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sábado, 5 de março de 2011

Um novo texto de Luís Dolhnikoff


Há pouco, no Portugal e Outras Touradas (transcrevo na íntegra):


A exceção tunisiana


«Por que na Tunísia? Esta é a segunda pergunta mais importante para compreender a atual revolta pan-árabe. A primeira é: por que agora? As duas perguntas fornecem as principais respostas e os melhores esclarecimentos para a ebulição do mundo árabe.

Começando, então, pelo final. Por que agora? A resposta esclarece o fato de que não se trata de revoltas por democracia, segundo afirma, espera e crê o filtro mental ocidental. Fosse isso, haveria antes disso os líderes, as personalidades, os ativistas, as vozes, os nomes. Mas não há nenhum Vaclav Havel tunisiano, nenhum Andrei Sakharov líbio, nenhum Lech Walesa egípcio. Não há líderes democráticos conhecidos porque não há lideres democráticos que mereçam o nome. E não líderes democráticos porque não há movimentos democráticos prévios às revoltas, dos quais elas sejam então a expressão final. O que há, enfim, não são movimentos políticos no sentido estrito, mas revoltas populares. Isto posto, revoltas contra o quê? E por que agora?

As massas árabes não acordaram certo dia sob o forte sol norte-africano com uma repentina vontade de democracia. Mas com certeza acordaram com fome. Mais exatamente, com desespero e desesperança por não poder garantir suas necessidades mais básicas, pois a crônica crise internacional das commodities (fruto em grande parte das crescentes demandas chinesas e indianas), somada à aguda crise financeira de 2008, torna impossível manter os níveis de subsídios governamentais para produtos como o trigo. Sem trabalho, porque o alto desemprego é endêmico nas anêmicas economias árabes, sem perspectivas de melhoras futuras, porque não havia nada sendo construído neste sentido, e agora sem pão. A vida torna-se insuportável, e o status quo, insustentável. A resposta, então, é: agora, porque o status quo acabou de (e terminou por) fracassar profunda e irremediavelmente – portanto, contra ele, não necessariamente a favor da democracia. A democracia emerge, então, não como um fim em si ou necessário, mas como uma entre outras possibilidades. Porque ela não foi o objeto primeiro ou central das revoltas. Onde estão mesmo os Vaclav Havel tunisianos, os Andrei Sakharov egípcios, os Lech Walesa líbios?

Pode-se afinal responder: por que a Tunísia, ou seja, por que a Tunísia primeiro? Porque entre todos os Estados árabes, era a única que apresentava as condições mínimas para a implantação da democracia.

O paradoxo se explica. Entre essas condições, está a estrutura econômica, mas também as circunstâncias sociais e culturais.

Não é coincidência a revolução ter começado na Tunísia, onde temos um nível elevado de educação, uma classe média considerável e um maior grau de igualdade de gênero. Nós tínhamos todos os ingredientes da democracia, menos a democracia em si. Isso não poderia durar (Khadija Cherif, ex-presidente da Associação Tunisiana de Mulheres Democráticas, in Katrin Bennhold, “Um ponto forte a favor da Tunísia: suas mulheres”, Herald Tribune,http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/herald/2011/02/23/um-ponto-forte-a-favor-da-tunisia-suas mulheres.jhtm).


A revolta começou na Tunísia porque ali havia as forças mais organizadas do mundo árabe para demandar por reformas democráticas, que por isso o fizeram. Sem essas forças organizadas da sociedade civil, vale dizer, sem essa sociedade civil, nem haveria os elementos políticos para agir nem os objetivos democráticos a buscar. Por isso aconteceu ali.

Mas não aconteceu só ali. Porém, se o que aconteceu na Tunísia serviu de inspiração para o que aconteceria em seguida no Egito, não pode lhe servir de modelo, pois no Egito nem um nível elevado de educação, nem uma classe média considerável, nem um maior grau de igualdade de gênero são verdadeiros. Portanto, não se tinha no Egito “os ingredientes da democracia menos a democracia em si”. Tem-se, na verdade, a falta de democracia junto com a falta de elementos sociais, políticos e afinal ideológicos que demandam e sustentam a democracia. Eis o grande paradoxo das atuais revoltas árabes: o exemplo inicial não é, na verdade, exemplar, mas sim uma exceção.

Daí a revolução egípcia ter sido menos marcadamente política do que a tunisiana, e mais marcadamente econômica: “Fora Mubarak”, pois queremos melhores condições de vida. Mas se os egípcios estão certos em identificar no velho líder e seu sistema a causa imediata de seu fracasso, estão muito menos certos em saber qual o melhor caminho alternativo. Os tunisianos parecem ter atingido a expectativa de que, havendo já alcançado o que alcançaram durante a ditadura, o governo representativo, no qual de certa forma a própria sociedade civil se autogoverna, era sua melhor alternativa futura. Mas com uma sociedade civil muito menos desenvolvida e organizada, o Egito não tem e não pode ter tal certeza. A democracia é a expressão política institucional de uma sociedade civil organizada. A democracia, portanto, vem depois da sociedade civil, e não contrário. Foi assim na Tunísia e foi assim nos países da Europa Oriental em 1989. Foi também assim na Revolução Francesa, a prototípica. As comparações com a Europa de 1989 devem, então, ser repensadas. O mundo árabe de 2011 não é a Europa Oriental de 1989. Se nesta a democracia era quase uma fatalidade, naquele é quase uma impossibilidade.

O Egito, maior país árabe, enfrenta o enorme desafio de construir uma cultura civil. Como dizia uma opositora de Mubarak: “Uma cultura não militar, não religiosa, mas civil”. [Mas] como construir um Estado laico moderno para pessoas religiosas? (Francisco G. Basterra, “Enquanto a Europa cochila”, El País,http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2011/02/19/enquanto-a-europa-cochila.jhtm).



O caso líbio é ainda pior.

A Líbia não tem nem sequer uma frente oposicionista significativa e organizada. O único partido político autorizado no país é o Congresso Geral do Povo, comandado pelo governo e onipresente nas administrações locais e regionais. A Irmandade Muçulmana, grupo fundado no vizinho Egito, tem uma filial na Líbia, mas suas ações políticas e sociais foram severamente reprimidas pelo regime. Grupos religiosos líbios se uniram ontem para divulgar comunicado dizendo que é obrigação de todos os muçulmanos se rebelarem contra Gaddafi [...]. Mas as lideranças islâmicas líbias estão divididas e não têm grande representatividade nem notoriedade. O mesmo ocorre com grupos políticos dissidentes radicados no exterior. Entre eles estão o Movimento Líbio por Reforma, com sede em Londres, a Aliança Nacional Líbia, no Cairo, e a Frente Nacional pela Salvação da Líbia, em Cartum. “Qualquer período pós-Gaddafi estará repleto de incertezas”, afirmou à agência de notícias Reuters Philip McCrum, analista e consultor britânico especializado em Oriente Médio.
“A oposição no exílio é pequena e descoordenada. Portanto, será preciso um longo período para que uma nova ordem política se estabeleça, e enquanto isso as tensões políticas serão fortes entre os diversos grupos rivais, entre os quais tribos, o Exército, os movimentos islâmicos e os liberais, todos disputando o poder” (“Oposição à ditadura líbia é incipiente e fragmentada”,http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2202201103.htm).

O mesmo vale para o Iêmen, e em grau apenas um pouco menor, para a Argélia, para o Bahrein, para... É fácil esquecer que, na Europa dos ventos democráticos de 1989, houve a tempestade do fim da ditadura iugoslava, que levou ao fim da própria Iugoslávia e às guerras civis da Bósnia e de Kosovo. Na Europa Oriental, a Iugoslávia foi a exceção catastrófica em meio a uma mar de sucessos relativos. No mundo árabe, infelizmente, o mais provável é se dar o inverso: uma exceção de relativo sucesso, a Tunísia, em meio a um mar – ou um vasto deserto – de catástrofes políticas e humanitárias. Muamar Kadafi (esse ex-herói da esquerda internacional) que o diga.»

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