Teste

teste

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Boas Intenções II

Não podia concordar mais consigo. Mas parece me que para lá das boas intenções há o velhíssimo espírito cristão. E o apelo de um crente para prostrar a sociedade a um ideário escasso de substancia. Os vencidos e os vencedores, os cumpridores e os criminosos, os felizes e os miseráveis todos com a fronteira traçada ali pelo meridiano materialista. De todos os ideais, o de fazer o povo feliz é talvez o mais perigoso. Está aberto a todas as abstracções. Leva ao utopismo e ao romantismo – e no fim da linha entra nos pela casa adentro para nos confiscar a liberdade e a vida. Sentem-se certos de que ninguém deixaria de ser feliz na bela e perfeita comunidade dos seus sonhos. Sejam quais forem os critérios. Seja a que preço. Qualquer leitura reduzida e subjectiva que ambiciona a arena politica confere ao bom senso, à moralidade publica, ao bom e ao mau, um valor táctico quando não a rejeita sem qualquer hesitação para dar lugar a outra. Acolhe mal algo humanamente inesgotável: o erro, a dúvida, a falibilidade, o infortúnio – enfim, as limitações e contingências de uma determinada sociedade política. Não há perfeição humana e não há receitas à priori. No fundo eles crêem que vêem a sociedade a partir do Olimpo.

12 comentários:

ml disse...

Não consta que os povos antigos fizessem da felicidade de cada cidadão o seu objectivo, mas tentaram à sua maneira uma sociedade equilibrada. O dever de hospitalidade a quem quer que batesse à porta era um dos devidos aos deuses.
Mas os que tinham instrumentos para isso faziam a sua própria felicidade individual, é claro. E é o que acontece ainda hoje, não é verdade?, mas sem o sagrado dever da hospitalidade. Too christian! It smells like heaven.
Cada um por si.


No fundo eles crêem que vêem a sociedade a partir do Olimpo.

Não, meu caro mestre, no Olimpo se vêem os outros, dá-lhes alguma segurança olhar do alto e determinar a sorte alheia.
É natural que o cristianismo tenha alguma coisa a ver com isso, faz falta o contraponto, o outro que não se quer ser. Se não agarrou pelos cornos o touro que lhe destinaram, deus castigou-o e excluiu-o das benesses.
Não era o que pregava Sto Agostinho?

Conhece o ‘transparente’ da catedral de Toledo? Vale a pena, é lindíssimo. A corte celestial a observar-nos lá do alto onde se sentam, sem emoção, nós pobres mortais a esbracejar com as nossas dificuldades e nem um dedo estendido para nos tornar as penas mais leves. Pitiless.
O cristianismo mete-se em tudo.

David Lourenço Mestre disse...

Mas ML a minha felicidade não é a sua. A agenda politica - ainda que a minha opiniao nao conte para nada - deve se ocupar com algo palpavel - o sofrimento, a injustiça, etc. Isto nao é um libelo acusatorio ao estado social, longe disso, enfim a um desvio romantico: a pobreza equivale a crime, ou pelo menos que a pobreza precede o crime, ou uma concepçao mutilada da felicidade colectiva. Não vivemos so de pao

David Lourenço Mestre disse...

"Conhece o ‘transparente’ da catedral de Toledo? Vale a pena, é lindíssimo."

Nunca vi, mas presumo que a capela sistina é capaz de fazer mais o seu gosto

David Lourenço Mestre disse...

E para completar o raciocinio...

combater o sofrimento ou minora-lo mas conscientes das limitaçoes de qualquer forma de governo.

o vicio fatal de quase toda esquerda é fazer do estado uma especie de olimpo - uma "corte celestial" capaz de transformar agua em vinho ou latao em ouro

Unknown disse...

"o vicio fatal de quase toda esquerda é fazer do estado uma especie de olimpo - uma "corte celestial" capaz de transformar agua em vinho ou latao em ouro"

Exactamente.
E o facto de o Estado nunca se ter revelado capaz de cumprir as elevadas expectativas, deveria, se estivéssemos no campo da racionalidade, fazer pensar as pessoas.

O facto de essa reinvindicação do estado como olimpo, como anjo, como cuidador desinteressado e infinitamente com, como Deus, enfim, ser comum ao fascismo, ao nazismo, ao comunismo e a todos os totalitarismos, deveria fazer pensar ainda mais.

Mas não...os factos não contam e muito menos conta o facto de a virtude estar algures ali a meio entre a ausência de estado e o estado total, entre a anarquia e o totalitarismo.

A esquerda acredita sinceramente que agora é que vai ser, agora com pessoas boas, como eles, evidentemente, com verdadeiros homo novus, tudo vai ser diferente e é possível realizar a utopia.
E as sucessivas distopias, não lhe dizem nada...são apenas tentativas falhadas no caminho do bem.
O bem, esse, não lhes merece dúvidas e o caminho tb não, desde que seja o que cada um tem na respectiva cabeça.

Na verdade todos nós sabermos resolver tudo( em teoria) se tivermos poder absoluto.
Os liberais sabem que isso não é possível. A esquerda acredita que com o poder absoluto realizará o bem absoluto e a História terminará.
É uma visão escatológica, uma religião, enfim.
É por isso que os factos nada lhe dizem e que a política, como arte do possível, como escolha do mal menor, os enfastia.
Eles não querem a política, eles sentem-se no pedestal da moralidade a julgar os pobres brutos que procuram o seu caminho, ignorantes do grandioso mapa do futuro, que os esquerdistas acreditam ter.

ml disse...

Mas ML a minha felicidade não é a sua.

Não, felizmente. Mas a simbologia da hospitalidade grega é bastante lata e aplica-se aos mínimos de que essa 'felicidade' necessita para além da justiça e do alívio do sofrimento físico.
Não vivemos só de pão, mas quem não o tem nem sequer vive.

Pode presumir que a capela Sistina será mais a seu gosto do que a catedral de Toledo - o Miguel Ãngelo sempre é uma garantia - mas olhe que eu não contraponho 'ou... ou'. Também há quem não goste das cores restauradas da capela e ainda tenha na cabeça os tratados sobre o que se julgava ser a beleza do sfumato das cores angelinas.

Não me parece, nem pouco mais ou menos, que a esquerda tenha essas pretensões. Acho que sempre se limitou a tentar estabelecer as condições materiais mínimas onde cada um possa construir o seu conceito de felicidade.

Luís Oliveira disse...

ml: "Acho que [a esquerda] sempre se limitou a tentar estabelecer as condições materiais mínimas"

Bem dito.

ml disse...

Bem dito.

Se tenho o seu aval, já é um dia que me corre bem. E para comemorar vou às compras, a economia precisa de mim.

David Lourenço Mestre disse...

"Não, felizmente. Mas a simbologia da hospitalidade grega é bastante lata e aplica-se aos mínimos de que essa 'felicidade' necessita para além da justiça e do alívio do sofrimento físico.
Não vivemos só de pão, mas quem não o tem nem sequer vive."

"Acho que sempre se limitou a tentar estabelecer as condições materiais mínimas onde cada um possa construir o seu conceito de felicidade."

Justamente, e é isso o inicio e o fim da agenda politica. Concepções mais abstractas deveriam ser pensadas fora da agenda e abandonadas ao domínio do laissez-faire. A mais das vezes a realidade aconselha prudência e não ousadia.

"Não me parece, nem pouco mais ou menos, que a esquerda tenha essas pretensões."

Como nao tem? sempre teve a visao messianica de um Outro mundo e um excesso de ideias como o atingir, e este apelo pelo fim da historia precede a esquerda, a ansia de unidade tribal é coevo dos gregos e o paraiso terreno parece me que vem dos hebreus

David Lourenço Mestre disse...

Alias, é provavelmente muito anterior aos hebraicos

David Lourenço Mestre disse...

Enfim todas as tribos tinham mitos sobre o incio e o fim, e é impossivel amputa-los das sociedades, tem quase vida propria como os individuos

ml disse...

abandonadas ao domínio do laissez-faire.

Ah, e esse tal de laissez-faire afinal já pode ocupar-se com actividades promotoras da felicidade popular?

Bom, se vai para concepções gerais de destinos dos povos, harmonias, etc., não deve haver nenhuma comunidade que não a tenha tido em vista e filosofado largamente sobre ela. Os clássicos então, nomeadamente os gregos, desde os tempos homéricos que estão cheias de instruções sobre como a atingir. Aliás a parábola do regresso de Ulisses a casa é também o reconhecimento do direito à felicidade dos que bem exercem a hospitalidade e outros deveres.

Bom, messiânica é o que se diz agora e além disso o termo ‘esquerda’ engloba Weltanschauungen muito diferentes. Mas mesmo como um todo, esse ‘messianismo’ que hoje se apraz ressaltar assentava primordialmente no usufruir de bem-estar, o resto viria por si se tivesse que vir. O desafogo material seria apenas uma das condições prévias para que a felicidade fosse viável. Mas é claro que alguns tiveram um programa mais ambicioso, como os ‘horizontes vermelhos’ e a revolução cultural que preconizava a mudança de paradigma civilizacional. Mas acho que foi a única corrente a ter essa pretensão absoluta, exemplarmente posta em prática não só na China como pelo Pol-Pot. Na outra, a do ‘homem novo’, decorreria naturalmente da nova estrutura económica. O laissez-faire socialista.

Mas já que se fala nisso, é bastante significativo como a direita actual e especialmente a neocon deixa de lado essa vertente gloriosa que em certa época avassalou o mundo prescrevendo violência, e desvia as atenções para os ‘amanhãs que cantam’ e os russos (o que me faz sempre lembrar um filme hilariante, “The Russians are coming”). É claro que estamos mesmo a ver que o facto de muitos deles terem passado por esses ‘horizontes rubros’ não tem nada a ver com a omertà.