A realidade é como o azeite, dizem. Vem sempre ao de cima.
Sócrates está, nos últimos tempos, a receber na testa a realidade que tentou cuspir para o ar, ignorando a gravidade e os ventos.
É a face amarga do poder.
Sócrates fez de si mesmo o retrato do socialista iluminado, determinado e confiante, que sabe o que é melhor para todos e está disposto a arriscar o nosso dinheiro na prossecução da sua formidável convicção. Na sua retórica bem intencionada, o futuro foi sempre brilhante, como sempre foi normal nos avatares socialistas com que a História castigou inúmeros povos. Ele era o “estado social”, a “educação centrada no aluno”, o “serviço nacional de saúde” justo e universal, a energia verde, o plano tecnológico, as estradas gratuitas, o TGV como cereja no topo do bolo, enfim, tudo para todos, como no maravilhoso mundo de Alice, onde todos têm prémio.
A realidade para lá do ícone mostrava outras coisas: mostrava um hedonista de gostos caros que vestia Armani, se refastelava nos melhores restaurantes, e se rodeava de luxos, sempre à conta do contribuinte (na muito mais rica Albion, o seu homólogo Gordon Brown teve até de pagar do seu bolso, os pequenos-almoços que tomou no nº 10 da Downing Street.); mostrava um indivíduo irascível, arrogante e agressivo, vingativo para com os que o afrontavam, paternal e generoso para com os que o adulavam e pelos quais distribuía fartamente os favores do Estado.
Enfim, um pequeno Kadaffi, cujo carisma admirava, quiçá por ser tão parecido com ele, e que só não emulava porque calhou nascer num país com instituições e onde o poder tem limitações formais.
A realidade caiu-lhe finalmente em cima e nada mais lhe resta do que pragmaticamente tentar manter o poder, rejeitando tudo aquilo que dizia (e continua a dizer) defender.
Num mundo perfeito, na terra do Nunca, bastariam as boas intenções, os elevados propósitos e a retórica dos bordões da correcção política. Mas o mundo real, complexo, desordenado, sujeito à resultante das forças da sorte, do azar e das vontades divergentes dos homens, é inamovível perante conversa fiada de indivíduos que parecem ter estagnado na adolescência das ideias, algures entre Woodstock, os Amanhãs que Cantam e as cantigas da Floribela Abreu.
Infelizmente para José Sócrates, a sua chegada à realidade, o seu ritual de iniciação à idade adulta, corresponde também à sua despedida.
A clássica pirueta que, por exemplo, Durão Barroso deu há muito mais tempo e a tempo, fez-se tardar em Sócrates que, teimoso até ao quixotismo, insistiu no erro, mesmo quando toda a gente já tinha percebido que era um erro.
Sócrates vai ser enxotado do poder, porque já nem o seu próprio partido o pode ver transformado no contrário de si mesmo. Ironicamente os seus maiores erros não são os de agora. Os seus erros fundamentais foram os do princípio, a superficialidade, a mentira, a insensatez estatista, o despesismo voluntarista, o clientelismo, os tiques controleiros, a tomada de assalto da máquina do Estado pelos amigos, o empenhar das gerações futuras em função de megalomanias iluminadas.
É a contradição entre esse passado e este presente, entre a retórica e a realidade que o revela como um político sem princípios éticos, capaz de fazer, sem qualquer sobressalto, uma coisa e o seu contrário
Talvez nem ele mesmo esperasse que uma realidade que sempre insistiu em negar, ao mesmo tempo que fazia a dança da chuva que a chamava, o demolisse tão desapiedadamente.
Fim de linha, caro José Sócrates. E já vai tarde.
Directamente para o caixote do lixo da nossa História.
7 comentários:
Texto brilhante.
Excelente, excelente.
Desxuxalizar vai ser mais difícil do que limpar radiação por plutónio...
JM:
"Desxuxalizar"
É como encher uma garrafa de fumo e abri-la. Deixar sair o fumo é fácil. Voltar a metê-lo lá dentro será o fim da picada.
O Lidador disse: ”É a contradição entre esse passado e este presente, entre a retórica e a realidade que o revela como um político sem princípios éticos, capaz de fazer, sem qualquer sobressalto, uma coisa e o seu contrário.”
Precisamente. Sempre a contradição entre a retórica socializante e a realidade do oportunismo político. ”Um político sem princípios [nem sequer socialistas] capaz de fazer (e dizer) uma coisa e o seu contrário." E que se serve da palavra “socialismo” porque lhe confere uma mais-valia inerente à recente história do país. E vai provavelmente continuar a bater na mesma tecla devido ao sucesso actual do “socialismo brasileiro” do outro lado do Atlântico...
http://aperoladanet.blogspot.com/2011/03/de-um-primeiro-ministro.html
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