento.
Os governos europeus estão na mesa das negociações a defender os interesses
particulares dos seus países. No quadro europeu qual deve ser a posição
portuguesa?
Se todos os governos apenas se centrarem nos seus interesses particulares,
provavelmente prevalecerão os mais fortes e acabam por perder todos. É preciso
colocar a discussão no terreno do bem comum, e identificar o que contribui
positiva ou negativamente, para o bem comum comunitário. Há soluções que podem
parecer justas à partida e que acabam por implicar perdas para toda a gente. E
há outras que podem começar por parecer injustas, mas conduzir a um resultado
final melhor.
Defende que é inevitável um ajustamento macroeconómico forte, mas não está a
ser demasiado violento e os efeitos não serão os indesejados?
Compreendo a dúvida e acho que é um tema que merece adequada ponderação. Mas
temos que ter consciência do campo de possibilidades nessa discussão. É verdade
que um ajustamento excessivamente concentrado na frente orçamental, sem
instrumentos compensatórios, e a executar num curto prazo de tempo, pode levar
a que se duvide do seu sucesso, ou que este acabe por implicar um esforço muito
mais violento do que inicialmente pensado. Nesse sentido, a sua distribuição
por um período mais alargado poderia ser uma forma, não só de amenizar as
consequências sociais, mas, sobretudo, de garantir o seu sucesso. Mas, para
poder estender o prazo de ajustamento seria preciso que os credores oficiais
estivessem dispostos a conceder mais crédito. Para além disso continuar a fazer
acumular dívida. Por outro lado, é preciso perceber que a experiência das
intervenções desta natureza mostra que, quando a pressão se alivia sobre um
país em processo de ajustamento, este tende a fugir ao ajustamento.
E esse é o grande receio dos financiadores?
Sim. Que os países devedores apenas queiram mais dinheiro para adiar, ou
evitar, o esforço de ajustamento, pelo que dar-lhes mais dinheiro apenas vai
servir para prolongar os desequilíbrios sem nada resolver. Portanto, é muito
natural que os credores não queiram sequer discutir o alívio de condições sem,
primeiro, verem resultados do empenhamento na correcção dos desequilíbrios. Por
isso e no nosso caso, acho que o que temos que fazer é o seguinte. Primeiro,
dar provas de empenhamento no processo de ajustamento e mostrar resultados
desse empenhamento. Para isso é preciso que o PS não comece já a fraquejar o
seu empenho, porque isso daria um péssimo sinal aos credores e tornaria mais
difícil a sua disponibilidade para o segundo passo. Que é o de, depois de se
demonstrar o muito empenho – e o Orçamento de
2012 é, pelo menos, uma prova disso –, fazer a demonstração, tão convincente
quanto possível e se for esse o caso, de que o processo como está desenhado não
conseguirá dar os resultados pretendidos e poderá ser contraproducente para os
interesses de todos, credores incluídos, tentando renegociar o seu
reescalonamento. Por fim, desenvolver uma argumentação também muito sólida para
contribuir, ao nível das instâncias negociais europeias, para uma solução
sistémica eficaz e equilibrada. Mas se não conseguirmos convencer os
financiadores, não teremos outro remédio que não seja fazer o melhor possível
com o dinheiro que nos é proporcionado.
Roberto Perotti, um dos mais destacados promotores teóricos da ideia de que
reduções acentuadas de défice público podem gerar crescimento, veio dizer que
tinha "mudado de ideias".
Não dou demasiada importância a isso e nunca fui adepto da tese da austeridade
expansionista. Julgo que é geralmente aceite que, no curto prazo, a redução do
défice público tem um efeito contraccionista na actividade económica e que, no
longo prazo, pode ter um efeito expansionista por libertar forças produtivas da
economia. A grande questão é como se gere a ponte entre o curto e o longo prazo
e saber se a contracção do curto prazo não tem consequências mais duradouras do
que o desejado.
Portugal pode não pagar a dívida com defende o deputado do PS, Pedro Nuno
Santos, ou renegociar as condições com os credores?
Poder, pode. Nomeadamente a segunda opção, que, teoricamente, nem me choca.
Mas, para explorar qualquer alternativa de acção, temos que equacionar muito
bem as suas consequências. Não pagar, ou renegociar a dívida tem como uma das
suas consequências a nossa descida para uma espécie de segunda divisão
europeia. Deixávamos de pertencer à primeira liga dos países desenvolvidos e
ficaríamos com uma marca curricular de que, durante muitos anos, não nos
libertaríamos. A mantermo-nos no euro, o que seria difícil, ficaríamos, durante
muitos anos, sem acesso ao financiamento de mercado e obrigados a viver dentro
da nossa capacidade de gerar riqueza e da ajuda externa que nos concedessem.
Ficaríamos, pois, num estatuto de dependência. Quando conseguíssemos regressar
ao mercado pagaríamos, durante muito tempo, taxas significativamente mais
elevadas do que os países da primeira liga. Se isso nos levasse à saída do
euro, as consequências seriam ainda as que já referi. Mas, se não conseguirmos
ajustar, poderemos acabar num cenário destes.
Durão Barroso tem contribuído para o tal consenso desejável?
Julgo que o Presidente da Comissão, e a Comissão, tem perdido relevância e foi
secundarizado pelo Presidente do Conselho, que tem emergido como uma espécie de
ponta de lança do chamado “Directório” e, talvez por isso, tem ganho mais
preponderância. O que quer dizer que o processo europeu, pós-Tratado de Lisboa,
transferiu poder da Comissão para a instância intergovernamental. Não creio que
isso tenha sido benéfico para o bem comum comunitário, mas espero que os
entusiastas deste Tratado estejam satisfeitos.
As propostas apresentadas pelo eixo Berlim-Paris vão no bom sentido?
Sim, vão no sentido certo. Apesar do que disse anteriormente sobre o funcionamento
da União, as coisas são o que são e, de qualquer forma, essas propostas
constituem a única solução que está em cima da mesa. Desejavelmente, soluções
mais completas, eficazes e consistentes deviam ter surgido há mais tempo. É
óbvio que estamos hoje numa situação complicada, pois se as autoridades
quiserem convencer os mercados têm que ter mais poder financeiro para suportar
na prática as suas promessas. E aqui a falha tem sido enorme. Têm sido feitas
muitas promessas, mas tem sido posto muito pouco dinheiro em cima da mesa, o
que sinaliza uma insuficiente convicção. Os mercados percebem que se
pressionarem os pontos vulneráveis não há dinheiro para sustentar as promessas
políticas, agravando-se o problema.
O que pensa dos que acusam a Alemanha de historicamente se querer afirmar
como a potência europeia ?
Para responder à sua pergunta teria que entrar numa divagação histórica e
cultural para a qual depois não teria espaço. Prefiro reter a recente afirmação
de Helmut Schmit de que a Alemanha precisa de se encaixar na integração
europeia “para se defender de si própria!”. Eu sei que não foi a Sra. Merkel a
dizê-lo, mas admito que, no fundo, este entendimento seja partilhado.
Esta semana Angela Merkel disse que a união orçamental era “agora irreversível”.
Como é que se caminha para uma maior disciplina orçamental e para uma União
Monetária sem haver um Estado federal e sem que todos os países estejam de
acordo?
O grande receio da Alemanha é o de passar o livro de cheques da sua conta para
as mãos de terceiros. Só poderá estar disposta a fazê-lo se puder controlar a
capacidade desses terceiros gastarem “o seu dinheiro”. É essa a grande questão
que tem que ser rapidamente resolvida e cuja solução, de certa forma, a última
cimeira sinalizou. A única forma de estabilizar a crise das dívidas e evitar um default generalizado é a sua mutualização,
que, acredito, acabará, mais tarde ou mais cedo e em formas mais completas ou
parciais, por acontecer. Aliás, os empréstimos a Portugal, à Grécia e à Irlanda
já são uma forma de mutualização de dívida. Assim como, a dívida que o BCE
comprou já está, de algum modo, também mutualizada. Mas voltando à solução, o
que a Alemanha precisa, para aceitar ir mais longe na mutualização, é de ter
garantias de que isso não vai servir para alimentar a indisciplina financeira e
o descontrolo orçamental de alguns países. Por isso, a partilha de
responsabilidade pelas dívidas terá que ter, como contrapartida, uma maior
partilha da soberania orçamental.
Para si esse caminho é inevitável?
Jugo que sim. Uma das decisões da cimeira é a recomendação para a
constitucionalização de limites orçamentais, ou seja, da implementação da
condição que permita vir a aceitar-se a mutualização das dívidas. O que está a
levar a uma discussão um pouco estéril, porquanto nós já estamos obrigados a
esses limites, pelo Pacto de Estabilidade que, constando do Tratado, já nos
vincula legalmente.
Não partilha da opinião de que ao aceitar-se essa imposição perdemos
soberania?
Não, porque, como já disse, essa exigência não traz nada de substancialmente
novo em termos de obrigações legais. Internalizar a obrigação no nosso quadro
constitucional, de certa forma, é uma acto mais soberano, pelo menos
aparentemente, do que subordinar-nos, para o efeito, ao Tratado. Espero é que a
inclusão constitucional de limites orçamentais ou de dívida assegure alguns
mecanismos preservadores da eficácia dessa inclusão e da dignidade
constitucional. Que não se deixe a porta aberta às habituais chico-espertices
da desorçamentação, como tem sido hábito entre nós. Que a violação dos limites
tenha consequências e não vejo outras possíveis que não seja a queda dos
governantes prevaricadores e a sua inibição temporária. E, por fim, que sejam
salvaguardadas as situações verdadeiramente excepcionais. A grande questão,
neste caso, é como e quem decide da situação de excepção.
Como e quem deve decidir da situação de excepção?
Para que a situação de excepção seja mesmo excepcional e não se torne num
expediente é preciso assegurar que quem sobre ela decide não é quem dela
beneficia politicamente. Não deve por isso ser, nem o governo nem a maioria
parlamentar de ocasião.
O que é que sugere?
Não há soluções fáceis. Mas julgo que se poderia ir por um de dois caminhos:
uma maioria parlamentar de 2/3 ou a decisão unânime de uma espécie de Grande
Júri que poderia ser composto, por exemplo, pelo Governador do Banco de
Portugal, o Presidente do Tribunal de Contas e o Presidente do futuro Conselho
de Finanças Públicas. Ou pelos dois em sucessão.
Concorda com os que defendem que o pacto franco germânico está sustentado em
diagnósticos errados e os remédios propostos para resolver a crise europeia não
são os adequados a tratar o doente?
Não tenho a certeza de que as instâncias políticas europeias se apercebam
verdadeiramente dos riscos que todos corremos e receio que não prestem atenção
às semelhanças com os anos 30, podendo levá-las a repetir os mesmos erros de
então. Muito em particular, temo que a Alemanha, por qualquer razão traumática
que só a psicologia poderia tentar explicar, tenha apagado a memória da
depressão dos anos 30, ao mesmo tempo que mantém demasiado viva a memória da
hiperinflação dos anos 20 – que hoje acho irrepetível. E que isso conduza a um
perigoso enviesamento na análise do problema actual. Mas ao reconhecer isto,
insisto mais uma vez: a solução passa por uma negociação dentro da UE. Temos
que explicar, dentro da UE, o que é que, no nosso entender, possa estar errado.
E o papel do FMI também pode ser importante. Eu preferia que nestes programas
de ajustamento o interlocutor fosse apenas o FMI. O FMI está melhor preparado
para lidar com estes problemas.
Porquê?
O FMI foi criado para lidar com estas situações, nomeadamente quando estão em
causa, como é o caso nesta crise, problemas de balanças de pagamentos. Tem
quase 70 anos de experiência, com diversos erros no currículo. E os erros
também são uma forma de aprender. E quer o BCE, quer a Comissão, não têm
experiência prática de lidar com estas situações. Tornam-se demasiado reféns
dos seus quadros teóricos, esquecendo-se que a realidade social é
irrepresentável, e que por isso os quadros teóricos nunca conseguem apreender,
na sua totalidade, problemas muito complexos dessa mesa realidade. Como dizia
um amigo meu, a teoria está certa, mas na prática a teoria é outra.
Há quem defenda que a Europa está dominada por interesses neo-liberais e que
o cimento da UE sempre foi a Europa social
A essas ladainhas respondo que não gosto de discutir assuntos religiosos.
Acredita numa Europa a duas velocidades ? Com dois euros?
Do ponto de vista analítico, não se deve excluir qualquer cenário. Quer para os
avaliar, quer para nos prevenirmos contra os que são indesejáveis. Mas devemos
fazer tudo para evitar essa situação, percebendo o problema e empenhando-nos na
sua solução O problema da dívida soberana é apenas o mais urgente da crise da
zona euro. Mas não é o mais profundo, nem está na origem da crise. A origem é
um problema típico de balança de pagamentos e sobreendividamento externo dos
países ditos periféricos. Que muitos consideraram ser impossível dentro do euro
e que rebentou quando o financiamento externo secou, como eu avisei no meu
livro “Perceber a Crise...”. Sem perspectivas de crescimento, por falta de
competitividade, despertou-se a percepção de que os seus níveis de
endividamento seriam insustentáveis, fazendo soar as campainhas do risco de
crédito. É aqui que entram as agências de rating, como já expliquei, e gera-se
uma espiral de subida de juros. A crise das balanças de pagamentos criou,
assim, uma crise de dívida. Que se tornou geral porque, entretanto, se
constatou que o euro tinha criado uma grande ilusão, a de que o financiamento
era feito em “moeda própria”. O que não é verdade. É moeda própria se
entendermos por “moeda própria” aquela que é usada nos pagamentos domésticos,
mas não é “moeda própria” se a entendermos por aquela que é controlada pelo
soberano. Quando os estados nacionais controlam a sua moeda, os governos podem
sempre fugir ao default jurídico, inflacionando a economia. É
isso que explica que os países que estão fora do euro, como o Reino Unido, a
Suécia, ou a Dinamarca tenham taxas de juro mais baixas.
Pode explicar melhor a sua ideia?
Constatou-se, dentro do euro, que os países se endividam numa moeda que se
comporta como moeda estrangeira, porque os soberanos não a podem gerir e por
isso as dificuldades em servir a dívida reflectem-se totalmente no risco de
crédito. Desde que as dívidas sejam relativamente elevadas, é fácil, nestas
condições, criar uma espiral de insustentabilidade: criando-se dúvidas, sobe o prémio
de risco, aumentam os custos de financiamento, aumenta a percepção de
insustentabilidade, torna-se necessária a austeridade, diminuem perspectivas de
crescimento, aumenta o risco, etc. Não será assim para todos, porque
dificilmente o BCE poderia deixar a Alemanha ou a França chegarem a uma
situação de incumprimento. Mas é assim para a generalidade. E por isso o
espectro de insustentabilidade também já paira sobre países fora da dita
periferia. Mas não há soluções fáceis, pois a questão central é a falta de
perspectivas de crescimento.
Finalmente, vem a pergunta inevitável: como vamos quebrar esta cadeia e sair
deste ciclo de empobrecimento?
A solução terá que incluir várias frentes. Por um lado, terá que inverter a
percepção de insustentabilidade das dívidas. Isso só se conseguirá com
mecanismos que, de uma forma ou de outra, mutualizem as dívidas existentes,
como já referi. E com a possibilidade de o BCE actuar como um verdadeiro banco
central.
Por outro lado, terá que criar perspectivas de crescimento, sem as quais será
difícil tornar as dívidas sustentáveis. Para isso, é preciso perceber duas
coisas. Uma, que não é possível generalizar a austeridade a toda a zona euro;
alguém terá que expandir a procura interna. O que requer uma grande coordenação
macroeconómica e o reconhecimento – clássico! – de que os persistentes
excedentes de balança de pagamentos são tão desestabilizadores quanto os
défices. Outra, que um aperto simultaneamente orçamental – se todos os países
forem incentivados à austeridade – e monetário – decorrente da actual
fragmentação da união monetária e da obstinação do BCE com o risco da inflação,
só poderá conduzir a uma recessão geral.
Por fim, é necessário, e urgente, recuperar as condições de competitividade da
dita periferia, para que esta possa retomar o caminho da convergência real.
Para isso, estes países terão que empreender profundas reformas estruturais,
para flexibilizar as suas economias, e terão que conseguir desvalorizar a sua
taxa de câmbio real. Só a Irlanda parece estar a fazê-lo.
6 comentários:
"uma queda do valor dos salários e das poupanças não inferior a 30 a 50%"
Não é muito claro se isso é em termos reais (ou seja, uma subida dos preços entre os 40 e os 100%) ou nominais (i.e., o valor dos nossos salários e poupanças, medidos em divisas, baixarem entre 30% a 50%, por o "novo escudo" baixar isso em relação às moedas estrangeiras).
Eu suspeito que VB está a falar em termos nominais, já que o que se fala por aí é mesmo que tal novo escudo deveria ter uma desvalorização de 30%, mas ele deveria ter sido mais explícita
"Agora, muito do poder que as agências têm, é-lhes dado pelos reguladores, que obrigam à utilização dos seus ratings pelas instituições financeiras supervisionadas e usam esses ratings para as suas próprias acções. Se as autoridades acham que são perniciosas, tirem-lhes as licenças, proíbam-nas de actuar, retirem-lhes o valor que lhes dão... Fico com a sensação de que as agências são usadas como bodes expiatórios para aquilo que os políticos não fazem ou fazem mal. "
... pois. O problema é real, políticos e agências sabem-no, mas os políticos preferem alijar a culpa às agências fazendo q~com que estas percebam que têm real poder.
@MM
"Eu suspeito que VB está a falar em termos nominais"
Não, ele estah necessariamente a referir-se a qebras no valor real. As qebras no valor nominal e, cumulativamente, no valor real, já começaram a ocorrer com a manutenção do euro.
Note qe esta eh, entre outras uma das razões para a insustentabilidade social de ajustar níveis salariais aa produtividade nos países mais improdutivos da zona euro.
Eu não me expliqui bem quando falava em "termos nominais" - não me referia a haver mesmo um corte dos ordenados em escudos (estilo - era para ganhar 200.000 escudos, mas vais só ganhar 140.000).
O que queria dizer era outra coisa - imagine-se o novo escudo desvalorizava 40% face ao euro, ou, por outras palavras, que o euro valorizava 66% face ao novo escudo; como as importações devem ser para aí metade do PIB, isso era capaz de gerar uma inflação de 33% (por outras palavras, uma queda de 25% do poder de compra do "novo escudo").
Ora, num cenário desses, tanto podemos dizer que os salários desvalorizaram 40% (se comparados com o valor do euro) ou 25% (se comparados com os preços); e o que eu não percebi muito bem é a qual das metodologias o Vitor Bento está usando.
A fotografia do economista é enganadora. Cria-se uma imagem moderna, de um gajo moderno, eficiente. Realmente, só lhe falta a pistola e uma gaja boa ao lado para ser o 007.
Mas a entrevista, meu Deus, de-ma-sia-da-men-te longa é 0,00000007, e tão técnica, tão técnica – realmente, só para um PÚBLICO: de especialistas.
Carmo da Rosa:
O responsável pela escolha da fotografia fui. Era a única com pose de 007, mas eu escolhi-a, não por esse motivo, mas porque era aquela onde não vi referência à sua publicação em qualquer órgão de informação e, consequentemente, a possíveis restrições autorais.
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