Ontem à noite, depois de ter respondido ao Paulo Porto, achei que deveria esclarecer melhor algumas coisas e acrescentar umas, poucas, mais. Pelo que só amanhã publicarei o resto - na esperança de, entretanto, arranjar uma horita vaga para o completar...
(...)
Os chamados “grandes primatas”
dividem-se em quatro grupos: os orangotangos, os gorilas, os chimpanzés e os
bonobos. Dos três primeiros, todos ouvimos falar frequentemente e conhecemos a
maioria das suas características e hábitos; não dos últimos, que, no entanto,
apresentam aspectos interessantíssimos e mesmo mais aproximados aos humanos do
que os restantes. Um deles é a utilização do sexo como modo e instrumento de
coesão social, de saneamento de conflitos. “Make
love, not war” e “peace and love”
são, neles, não uma ideologia ou preceitos de um catecismo mas prática
fundamental para a sua existência, individual e de grupo. O contacto
homossexual nela incluído. Ao contrário das habituais lutas pelo poder, da
disputa das fêmeas, das guerras de grupos e por aí fora, observáveis entre os
outros, entre os bonobos o que é comum observar-se é que tudo f…, minha gente.
Se desconhecia o que eu disse e quiser um pouco mais de informação sem ter que ir a correr à biblioteca,
veja aqui .
Dá para se ficar com uma ideia.
Os bonobos estão mais próximos de
nós porque, entre outras coisas, deram uma função à sexualidade que ultrapassa a da reprodução e a da
simbologia da submissão ao macho vencedor; os bandos têm, até, uma estrutura
matriarcal. Mas, admitindo, como o faziam ainda os antropólogos darwinianos
alguns anos atrás, que o ser humano provém de uma evolução do estado macacal,
onde está a violência dos macacos para com as fêmeas enquanto preliminar de
conquista? Não se observa nos bonobos, como não se observa nos restantes
primatas nem em nenhuma espécie conhecida. O que pretendo eu dizer com isto?
Vou tentar ligar as peças do que parece um puzzle,
acrescentando-lhe uma outra.
O século XIX é, como todos
sabemos e eu já lembrei vezes que cheguem, um século cheio de profetas e
messias. Um deles foi Augusto Comte, o patriarca da ciência que investiga as
leis de formação e consolidação das sociedades humanas bem como as que permitem
prever a sua evolução, com vista a formar a sociedade perfeita e definitiva: a
Sociologia. Marx nunca reconheceu a influência que nele teve Comte (talvez
porque este considerasse a propriedade privada como indispensável para formar o
carácter do cidadão da Humanidade Nova, ao nível do desenvolvimento do sentido
e do sentimento de solidariedade), mas certamente que a sua juventude não o desconheceria já. É que a “filosofia positivista” teve um papel decisivo em muito do que aconteceu
nos 100 anos que se seguiram à morte de Comte, em 1857, e a sua influência
perdura em grande medida já neste novo milénio graças a um conjunto de circunstâncias
que lhe foram propícias e ao facto de, por ser conceptualmente primária,
facilmente haver seduzido os sequiosos de poder de horizontes estreitos em
todas as áreas. Não por acaso, a sua obra de referência chama-se Catecismo Positivista.
Não entrarei em pormenores sobre
o positivismo, como filosofia. Assinalarei apenas o fundamental:
- Para Comte, a humanidade evolui
ao longo de três estádios: o religioso, assente na superstição, próprio de
sociedades arcaicas; o metafísico, em que já se procura especular racionalmente
sobre o tema das origens do mundo e de um seu Criador, como foi o caso da Idade
Média (cá está ela, de novo); e, finalmente, o estádio positivo, no qual,
desprezando tais questões como menores, insolúveis e mesmo sem sentido, a
humanidade considera o conhecimento científico, o conhecimento do que se lhe
apresenta aos sentidos, como o único válido. O ateísmo, aliás, enquanto
movimento exclusivamente ocidental e do século XIX, fundamenta-se nestes princípios;
passa-se, deste modo — contraditoriamente com o primado estabelecido da racionalidade
—, da fé que afirma a existência de um nível divino, absoluto, do ser, para uma
fé que afirma o seu oposto.
- De qualquer modo, a humanidade
necessita de uma religião — se o quisermos: de um horizonte. Há, pois, por este
motivo, que criar uma nova religião, a que é própria desses Amanhãs que Cantam
visionados por Augusto Comte: a religião positivista. Além dos templos em que
se presta culto à Humanidade, as estátuas que representam os ídolos da
superstição e da irracionalidade de outrora deverão ser substituídas pelas dos
grandes benfeitores da grei, dos cientistas… E, sobre todas as outras ciências,
como sua síntese útil e orientadora, aquela que visa a felicidade humana
definitiva: a Sociologia.
Basta lembrar que, a este segundo
nível, Comte foi o guru de múltiplos movimentos republicanos, incluindo o
português e da I República lusa; que a frase “Ordem e Progresso”, inscrita na
bandeira brasileira, se refere à visão comteana da sociedade perfeita do futuro
sob a égide da ciência sociológica; que, a Igreja Positivista do Brasil se mantém desde há 120 anos… Tão ou mais importante, porém, do que os aspectos
político directos, são os que dizem respeito ao caldo cultural de “cientismo”
que ajudou a formar e a disseminar mesmo dentro do próprio meio científico,
assente na autoridade dos novos conhecimentos e das novas tecnologias, chegando
a travar uma investigação séria e a ostracizar quem o queria fazer. A doutrina
positivista e os seus conscientes e inconscientes esbirros serviram poderes
políticos de todos os matizes, nas universidades e fora delas. Por cá serviram
Salazar depois de terem servido a I República, anulando tudo o que fosse
tentativa de renovação e alargamento de estudos fora das suas perspectivas.
O primarismo conceptual do
positivismo, maior ainda do que o do materialismo histórico, marxista, não o
deixou reinar por muito tempo no que respeita às chamadas ciências humanas;
quatro décadas bastaram para a contestação adquirir teorização e metodologia
próprias e eficazes. Mas, uma vez mais, tal como sucedeu com o marxismo, as fragilidades do positivismo transformaram-se na sua maior força. O positivismo constituiu um veneno
muito mais insidioso porque contava com um princípio fundamental na sua fé,
irresistivelmente lisonjeiro para qualquer membro da tecnologicamente
triunfante civilização ocidental: o homem europeu ou, mais latamente, o de
qualquer cultura de raiz europeia, seria aquele que se superiorizara a todos os
restantes homens do planeta, ao conseguir furtar-se às trevas religiosas e
metafísicas. Constituindo o cume inultrapassável de uma evolução histórica,
constituía igualmente a referência para tudo o que o antecedera. E o que
antecedera o homem positivista, como não podia deixar de ser, pelos
pressupostos do seu catecismo, fora o mundo da superstição e da barbárie que o pensamento, enfim iluminado e esclarecido, naturalmente deixava adivinhar. A
estratégia que já servira aos Renascentistas, reutilizável, serviu, quatro séculos depois, às novas mistificações.
Nem todas as imagens se podem
gabar, como esta, de tão grande, espontânea e duradoura aceitação simultânea
por mundos tão diversos como a rua e o gabinete do estudioso académico:
refiro-me à consequente grande ilustração positivista do acasalamento troglodita. Nela,
para estarrecimento e gozo das massas e afirmação do superior saber da
instituição universitária que as elevava, por fim, ao verdadeiro conhecimento,
passava o filme do brutamontes apenas quase humano, empunhando, triunfante, a
moca com que espancara a fêmea que agora arrastava pelos cabelos, vencida, não
interessa se convencida. E duas convicções contraditórias se firmaram,
subliminarmente, no inconsciente de ambos os sexos, com tal imagem de grande
sucesso sapiencial e comercial: a de que o nosso tempo era incomensuravelmente
superior às épocas anteriores; e a de que o natural e legitimamente desejado sexo às
claras era o sexo bruto, que, com ou sem a mocada preliminar, pouco mais era do
que a “mocada” praticada por pura pulsão. Ainda hoje vemos, por tudo quanto
constitui o mundo da social-comunicação, a constante mas indecisa valorização quanto à essencialidade sexual, o balanço entre uma sexualidade “animal” e uma outra
que, por mais humana, deixou de se ter a certeza sobre se é “natural”,
“cultural” ou simplesmente disfarce para preservação do indivíduo e da
sociedade.
A imagem era sublimadora de
tantas pulsões que ninguém, ao início, questionou o óbvio. Em primeiro lugar,
uma vez que ninguém alguma vez se cruzara com um troglodita, como se podia
saber serem aqueles os seus hábitos? Não existindo documentos que o
comprovassem; nunca se tendo observado nada de parecido em qualquer das tribos
arcaicas conhecidas nem vestígios de antigas tradições que o sugerissem —
antes, nas mais arcaicas, predominando o matriarcado; sendo o comportamento do
macho, em todas as espécies existentes na natureza, o oposto do afirmado sobre
o do abominável homem das cavernas: em que homem comprovadamente existente se
poderia encontrar tal comportamento? Nos camponeses, esses excluídos da
alfabetização? Não, respondia Chesterton, um século atrás, mexendo, divertido,
os dedinhos dos pés dentro das botas, transformando como ninguém a inteligência
e o riso em ironia incomparável: os antropólogos confundiram o homem
“primitivo” com o homem dos bas-fonds das
grandes cidades europeias. O “homem primitivo” da antropologia, dizia ele, não
é mais do que o chulo que bate na sua pêga e a arrasta pelo chão, antes de lhe
arrear de outra maneira para consumar o seu domínio — porque esse “homem
primitivo” nunca existiu fora da degradação das ruas escusas e do aviltamento
humano que nelas se acoita. Um macho estranho e repugnante para qualquer bonobo,
acrescentaria eu.
Meu caro Carmo da Rosa, veja
agora como o nosso cérebro, e com o nosso, o de milhões e milhões de homens e
mulheres das gerações seguintes, foi formatado por uma patranha simplória mas de altíssima eficácia
manipulatória, concebida por um conjunto de estúpidos “positivos”, ávidos de
poder. Deixe lá, o que está debaixo do nosso nariz é o que mais dificilmente
conseguimos ver, tão dificilmente que na maioria das vezes morremos sem ter
conseguido fazê-lo. É nas pedras que tropeçamos, não nas montanhas.
E repare agora, também, nas
consequências. Porque tal imagem, repito, se constituiu um acicate no processo
de transformação social ao nível da definição, papel e do estatuto de cada um
dos sexos que se verificava e se acelerou e pelas duas guerras, também foi em
grande medida a origem da grande bagunça hoje existente tanto no que respeita à
caracterização da sexualidade como à sua prática. Primeiramente porque ajudou a
criar uma divisão interior entre qual o “verdadeiro sexo”, o que se deve
praticar, para atingir o verdadeiro gozo: o “animal”, entendido como a tradução
de uma pulsão num mecânico truca-truca; ou o “humano”, cheio de variantes mais
ou menos desejadas e bem vistas, predominantemente de raiz cultural. Depois, e
em consequência, porque pôs no caminho do feminino em processo um escolho extra
e de tratamento nada fácil. Um escolho sem palavras que o caracterizem e que
actua directamente por sugestão, não é nada fácil de resolver.
(...)
2 comentários:
Isto é artilharia pesada, caro Gonsalo.
José Gonsalo,
Quem são os positivos e o que é que conceberam que eu não veja?
E o que é que eu ainda tenho que resolver?
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