From Iran with love

No PÚBLICO de hoje:

De chefe da Polícia Nacional e vice-ministro do Interior, responsável pela organização das primeiras eleições após a queda da monarquia no Irão, Mostafa Mir-Salim percorreu um longo caminho até integrar a poderosa Assembleia do Discernimento, que serve de árbitro entre o Parlamento e o Conselho dos Guardiões. Em 1980, por ser amigo do Presidente Abolhassan Bani-Sadr e dos rivais deste no Partido da Revolução Islâmica (PRI), foi escolhido para primeiro-ministro, mas não teve o apoio da maioria de deputados no Majlis. Em 1981, foi designado chefe de gabinete do Presidente Ali Khamenei (sucessor do ayatollah Khomeini como Supremo Líder), com quem trabalhou sete anos. Seguiram-se quatro anos como consultor do Presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, e depois mais quatro como ministro da Cultura e da Orientação Islâmica (encerrou vários jornais reformistas e proibiu as antenas parabólicas, qualificando-as de "ofensiva cultural do Ocidente"). Hoje, político influente só nos bastidores, é professor na Universidade Politécnica Ami Kabir, em Teerão. Deu esta entrevista em Lisboa, antes de seguir para uma palestra na Universidade dos Açores.

Foi testemunha da revolução islâmica e conselheiro de dois Presidentes, um deles é hoje o Supremo Líder. Pode explicar o que se está a passar no Irão?

Estamos a celebrar o que chamámos "Nova Alvorada". Até agora não tem havido incidentes, mas no próximo dia 11 [que assinala 31 anos de revolução] é possível que haja novas manifestações dos que se opõem à reeleição de Mahmoud Ahmadinejad. O que aconteceu no feriado de Ashura, em 28 de Dezembro, não foi muito bom para os opositores. Era um dia para lembrar o martírio do imã Hussein, não para discutir política. Até o ex-Presidente Mohammad Khatami escreveu uma carta ao Supremo Líder pedindo desculpa pelo que aconteceu, distanciando-se de Mir-Hossein Moussavi e Mehdi Karroubi [candidatos derrotados em Junho]. Entrámos numa nova fase. Há um tempo antes e depois de Ashura. A situação já não é tão favorável à oposição.

Há quem diga o contrário: quando as forças de segurança dispararam a matar no festival xiita mais sagrado, o regime perdeu legitimidade religiosa.

O festival de Ashura não era um bom dia para manifestações políticas. Qualquer manifestação que não fosse religiosa seria ilegal.

O regime irá alguma vez tolerar manifestações da oposição?

Talvez não, porque o Ministério do Interior tem informações de que há grupos na oposição que querem fazer o país mergulhar na anarquia. Sem este risco, haveria autorização.

Muitos iranianos criticam o Supremo Líder por não ter pedido uma arbitragem independente e recontagem total dos votos, face às alegações de fraudes. Tendo sido conselheiro de Ali Khamenei, acha que ele agiu bem?

Era dever do Supremo Líder congratular o Presidente reeleito o mais rapidamente possível. Fizera o mesmo quando Khatami foi eleito (em 1997) e reeleito (em 2001). E não houve problemas, porque o rival de Khatami era um cavalheiro, que também lhe deu os parabéns. O Supremo Líder apenas respeitou os resultados divulgados pelo Ministério do Interior.

Todo o processo estava envenenado desde o início. Como podia a oposição confiar no Conselho dos Guardiões, supervisor das eleições, quando o presidente desta instituição havia declarado publicamente apoio a Ahmadinejad?

Concordo. Se eu fosse responsável, seria totalmente imparcial e não diria, em público, a minha preferência. Não foi acertado, mas não creio que tenha sido um erro grave. Dar apoio não significa tentativa de alterar os resultados, porque nas eleições estão representantes de todos os candidatos.

A imagem do Irão é agora a de uma sociedade dividida e um regime fracturado.

Vou tentar explicar: quando Ahmadinejad iniciou o primeiro mandato (em 2005), anunciou que a sua prioridade seria centrar-se nas províncias e nos pobres. Essas pessoas adoram-no: chegou a ter 98 por cento de votos em algumas aldeias. Nas grandes cidades, que foram, de certo modo, negligenciadas, a maioria votou em Mousavi. Talvez eu não seguisse este caminho, mas ele é Presidente. Eu sou apenas um político, a favor de manter a unidade da nação.

Ahmadinejad mantém os pobres dependentes da ajuda económica do Governo porque sabe que é mais difícil subjugar as classes cultas e urbanas.

Bem, é a política dele. Ele é muito inteligente. Podemos criticá-lo. Se eu estivesse na oposição, criticaria a sua política. Mas não nas ruas, com anarquia.

O senhor critica-o?

Sim, mas não abertamente.

Critica-o na Assembleia de Discernimento?

Sim, claro. Um Presidente eleito tem de ser Presidente de todos e não apenas do seu campo. Também tem de se abrir à oposição, ouvir o que os opositores têm a dizer. Talvez Ahmadinejad ache uma perda de tempo. Ele também não tem tido muita sorte com os seus ministros.

Está a sugerir que os erros podem ser imputados aos ministros? O do Interior, por exemplo, que ordenou a repressão dos manifestantes?

As forças de segurança foram surpreendidas pelos protestos. Face à anarquia, o Ministério do Interior não teve alternativa a não ser ordenar prisões de manifestantes.

Concorda com a repressão?

Não havia outro modo. Mas pode perguntar: será que as forças de segurança agiram correctamente e eu estou satisfeito com isso? Respondo que não. Só que eu coloco-me no lugar delas e vejo-as numa posição difícil. Não estou a justificar as suas acções. Reconheço que foram cometidos erros, mas é preciso dizer que alguns dos responsáveis [pelos abusos] foram castigados.

Mais de 30 anos depois da revolução, o que vemos no Irão são três tendências: uma que insiste em manter o statu quo; outra que pretende reformar o sistema (aqui estarão Khatami, Rafsanjani, Mousavi e Karroubi); e outra, aparentemente, sem líder, que quer uma república mas não islâmica. Que tendência vai emergir vitoriosa?

A República Islâmica tem sido, nos últimos 30 anos, um lugar de liberdade e, por isso, é que Khatami foi eleito e empreendeu reformas. No entanto, se alguém tenta destruir o regime, a decisão é clara e está prevista na Constituição: não se pode destruir a República Islâmica, não há lugar para esta tendência. Podemos perguntar se ainda há uma maioria a favor desta república islâmica. Sim, há. Organizei o primeiro referendo, em que as pessoas podiam escolher entre uma república islâmica, uma república democrática, uma república popular...

...não, só havia duas opções no boletim de voto: sim ou não à república islâmica.

Bem, as pessoas podiam colocar a preferência delas debaixo da palavra "não".

Não é a mesma coisa. Não perguntaram aos iranianos se queriam uma república islâmica, uma democracia, uma monarquia.

Concordo, foi a vontade de Khomeini, o pai da nação, mas a escolha foi acertada: 98 por cento votaram "sim". Não havia ninguém a favor da monarquia.

E onde está agora o legado de Khomeini? Alguns membros da sua família são críticos do Governo que os tem marginalizado.

Bem, eles têm o direito de ser críticos, mas o legado de Khomeini não é responsabilidade da sua família, mas da Assembleia de Peritos. São 80 membros eleitos pelo povo e a sua única função é averiguar se o Supremo Líder está a fazer bem o seu trabalho.

A Assembleia de Peritos está a avaliar Ali Khamenei?

Sim, está a examinar. Discute quem pode ser o seu sucessor.

Essa discussão está a ser feita?

Não sei. Eles discutem entre eles, à porta fechada. Mas é esta a função [nomear e demitir o Supremo Líder] da Assembleia.

Os líderes religiosos ainda detêm poder ou os Guardas da Revolução estão a transformar o Irão num Estado policial?

Os Guardas da Revolução? (risos) Um poder militar nunca seria possível com esta Constituição!Mas o Corpo de Pasdaran tem um grupo de companhias às quais são atribuídos os contratos mais lucrativos, em sectores como os do petróleo e do gás.

Em tempo de paz, a Constituição permite que os Guardas da Revolução usem a sua mão-de-obra e o muito equipamento que tem para construir infra-estruturas, como barragens. Sim, a influência económica pode dar influência política. Mas não é este o caso.

Como é que interpreta a decisão da Administração norte-americana de instalar um escudo antimíssil nas fronteiras do Irão?

O sinal é claro. Barack Obama quer proteger Israel e não está contente com as declarações de Ahmadinejad e do Supremo Líder contra Israel, mas o Irão não está contente com o que está ser feito aos palestinianos. No início, estávamos mais optimistas.

Como respondeu o Irão à mão estendida de Obama?

Pedimos que fosse reconhecido o nosso direito à energia nuclear.

A Agência Internacional de Energia Atómica fez uma proposta e o Irão recusou-a.

Não recusámos. Apresentámos uma contraproposta. Os iranianos não são diferentes dos ingleses e dos franceses. Queremos ter acesso ao know-how nuclear.

Os franceses e os ingleses não ameaçam lançar uma bomba sobre Israel.

Por princípio, Ahmadinejad não quer ameaçar Israel; só quer defender os palestinianos. Ele não está contra Israel, mas sim contra a injustiça.

Se a lógica é atacar Israel porque reprime os palestinianos, deve o Irão ser bombardeado porque está a reprimir o seu povo?

No Irão todos são livres, podem votar e até abusar - é isso que temos agora, abusos. Mas os palestinianos não têm nada.

Esse é um problema dos palestinianos, que estão em negociações com Israel, e não do Irão, não acha?

Sim, mas nós temos um artigo na Constituição que nos obriga a defender os povos oprimidos.

Então por que não ameaçam o Governo muçulmano do Sudão pelo genocídio em Darfur?

Não temos informações suficientes sobre essa situação.

O Irão não sabe que o Presidente do Sudão tem um mandado de captura emitido pelo Tribunal Internacional de Justiça, por suspeita de crimes de guerra?

Não sabemos exactamente o que se passa lá.

Todos dizem que 2010 será um ano decisivo para o Irão. Concorda?

Os opositores deviam escolher a via legal dos protestos. Têm de reconhecer que esta anarquia não é certa. Têm de demonstrar lealdade para com o regime. É preciso separar os [opositores] que são leais dos que fazem parte daquela terceira tendência [a que pretende destruir a República Islâmica]. Khatami já se distanciou; Mousavi ainda não.