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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

ESCREVER AOS MORTOS...


Hans van Wetering, um amigo que vive em Amesterdão, escreveu em 2009 uma carta-aberta dirigida a uma estátua. Mais tarde a carta foi publicada no Jornal do Fundão, e parece que este facto ajudou na altura à recuperação da piscina da Alpedrinha. (Para mais detalhes ver aqui). Bem tinha razão a Tina, a mulher do Hans, filha e criada na terra: “o melhor é escrever aos mortos, dos vivos não podemos esperar grande coisa…”).

Pois bem, o Hans voltou novamente a escrever a um ‘morto’ da aldeia da Alpedrinha. De novo o Jornal do Fundão voltou a publicar. Desta vez o felizardo foi o senhor do Chapéu, um busto que já se encontrava há séculos na montra de uma excelente loja de chapéus da aldeia. Loja que vai agora desaparecer, como (quase) todas as coisas boas vão desaparecendo a pouco e pouco na nossa terra…


Excelentíssimo Senhor do Chapéu,

Foi num momento de melancólica tristeza (outros dirão: de loucura) que lhe escrevi esta carta; o senhor, cujo nome não sei, com quem nunca falei, cuja história não conheço (história que suponho ter tido a sua origem nos anos vinte do século passado; uma época em que todo o cavalheiro que se preze andava, evidentemente, na via pública de cabeça coberta – aliás a populaça também; umas vezes o chapéu protegia do sol, que já nessa altura era impiedoso, outras era um aconchegado abrigo durante um imprevisto aguaceiro de inverno).

Espero que me perdoe a indiscrição de me dirigir a si, assim, sem mais nem menos, sem o conhecer. Mas não o faço de ânimo leve. Saiba vossa excelência que a Rua da Cale foi arranjada, que as pedras da calçada nunca estiveram tão direitas, mas o senhor, que com todo o direito pode ser considerado o guarda (o vero Presidente da Câmara - há mesmo quem diga a alma) da rua, vê hoje os seus nobres traços tapados atrás de uma cruel cortina, desterrado atrás de um pedaço de pano desbotado.

A memória, segundo a sabedoria popular, é como um cão que se deita onde quer. Que aparece onde menos se espera, por vezes mesmo um empecilho mas que certamente nunca se deixa comandar. É o que me acontece neste momento, quando tento recordar-me da situação antes do senhor ter desaparecido.

Há tanta coisa acerca de si que eu não sei, também tanta de que eu me lembro mas que ao mesmo tempo me pergunto se bate certo; não estarei a confundi-lo com recordações de outras paragens ou simplesmente a divagar?

Por exemplo, ponho-me agora a questão de saber se o senhor durante todos estes anos usou sempre o mesmo chapéu e, em caso positivo, que tipo? Seria um tirolês clássico, confeccionado com zelo mas de forma monótona e repetitiva numa fabriqueta do norte do país? Seria um verdadeiro Borsalino (o típico chapéu preto de Al Capone e Humphrey Bogart; feito segundo uma receita tradicional a partir do pêlo das costas de coelhos piemonteses)? Estarei enganado se me lembrar do senhor usando laço - da cor e do padrão tenho apenas uma vaga ideia; era preto? vermelho bordeaux? às pintinhas?

Fecho os olhos e tento recordar-me da sua fisionomia. Durante muito tempo cheguei a pensar que o seu olhar revelava um carácter melancólico, mas agora, que já não o posso ver, suspeito que revela algo diferente. Semicerro os olhos um pouco mais. Não, melancolia não é (melancolia acerca de quê?). Já sei, o seu olhar estava virado para o futuro. Se alguma expressão havia nos seus olhos, era certamente uma estranha combinação de descrença, resignação e até um ar trocista. Descrença naquilo que iria acontecer, os chapéus a serem lentamente arrumados em armários, empilhados uns encima dos outros, escondidos atrás de caixas com talheres que sobraram e aparelhos de cozinha que já não funcionam, comidos pela traça ou por outra bicharada que geralmente frequenta estes armários. Imagine-se o seu sofrer em silêncio, ao ver passar diante de si, ano após ano, tanta cabeça descoberta. Como a ira e a impotência se acumulavam em si quando as mesmas cabeças se riam de si, apontando-o do dedo, na sua montra, como se fosse o senhor o alvo de escárnio, e não eles, eternamente agarrados à carne e aos ossos. De qualquer maneira eram eles quem finalmente virava a cara e se punham a mexer.

Talvez se encontre aqui a explicação para o facto da sua descrença nunca ter dado em amargura, mas em vez disso se ter transformado em resignação. Não se trata de uma resignação lamentosa; nem o fatalismo de alguém que não acredita em nada, é mais o olhar de uma pessoa que está perfeitamente convencida que são os outros que estão errados, encolhe os ombros e não consegue disfarçar um sorriso (onde a descrença nunca está longe). ‘Resignação trocista’ é talvez a definição mais apropriada.

O senhor acha estranho que eu escreva aqui que só agora é que me dei conta de que a sua presença, atrás deste vidro, significava sobretudo e também tranquilidade. O mundo podia estar em más condições – os gelos polares a derreter, a superpopulação e o constante avanço da má-criação um pouco por todo o lado – a sua presença era um sossego; como se o senhor me segredasse; sim claro, é tudo muito grave, mas por enquanto estou aqui e daqui ninguém me tira; resisti a tantas catástrofes e veja lá, aqui estou. Como se me quisesse repreender: será que eu sabia que na realidade as pessoas há setenta anos também já pensavam que a Humanidade estava perdida e que o fim dos dias era para breve?

O fim do mundo ainda não é para já, e quem sabe, pode até surgir a qualquer momento (mesmo antes do fim, como última protecção do tecto celestial que nos vai cair em cima) uma época em que os homens novamente vão usar chapéu. Como sonho lúcido isso talvez lhe dê alguma tranquilidade, mas entretanto o senhor está aí especado, dia após dia, com a sua face a menos de dez centímetros dessa cortina, e a Rua da Cale perdeu o seu Presidente da Câmara.

Soledade Neves finou-se e a sua filha, que no ano passado ainda continuou na Rua da Cale com a loja dos chapéus, está doente, pelo menos foi o que disse uma vizinha. De vez em quando a loja abre as suas portas, por encomenda, mas quase sempre não se vê outra coisa senão aquela cortina, e a recordação daquilo que existe por detrás dela.

Excelentíssimo Senhor do Chapéu, permita que lhe suplique; faça uma vez na vida aquilo que pessoas sem imaginação julgam ser impossível, rasgue com um gesto firme essa infame cortina.

5 comentários:

ablogando disse...

Carmo da Rosa:
Com a falta de tempo que tenho desde há uns bons tempos para cá, escapou-me este "dois em um" de textos deliciosos, que só hoje, nuns instantes roubados a outras coisas, consegui ler.
Vou tentar compensar esta minha desatenção, publicando hoje uma referência a ambos lá pelas minhas bandas.
Abraço.

Carmo da Rosa disse...

Joaquim Simões, agradeço pela pequena parte que me cabe (a tradução) e vou comunicar ao meu amigo escritor.

ablogando disse...

Carmo da Rosa:
Na caixa de comentários ao post em que fiz referência a estes textos, foi deixado o seguinte:

Tentei responder no Fiel Inimigo a um tal senhor Stefan Beenderhaven, que cinicamente (ou papalvamente) tenta sujar o post do Carmo da Rosa, ainda que de forma aparentemente civilizada.
Não consegui, porque a caixa de comentários de lá agora é diferente e eu entendo mal as interactividades. Assim sendo, deixo aqui o meu comentário:
"Eu gostaria de dizer: não é verdade que Auschwitz e Sebrenica, entre outros matadouros, façam parte da nossa tradição. Eles são, sim, aquilo a que se chama "outsiders facts" da tradição, que é construída sim de consciencia e civismo. Os argumentos, nomeadamente de taxar de desconhecidos os congressistas, como se a Justiça e a Verdade fossem exercícios de notoriedade e dela dependentes, como refere o cripto-fascista Beenderhaven (a despeito do que pensará de si mesmo)é aquilo a que se chama o "efeito suma cum laude", ou seja: não importa que tenhas razão, importa é que sejas gente de gabarito, assim um simples arroto terá valor probatório. Era desta forma que, na URSS, Alemanha Hitleriana e, agora, muitas vezes entre nós, se tenta sufocar protestos legítimos, ora com o pretexto de que não se tem autoridade (?), ora com o de que se quer é protagonismo.
Churchil mostrou como responder aos Stefans,encenadamente "civilizados"ou despejadamente "testemunhas falsas": "Levantar bem a cabeça e manter a pólvora seca!".
E o resto é conversa em que não embarcamos.
josé de lencastre"

RioD'oiro disse...

"entendo mal as interactividades"

Para permitir defenestrar uns quantos cretinos, é agora necessário utilizar uma conta qualquer tipo gmail como 'login' que permita comentar. O nome relativo a essa conta aparecerá como identificativo do comentador.

Sorry for that ...

Em caso de dúvida, basta enviar mail para o endereço do blog que eu darei a ajuda que se impõe.

Carmo da Rosa disse...

Joaquim Simões,

Deixei este comentário no seu blogue em resposta a José Lencastre:

Stefan Beenderhaven é meu amigo de longa data, não é fascista, também não é um esquerdista, é apenas um intelectual liberal. Além disso não creio que queira sujar o meu nome porque precisa de mim para traduzir os seus artigos para português; eu preciso dele para corrigir os meus textos em holandês; dou-me muito bem com a mulher; tem um humor impagável e dentro de dias vou lá comer a casa. Como vê, não seria o momento ideal para sujar o meu nome.

Não, o Stefan apenas difere ligeiramente das minhas opiniões sobre o Islão. (Aliás, o comentário dele refere-se a outro post do Fiel Inimigo: Assinar a Petição).

Para ser mais preciso, ele, assim como eu, achamos que o Islão não interessa nem ao menino Jesus - nisto estamos plenamente de acordo. A nossa diferença consiste no facto de ele estar (por enquanto) convencido que a sociedade holandesa tem a capacidade de domesticar o Islão à força de boas intenções e muita tolerância… Eu sou mais céptico. É só esta a nossa diferença sobre esta temática. Mas uma pequena diferença pode dar pano para muita manga, quando ambos gostam de escrever e de polémica…