Este artigo de Alberto Gonçalves, (que é, para mim, o melhor colunista português) suscita a questão da inquietante parcialidade com que a maioria da imprensa ocidental enquadra certos factos.
A maioria dos jornalistas ocidentais relatou os acontecimentos com simpatia e até, em alguns casos, com um entusiasmo e um fervor que estariam bem em actos de agit-prop, mas que estão a léguas da informação neutra e tão objectiva quanto possível a que os códigos deontológicos obrigam.
Os ataques a jornalistas, quando levados a cabo por indivíduos afectos a certos grupos dos “maus”, são relatados com paixão, pormenor, indignação e abundante adjectivação. E são, sem excepção considerados como demonstrativos da maldade intrínseca desses grupos.
Mas tem também havido ataques igualmente brutais levados a cabo pelos “jovens” que, nas palavras entusiasmadas dos jornalistas, “lutam pela democracia e pela liberdade”, pese embora não ser possível resumir os acontecimentos a clichés tão simplistas. E o modo como estes ataques são relatados, quando o são, é completamente diferente. De um modo geral são escamotedos, relatados em poucas linhas, com omissão de pormenores importante, sem contextualização e, muito importante, evitando associá-los ao grupo de onde provêm.
O caso Lara Logan é paradigmático.
A jornalista ameriana da CBS, de origem judia, foi violada e brutalizada por dezenas de “jovens lutadores da democracia”. Ora isto não quadra nas narrativas épicas com que os manifestantes têm sido retratados, pelo que a CBS só deu conta do caso vários dias depois, omitindo as caras dos brutos e o facto de que gritavam “judia, judia, judia” enquanto se cevavam na jornalista. E o follow up tem sido tépido, de um modo geral passando a ideia de que se tratou apenas de um acto odioso de alguns indivíduos que, de modo nenhum, é representativo da sua cultura grupal, nem coloca em causa a narrativa de jovens idealistas e modernos, manifestando-se pacificamente pela democracia.
Na minha opinião, tem a ver com (mais) um efeito perverso do multiculturalismo e de excrescências da luta de classes.
Segundo esta visão, prevalecente nos media ocidentais, o que importa não é o acto, mas sim a que grupos pertencem quem o comete e quem o sofre.
Se o acto é cometido por indivíduos dos grupos “opressores”, ou “dominantes”, (brancos, ricos, judeus, ocidentais, homens), ele revela o carácter perverso da sua cultura e dos seus valores e é exposto e reportado de imediato, sem tergisversações e meias palavras.
Se é cometido por indivíduos dos grupos vistos como “oprimidos”, “explorados”, “dominados”, enfim, pelo “underdog” ( negros, muçulmanos, pobres, minorias sexuais, etc), é relativizado, escamoteado, descontextualizado e, de modo algum pode ser utilizado como prova de que há algo de errado com a cultura e os valores desses grupos.
Não é a verdade que lhe interessa, mas fazer parte da grande narrativa politicamente correcta.
Nesta narrativa, uma vítima só o é verdadeiramente quando pertence a um grupo “oprimido” e foi vitimizada por um indivíduo de um grupo “opressor”.
Se esta geografia não estiver presente, o caso merece menos atenção. É por isso que quando são os “oprimidos” a vitimizarem outros “oprimidos”, tudo se passa, em termos de cobertura noticiosa, muito mais discretamente e com explicações e justificações. Por exemplo, quando o Hamas matou centenas de palestinianos da AP, em Gaza, não houve grandes reportagens, indignações, ou caixas.
O Sudão é outro exemplo.
Quando elementos dos grupos “oprimidos” atacam elementos dos grupos “opressores”, a identidade grupal dos agressores é o mais possível diluída, como se pode ver na nossa própria televisão que reporta actos criminosos levados a cabo por certos gangues, como tendo sido cometidos por “jovens”, sem referir a sua etnicidade que é, muitas vezes, o factor relevante no acto. Chega-se ao ponto de não ser possível compreender o que se passa e as motivações envolvidas, como aconteceu há tempos num bairro de Lisboa, numa confrontação entre “grupos rivais” que só depois se percebeu, ao ver as imagens, ser entre negros e ciganos.
Mas se um skinhead atacar um indivíduo de um “grupo vítima”, não é de estranhar que haja notícia de 1ª página com títulos do tipo: “Crime racista-Skinhead ataca jovem negro”.
O mesmo bias se pode observar facilmente quando a imprensa relata os crimes do quotidiano. Um crime cometido por um indivíduo que é militar, por exemplo, merece títulos como “militar mata comerciante”. A ideia subjacente é, obviamente, a de que o crime tem algo a ver com a condição profissional do autor, uma vez que os militares são vistos como um grupo “opressor”. Se o criminoso é operário, a profissão já não parece relevante e o título será, por exemplo, “homem mata comerciante”.
Isto é assim mesmo e trata-se claramente daquilo que em inglês se designa por “bigotry”, um tratamento preconceituoso para com certos grupos. É socialmente aceitável mas é também revelador de uma espécie de novo racismo que recusa colocar todos os indivíduos sob o mesmo escrutínio moral, remetendo os juízos de valor para a identidade e a pertença grupal.
Neste caso das agressões a jornalistas, tanto Lara Logan como outros jornalistas, como Anderson Cooper, da CNN, foram vítimas, não pelo que são, não por pertencerem a este ou àquele grupo, mas pelos actos de que foram alvo. E quem os atacou são criminosos pelo que fizeram e não por pertencerem ou não a determinado grupo.
Na verdade, enquanto os jornalistas não se compenetrarem de que devem reportar sem tomar partido e sem se envolverem ideologicamente, teremos propaganda a mais e informação a menos.
9 comentários:
http://aperoladanet.blogspot.com/2011/02/um-islamofobico-confessa-se.html
Lidador:
"é relativizado, escamoteado, descontextualizado e, de modo algum pode ser utilizado como prova de que há algo de errado com a cultura e os valores desses grupos."
Vai-se mais longe. Aponta-se as insuficiências culturais "proporcionadas" ao pelo "opressor" ao "oprimido", para justificar que o responsável não foi quem perpetrou a coisa mas quem sofreu as consequências.
Exemplo:
O atacante é ignorante e não quis aprender o que devia por "não lhe interessar". Quer emprego, não encontra, assalta e ... mata.
O culpado foi quem não lhe "proporcionou" a "cultura" que ele desejava.
Evidentemente que ele sempre desejou não ter que queimar as pestanas mesmo independentemente da matéria que ele devia ter aprendido já estar empestada em coisas "apelativas" ao zote.
Em França levam-nos ou levavam-nos ao cinema ... e tal.
Neo-racismo.
Viva Cdr.
Eu também me sinto bem ao ver derrubar ditadores, embora, como muito bem disse, o "day after" nos dilua a alegria.
Tb acredito que a democracia liberal, a nossa democracia, é o sistema ideal para lidar com as mudanças nas sociedades e para digerir conflitos e apetites de poder. E propicia, além disso, países mais pacíficos e onde se vive melhor.
Mas estou convencido que este tipo de democracia não será naturalmente decantado naqueles países, na verdade penso que só à porrada, como fez o Ataturk, ou os americanos no Japão e Alemanha.
Mas isso são outras contas. Eu estava a referir-me ao bias jornalistico. Que é uma porra, porque quando os jornalistas se metem a mastigar as histórias, estão a meter-lhe uma saliva que eu não queria. O que eu queria dos jornalistas eram os factos puros e duros, não os temperos das suas (muitas vezes) patéticas crenças, entusiasmos, preconceitos e ideologias.
E isso é o que cada vez temos menos.
Acredite se quiser, mas muitas vezes prefiro ver a Al-Jazeera, porque sei do que é que a casa gasta e sei que tenho de dar um desconto ao que relatam.
Obrigado pelas estatísticas CdR, mas o meu post não é sobre isso. É sobre o relato de factos jornalísticos como, por exemplo, o ataque a jornalistas.
Ou, se quiser e para sair da Praça Tahrir, há uns anos quando os jornalistas ocidentais puderam observar em directo o linchamento de um israelita em Gaza. Eram várias dezenas mas apenas um italiano colheu imagens. Os outros passaram... O seu jornal publicou mas, no mesmo número pediu desculpa aos palestinianos.
Os outros, moita carrasco.
É este o tipo de bias a que me refiro no post.
O mesmo aliás, do famoso caso Al Durra que fez manchetes enquanto se pensava que tinha sido morto por israelitas, e desapareceu quando ficou provado que tinham sido os seus próprios compatriotas.
Aposto que a esquerdista Lara Logan não aprendeu nada com a brutalidade a que foi submetida e muito provavelmente vai colocar um processo aos EUA por não a terem defendido. A Betencourt, presa anos a fio a uma árvore como um animal, não culpa os FARCistas e colocou um processo ao governo colombiano.
Esta visão doentia da realidade está entranhada na esquerda-islamo-nazi: o bom camarada aceita a culpa que lhe atribuem e é fuzilado a cantar odes à revolução.
Não se trata de teorias conspiratórias, nem de nenhuma conspiração, eu pelo menos não falei nisso e o Alberto Gonçalves tb não.
Os jornalistas não agem assim porque estejam combinados ou mandados por alguém. Trata-se de um zeitgeist, uma afinidade ideológica, o chamado "politicamente correcto".
Oa casos invocados são apenas exemplos do problema, há inúmeros, é fácil referir mais.
Por exemplo, recentemente as forças armadas americanas fora processadas por se terem verificados abusos sexuais no relacionamento entre os géneros.
Se der uma olhadela à cobertura do assunto, que tem sido grande, nos EUA, acusa-se sobretudo a cultura e os valores que alguns acreditam estar na base desses casos.
O acto é o que menos interessa, interessa é acusar a "cultura" subjacente.
Nesta caso da Logan, os mesmos orgãos que acusam a cultura militar americana pelos casos de assédio sexual, etc, recusam estabelecer qq ligação entre a cultura islâmica, obviamente misógina, e os actos dos violadores.
Não é um a conspiração, isso é ridículo, é ler o mundo através de determinados filtros que são comuns em certos meios.
Cá está um exemplo, no caso relativamente a um político, mas que, regra geral, corresponde à 'afinação' de linguagem de jornalista:
http://cachimbodemagritte.blogspot.com/2011/02/lingua-do-ministro-amado.html
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