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terça-feira, 22 de julho de 2008

Hezbolah e Israel

Na década de 80, quando o poder da URSS parecia formidável, eu, então jovem tenente, frequentei no Regimento de Comandos um curso de Patrulhas de Reconhecimento de Longo Raio de Acção.
Tratava-se de um curso alemão, cujo conceito era simples:
-Na eventualidade de uma cavalgada blindada do Pacto de Varsóvia em direcção a ocidente, assumia-se que não era possível, face ao potencial relativo de combate, conduzir com sucesso uma defesa avançada, optando-se então por ceder terreno e defender em profundidade, numa malha de pontos fortes (povoações e zonas defensáveis) que canalizassem e abrandassem as colunas blindadas, desgastando-as e obrigando-as a desenvolver de forma a possibilitar contra-ataques pela manobra e pelos fogos.
Para trás das linhas inimigas, escondidas em shelters subterrâneos, ficariam numerosas equipas de 4 ou 5 homens, cuja missão principal era observar e reportar os movimentos soviéticos, podendo também conduzir acções directas, à ordem ou em alvos de oportunidade que não pusessem em causa a missão principal.
O curso era ministrado a tropas especiais alemãs e da NATO, e incidia essencialmente na capacidade de sobrevivência (as equipas estavam entregues a si mesmas, fora do alcance da cadeia logística), na camuflagem, no apurado reconhecimento visual de todo o equipamento do Pacto de Varsóvia e, acima de tudo, na capacidade de agir sem ordens específicas, face a situações inopinadas, mas dentro do conceito geral de operação.

A doutrina militar soviética (e de todos os exércitos que a copiavam) assentava no princípio da massa, e o calcanhar de Aquiles da sua máquina militar era a rígida organização vertical, que retirava toda a iniciativa aos baixos escalões e exigia a constante injecção de ordens vindas dos centros de decisão.
Este sistema assegurava a obediência total das tropas e o cumprimento rígido dos planos de operações, mas impedia a flexibilidade necessária para reagir imediatamente a quaisquer alterações no campo de batalha, porque a maioria dos combatentes não tinha uma ideia do conceito da manobra, e nem sequer saberia onde estava a combater
Não era um assunto de somenos, embora parecesse. Na realidade, era ele que marcava a diferença entre ganhar ou perder.

Na Guerra do Yon Kippur foi a capacidade de comandar à frente e tomar iniciativas mais depressa que o adversário, que salvou Israel de uma derrota que parecia certa e iminente. Nos Montes Golan os sírios, organizados segundo o sistema soviético, atacaram massivamente em Outubro de 1973 com 1400 carros de combate, apoiados por fogos de aviação e de mais de 1000 peças de artilharia, ao longo de uma frente de menos de 50 Km. À sua frente apenas duas brigadas com 170 carros de combate apoiadas por menos de 100 peças de artilharia. Ao fim de 3 dias de combates, as forças israelitas estavam reduzidas a cacos e a derrota parecia inevitável mas, enquanto os sírios paravam para reagrupar e reorganizar, remanescentes de unidades israelitas lançavam, por iniciativa própria, contra-ataques localizados e montavam letais emboscadas anticarro que destruíram dezenas de carros sírios. Eram manobras tácticas de pequeno alcance, mas as forças sírias no terreno não percebiam o que se estava a passar, não tinham ordens adequadas à situação e não tinham iniciativa para reagir de forma adequada. Quando as informações, tardias e filtradas pelo canal hierárquico, chegavam ao Estado-Maior sírio, eram interpretadas como alteração dos pressupostos do plano o que obrigava à emissão de ordens cujo efeito foi um progressivo abrandamento da ofensiva que acabou por deter-se e converter-se em retirada geral, face à chegada de reforços acabados de mobilizar.

Na frente sul, a Divisão comandada por Ariel Sharon, agindo muitas vezes por iniciativa própria, logrou atravessar o Canal do Suez, cercar o 3º Exército egípcio, e só não entrou na cidade de Ismaília porque o cessar-fogo o impediu.
Sharon acabou por ser destituído do cargo, mas a verdade é que a iniciativa local, se bem que tenda a ser sempre contrariada no seio de organizações rigidamente hierarquizadas, demonstrou virtualidades que foram cabalmente compreendidas pelo Exército americano, cuja doutrina evoluiu no sentido de a incluir em todas as operações. As próprias ordens de operações passaram a incluir o conceito de operação do comandante e a intenção da operação, e a ser menos pormenorizadas nas missões específicas e nas instruções de coordenação. Diz-se o que fazer e nunca como se deve fazer.
Na verdade, a flexibilidade táctica foi sempre a melhor arma dos israelitas face à obesidade burocrática dos exércitos árabes.
Porém em 2006, no Líbano, este paradigma parece ter mudado e o Hezbolah combateu Israel utilizando conceitos que raramente haviam sido vistos em organizações militares árabes.

A guerra começou com um ataque cuidadosamente planeado a uma patrulha israelita, com o objectivo de capturar soldados para os utilizar como moeda de troca.
A reacção israelita não foi a que o Hezbolah esperava, mas os 33 dias que se seguiram mostraram um Hezbolah muito bem preparado, agarrado a pontos fortes estabelecidos nas povoações, com unidades actuando sem ordens especificas, e com shelters profundos, dissimulados e disseminados no terreno, de onde emergiam pequenos grupos de homens e de onde eram lançados foguetes sobre Israel, mesmo depois da infantaria israelita os ter ultrapassado. Um tipo de guerra que remete irresistivelmente para o plano alemão dos anos 80.

O terreno não é obviamente igual às grandes planícies alemãs. Na zona a sul do Rio Litani , é enrugado, rochoso, cortado por numerosas linhas de água e com abundante vegetação arbustiva, uma espécie de maquis que dificulta a progressão e facilita a ocultação. Um terreno parecido ao que podemos ver em largas partes do nosso território. A maioria da população é shiita e vive numa densa malha de pequenas povoações encavalitadas nas colinas. Este tipo de terreno permite as progressões apeadas, mas dificulta as grandes manobras blindadas e mecanizadas, canalizando as viaturas para óbvios e estreitos eixos de aproximação, que o Hezbolah minou intensivamente. Um bom terreno para defender, um bom terreno para infantaria , que o Hezbolah, entre 2000 e 2006, preparou minuciosamente, construindo posições de combate fortificadas e complexas, aptas a aguentar-se durante semanas. Israel sabia que havia bunkers espalhados pelo terreno, mas não tinha uma ideia precisa da sua localização, sofisticação e dimensão. Um deles tinha sido construído em completo segredo a apenas 20 metros de uma posição da UNIFIL, que de nada se apercebeu.
O facto de o Hezbolah ter usado as povoações como pontos fortes, motivou os israelitas a abandonar a manobra blindada, e a desmontar para atacar, perdendo as vantagens do movimento, do choque, da protecção e diminuindo a décalage tecnológica.
Prevendo a impossibilidade de reabastecimentos devido à supremacia aérea israelita, o Hezbolah disseminou pelo terreno, centenas de paióis e paiolins e estabeleceu sistemas telefónicos fechados e seguros.
Numa guerra com uma vertente psicológica muito apurada, o Hezbolah não poderia apenas defender, até porque os israelitas talvez nem sequer se dessem ao trabalho de atacar directamente as posições defensivas. Tinha de ter capacidade ofensiva que obrigasse os israelitas a ir ao terreno. Preparou por isso centenas de abrigos para os seus mísseis que, ao longo do conflito, foi disparando a uma taxa regular, procurando passar a ideia de que a acção israelita não estava a obter qualquer resultado.
Os lançadores e as respectivas guarnições estavam protegidos em abrigos de betão armado, debaixo do solo e subiam e desciam com a ajuda de elevadores pneumáticos.

Para além de milhares de milicianos, o Hezbolah tem um núcleo duro de soldados profissionais, bastante bem treinados e aptos a manusear armas avançadas. Organizam-se geralmente em pequenas unidades de 5 a 10 elementos, capazes de operar de forma independente por razoáveis períodos de tempo, mas em contacto com os decisores, através de um elaborado sistema de comunicações filares e TSF. O sistema filar está agora ser estendido à escala nacional, e é tão importante para o Hezbolah, que foi justamente uma das causas das confrontações que varreram o Líbano em 2008, quando o 1º ministro o quis controlar.
Os aspectos mais significativos desta organização são a elevada autonomia dos comandantes nos baixos escalões e a inexistência de uma pesada cadeia logística durante as operações.
Ou seja, exactamente o contrário daquilo que sempre caracterizou os exércitos árabes, e a demonstração cabal de que o Hezbolah estudou as doutrinas tácticas ocidentais e de Israel.
Foram estas características novas que surpreenderam os israelitas em 2006.

Em termos de armamento, um dos tradicionais handicaps das milícias ou de exércitos improvisados é a incapacidade para obter o rendimento óptimo de sistemas de armas mais avançados. Qualquer pessoa pode aprender a disparar uma espingarda em poucos minutos, (embora para a usar com eficácia sejam necessárias algumas horas), mas o mesmo não acontece com artilharia, morteiros e mísseis anticarro por exemplo. Os dois primeiros necessitam de guarnições treinadas e aptas a fazer cálculos de trajectórias e os mísseis guiados exigem uma prática aturada, uma vez que não basta carregar no gatilho. Para além disso, municiar estas armas é uma tarefa logística complexa dada a dimensão, o peso e a periculosidade dos projécteis
O Hezbolah mostrou possuir e saber usar com eficácia um abundante e sofisticado arsenal, desde a clássica Kalashnikov ao míssil anticarro russo AT-14 Kornet, passando por vários tipos de mísseis e foguetes balísticos, SS e SM com alcances entre os 20 e os 200 km.
A descrição que um oficial israelita fez do Hezbolah como “uma Divisão de Comandos iraniana”, não peca por exagero

Face à inesperada reacção israelita, cujos objectivos foram claramente expostos (destruir o Hezbolah, impedir o lançamento de foguetes e libertar os soldados capturados), o Hezbolah reajustou a sua missão com bastante rapidez, definido os pressupostos de “vitória” : negar aos israelitas os seus objectivos. Para isso era necessário sobreviver, causar o maior número possível de baixas pela usura, e manter o lançamento de mísseis sobre Israel.

O ataque israelita partiu de um conceito claro que recusa a lógica dos proxies, isto é, um ataque a partir de um Estado soberano, por grupos que nele têm guarida, é um acto de guerra. Assim sendo, a reacção israelita alcançou todo o Líbano, o que terá chocado o próprio Nasralah que admitiu que se soubesse que Israel iria reagir assim, teria pensado duas vezes.
Em termos estratégicos, a reacção israelita foi bem urdida porque logrou surpreender o Hezbolah. Mas em termos tácticos, a história foi outra e as unidades israelitas agiram com a lentidão que convinha ao Hezbolah.
O comando israelita, ignorando ainda o grau de fortificação do inimigo, acreditava que a força aérea seria suficiente para destruir o Hezbolah, mas os cinco dias que passaram até os soldados meterem as botas no chão, permitiram, ao Hezbolah recuperar da surpresa, adaptar os seus próprios planos e organizar a defesa a partir dos pontos fortes nas povoações.
Israel, em vez de avançar impetuosamente para o Rio Litani, ultrapassando as defesas ainda mal estabelecidas e deixando-as para trás, agiu como um meticuloso burocrata, tratando de conquistar laboriosamente cada uma das posições fortificadas. Exactamente o contrário do que os panzers alemães fizeram na França, Sharon no Sinai e os americanos no Iraque. Mesmo no fim da guerra, uma unidade blindada israelita perdeu vários carros de combate, porque recebeu ordens para voltar para trás e, quando algumas horas depois a mandaram avançar novamente, já o Hezbolah tinha montado no percurso uma gigantesca emboscada anticarro com dezenas de Kornets.
Prender o exército israelita a miríades de pequenas batalhas por vilórios sem importância, era exactamente o que convinha ao Hezbolah
Tanto os israelitas como os soldados do Hezbolah combaterem bem, mas isto foi uma novidade para os israelitas, cuja infantaria, nos últimos anos, não tinha efectuado treinos para este tipo de inimigo e neste tipo de terreno.
Claro que a organização descentralizada não tem só vantagens. O apoio mútuo é precário, a defesa tende a tornar-se estática, e um adversário bem treinado pode explorar isto em seu benefício. A força combate de forma óptima durante um determinado período de tempo, mas é incapaz de sustentar o esforço para além de um limite, o que ajuda a explicar a ansiedade com que o Hezbolah e os seus patronos exigiram o cessar-fogo.

O uso intensivo de foguetes contra áreas edificadas, foi um sucesso psicológico, mas um fracasso estratégico, porque não logrou o objectivo de quebrar a moral da população israelita. Isto, acrescido ao facto de o Hezbolah não ter conseguido que um único míssil de alcance intermédio atingisse Israel (dezenas de lançadores de Fajr e Zelzal foram destruídos em apenas meia hora pela força aérea israelita) terá sido devidamente anotado pelo Irão e pela Síria, que dependem exclusivamente destes sistemas para confrontarem Israel.

Em suma, o Hezbolah sobreviveu e tem toda a legitimidade para se ufanar do desfecho da guerra.

Os israelitas tiraram ilações muito importantes e certamente que, conhecida a forma como são capazes de estar um passo à frente, estão já a preparar as tácticas e as estratégias que lhe permitirão derrotar e vencer um inimigo que é agora minuciosamente conhecido e tende a ser imitado pelo Hamas.

O Hezbolah consolidou tácticas. Nos últimos meses há notícias de intensos trabalhos de organização das povoações (zonas que a ONU não tem mandato para inspeccionar) e é facto assente que novas linhas de bunkers estarão a ser escavadas, e apetrechadas com abrigos profundos para homens e armas.
Não é difícil prever que o Hezbolah irá enterrar também os lançadores de mísseis de alcance intermédio, apostar na massificação dos mísseis anticarro e tudo fará para limitar a supremacia aérea israelita, com a aquisição e distribuição de mísseis antiaéreos de fabrico russo.
Será um adversário temível, se Israel lhe der combate nos termos que ele pretende.
A solução está, como sempre desde os tempos de Belisário, na velocidade, na iniciativa, nas manobras indirectas, sem esquecer a inovação tecnológica, as protecções activas anticarro e um sistema que neutralize o impacto psicológico da chuva de foguetes (Sistema Iron Dome).

6 comentários:

Renato Bento disse...

"Na frente sul, a Divisão comandada por Ariel Sharon, agindo muitas vezes por iniciativa própria,"

A maioria dos teóricos aponta como sendo este o momento do volte-face da Guerra. Esta iniciativa de Ariel Sharon, que agiu por conta própria (ele e os seus homens), fez com que conseguísse apanhar de surpresa o exército Egípcio.

Ainda hoje Ariel Sharon é idolatrado em Israel por este acto que valeu a vitória. É isto que explica, em parte, tanto carinho que os Israelitas nutrem por aquele que dizem ser "um dos pais da Nação".

No ocidente, especialmente entre a esquerda Europeia, preferem chamar-lhe criminoso de Guerra. Sinceramente, não sei em que é que se baseiam.

Uma coisa é certa: Sharon está vai para 3 anos em coma. Quando por fim morrer, esperam-se lágrimas em Israel e festins em Gaza e em Beirute.

Mas o legado continuará.

Renato Bento disse...

(saber até sei...)

David Lourenço Mestre disse...

Muito bom o artigo

"e festins em Gaza e em Beirute."

e em algumas sedes de partido

EJSantos disse...

Excelente artigo. Assim se compreende como se vemce ou se perde uma batalha.

Paulo Porto disse...

Este caso da guerra Israel-Hezbollah faz-me lembrar os acidentes aéreos, isto é, nunca existe uma única falha, mas uma sequência infeliz de falhas.

Desde logo foi estúpido ter desocupado o sul do Líbano (até ao Litani). Os habitantes eram amigos de Israel, viviam à margem das tempestades políticas de Beirute, e o território era um verdadeiro tampão entre Israel e os terroristas financiados pelo Irão. A saída dos israelitas teve sabor a traição para os libaneses, e foram muitos os que foram mortos ou perderam tudo na vingança islâmica que se seguiu à saída das IDF.

Com a guerra que se seguiu ao rapto dos soldados israelitas, foi feito um enorme esforço humano e financeiro ma reocupação e limpeza de terroristas no sul do Líbano. Poucas semanas depois voltam a sair sem trazer os soldados raptados e sem aniquilar o Hezbollah. Podiam pelo menos ter voltado a estabelecer um território tampão. Mas nada.

Foi a justa paga dos appeaser israelitas, com Olmert à cabeça.

RioDoiro disse...

"An appeaser is one who feeds a crocodile--hoping it will eat him last"

--Winston Churchill

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