A ansiedade com que os franceses precipitaram a intervenção na Líbia, as hesitações americanas, etc., têm vários racionais que passam desapercebidos ao observador ocasional.
Para começar, o propalado objectivo de “proteger os civis inocentes” é apenas uma formulação politicamente correcta, que visa simplesmente disfarçar o que está efectivamente em causa. É a maneira mais fácil de o vício prestar tributo à virtude. Na verdade nem os rebeldes são apenas “civis inocentes”, nem a situação real pode ser descrita com a caricatura de um ataque de façanhudos militares, armados até aos dentes, com aviões, carros de combate e mísseis, contra pacíficos manifestantes, mulheres e crianças.
Quem são afinal os rebeldes?
Sabe-se que há rebeldes, sabe-se que têm armas e combatem, sabe-se, pela nossa imprensa, que são dos “bons” e lutam contra a ditadura, mas não se conhece, ou faz-se por ignorar, a sua verdadeira natureza.
Contudo suspeita-se: no Concelho Nacional de Transição há, pelo menos, 7 antigos ministros de Kafadi, e os restantes não parecem ser também lutadores pela democracia, mas fundamentalmente islamistas da linha dura, ligados à Al Qaeda e a anteriores tentativas para derrubar Kadafi. Não é por acaso que uma significativa percentagem de jihadistas capturados ou mortos no Iraque, era composta por líbios, originários do leste do país, da região que os rebeldes agora controlam. O facto de tanto o Irão como a Al-Qaeda estarem do seu lado, deveria fazer acender algumas luzinhas de alarme em certas cabeças.
Se isto é assim, então porquê a ansiedade francesa e inglesa?
Efectivamente parece estranho a alguns, que países como a França e a Espanha, tão críticos da “fotografia dos Açores”, e do “belicismo”, se contem agora entre os mais entusiásticos activistas da intervenção na Líbia.
Na realidade, a sua posição, bem como a da Inglaterra e de outros países europeus, nada tem de estranho. Estes países simplesmente avaliaram mal o desfecho da revolta líbia. Tendo interesses fortes no país (a Líbia é um importante fornecedor de hidrocarbonetos), acreditaram que Kadafi cairia suavemente, na linha de Ben Ali e Mubarak, e apressaram-se a apostar no cavalo que lhes parecia ir ganhar a corrida. A França precipitou-se ainda mais e reconheceu de imediato a liderança oposicionista.
O problema é que Kadafi, não só não caiu, como reagiu furiosamente, e estava em vias de retomar o controlo total. Dado o seu carácter vingativo, se prevalecer é de esperar que doravante use as matérias primas para prejudicar os países europeus que lhe tiraram logo o tapete, trate de se armar até aos dentes, incluindo armas de destruição em massa, facilite o trânsito de imigrantes para a Europa, etc. Um pesadelo estratégico, razão suficiente para que estes países europeus se vejam colocados perante o imperativo de, a todo o custo, derrubar Kadafi.
Em suma, apostaram no cavalo errado e são agora obrigados a dar um tiro no cavalo que se apresta para ganhar.
E porquê o titubear americano?
As coisas aqui são mais complexas e o Almirante Michael Mullen tem tido grandes dificuldades em explicar racionalmente qual o objectivo estratégico que se persegue com os ataques em curso e que, de resto, constituem uma monumental pirueta de Obama, tão grande como as da França e de Zapatero, relativamente às suas posições ideologicamente olímpicas.
A dificuldade de Mullen prende-se com o facto de a política externa americana, nos últimos tempos, não parecer ter uma racionalidade óbvia. Não é ditada apenas por interesses e não é também ditada exclusivamente por valores, pelo que importa tentar perceber a cosmovisão dos decisores.
Tradicionalmente, a politica externa americana no Médio Oriente passa por assegurar o fluxo de petróleo para os mercados, aos mínimos preços possíveis, apoiando os governos que contribuam para este desiderato e lutando contra os actores hostis.
Postas as coisas com esta simplicidade, tem todavia havido ao longo dos anos algumas areias, originadas em substratos mais ideológicos e até psicológicos, que fazem avariar a engrenagem. Entre essas areias, o desejo de manter boas relações com a Europa, e a necessidade de ficar nas boas graças dos media e um idealismo neo-kantiano, tributário da filosofia politicamente correcta que domina o mundo pós-moderno.
Com Obama, são estas areias que efectivamente dominam a engrenagem isto é, deixaram de ser areias e passaram a ser a engrenagem.
Obama e a sua entourage tipo "Jane Fonda” partilham uma visão genuinamente anti-imperialista, que assenta na convicção da culpa americana e da maldade intrínseca da sua hegemonia. São pessoas formatadas no esquerdismo festivo dos anos 80 e que, agora no poder, encaram com desconforto os seus aliados na região, os quais sempre considerarem cúmplices do imperialismo americano.
É isto que explica a verbosidade agressiva de Obama contra Israel e Mubarak, e a relativa complacência para com o Irão, por exemplo.
A posição neoconservadora é também muito importante nas questões de política externa. No debate sobre o Egipto Tunísia, etc, os neoconservadores estiveram do mesmo lado de Obama isto é, foram partidários do derrube dos ditadores, embora por motivos muito diferentes. O pensamento neoconservador assenta na associação entre interesses e moralidade, pelo que tudo deve ser feito para apear ditadores e fazer avançar a democracia liberal. Não por uma espécie de idealismo wilsoniano, mas porque se entende que a democracia liberal é superior, e um mundo de democracias liberais será mais pacífico, favorável ao livre comércio e aos interesses americanos.
É uma posição inatacável em termos de ideias, mas que foi duramente testada durante a Administração Bush, tendo emergido um certo cepticismo quanto à possibilidade de as sociedades muçulmanas poderem aceder normalmente à democracia liberal, face a uma patente incompatibilidade de valores fundacionais. Mesmo o modelo turco, tantas vezes referido como exemplo, parece já não o ser tão exemplar como isso.
No caso da Líbia, obviamente os neoconservadores favoreceram a intervenção, mas Obama arrastou os pés, tergiversou e preferia não interferir, porque a Líbia não faz parte do universo mental dos “cúmplices da América”.
Quem fez pender o fiel da balança foi o campo a que poderemos chamar dos “populistas”, aqueles que, ligados a um sector importante do Partido Democrata, querem acima de tudo ser politicamente correctos e ter boa imprensa na Europa, numa necessidade psicológica de ser amados pelas hostis intelligentsias europeias.
Foi a convergência destes interesses e pontos de vista que ditou a intervenção americana
Postas as coisa nestes termos, já nada há a fazer e o que está agora verdadeiramente em causa não é a “protecção de civis inocentes”, mas sim a imperiosa necessidade de depor Kadafi, custe o que custar. Não é o que consta do mandato da ONU, mas é isso que tem de ser feito, sob pena de a Europa se ver a braços com um problema intratável no seu flanco sul.
O que não pode deixar de se constatar é que a demente politica externa americana na região, a cavalo das ideias olímpicas de Obama, está a concorrer para transformar o Médio Oriente num espaço hostil aos interesses americanos e ocidentais. O Egipto, por exemplo, acaba de aprovar, em referendo, a sharia como fonte principal do direito. O agendamento das eleições para Setembro, garante que apenas a Irmandade Muçulmana e o Partido de Mubarak (a clássica bipolarização entre islamistas e autocratas), terão capacidade para as disputar devidamente, sendo sendo pouco provável que as correntes liberalizantes tenham qualquer hipótese de se organizar em tão pouco tempo.
O guião iraniano parece estar a ser seguido ao milímetro e esse filme não acabou nada bem para os interesses ocidentais.