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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O pendular e as cobaias na corda-bamba

Como já disse numa caixa de comentários qualquer, estive no Porto e vim de lá agora.

Calculo que queiram saber se as moçoilas do Porto continuam tão garbosas e substantivas quanto antes, mas não é por essa razão que estou escrevendo estas linhas. Escrevo estas linhas por via do pendular. O comboio que dá pelo nome de Alpha Pendular.

Para a malta do Brazil (brazucas, como lhes chamamos), o pendular é um comboio que ‘balança pr’a cá e pr’a lá’, ao ritmo das curvas ... do trajecto. Inclina-se nas curvas, diz a CP, para aumentar o conforto.

Ora bem, parece que o dito foi comprado carito porque será capaz de andar a 250KmH. Se foi, talvez em 80% do tempo ele não passe dos 100KmH e, uma boa parte dele, dos 50KmH. É suposto parar apenas umas 3 vezes, mas para além das legítimas paragens, pára mais uma dúzia de vezes, aqui e ali, algures, em terras de ninguém.

Acelera e trava, acelera e trava, acelera e trava. Do desperdício de energia nem se fala.

As cadeiras são de suma-páu, incapazes de permitir que se endireite a coluna vertebral. O Intercidades (comboio de qualidade supostamente inferior, mais lento, tem assentos de muito superior qualidade). Qualquer autocarro tem conforto muito acima do pendular.

Nas zonas de percurso em que os carris não são soldados, um determinado cadência de pancada nos rodados provocam uma oscilação na carroçaria que parece indiciar que a coisa se vai desintegrar. As pessoas têm de parar de conversar porque se deixam de ouvir umas às outras. Nas zonas em que os carris são soldados a coisa acalma. Mas nos tacs e nos tics das uniões dos carris aquilo range por todo o lado, em particular nas prateleiras onde se coloca a bagagem de mão.

Entretanto passa uma menina a perguntar quem quer jantar e, pouco tempo depois, começa um filme sobre ... a “valorização” do lixo.

Lixo e mais lixo, lixo e mais lixo, e aparece a menina a distribuir o jantar. A malta destapa o jantar, espeta o garfo, levanta o nariz e ... lixo e mais lixo, lixo e mais lixo.

Sente-se então um fedor bizarro. Os repastantes arremelgam os olhos para as batatas mas, não. Não é daí. O snif vem de fora.

E o filme continua a mostrar lixo e mais lixo, reciclagem para aqui, gruas carregadas de lixo para ali.

De forma às vezes aparentemente síncrona com alguns planos do filme volta o snif, e a malta volta a olhar enjoada para a comida que ainda resta no prato e é aqui que a coisa atinge o ponto de rebuçado.

Aproxima-se a sobremesa e o filme aborda a problemática da minhoca como recicladora de lixo. Minhoca para aqui, grande plano para ali, minhoca para acolá, muito tempo é consumido mostrando uma exuberante quantidade de grandes planos de espécies de minhoca.

Os comensais a certa altura, entre o snif que regularmente empestava o comboio, a vibração que tudo sacudia e uns quantos planos e modelos 3D de minhoca, olhavam no ecrã o garboso animal e invectivavam a comida, eventualmente interrogando-se sobre a origem da dita.

A comida lá ia acabando, as minhocas desaparecendo mas o processamento do lixo continuando.

Mas o cheiro voltava. Ia e voltava. Não podia ser coisa de uma ou outra zona por onde o comboio passava porque, entretanto ia prosseguindo e o mesmo cheiro voltava. Aquele aroma não me era estranho mas não o reconheci de imediato até que o comboio travou fortemente. Travou e voltou a acelerar e o cheiro transformou-se em bedum capaz de acordar um morto. Reconheci então o cheiro: ferrodo.

"Cheiro a ferrodo* queimado" é o termo que se usa quando um automobilista abusa da embraiagem levando o respectivo disco a uma tal temperatura que o obriga a produzir aquele cheio característico, altamente desagradável. Também os travões, em determinadas circunstâncias, normalmente relacionadas com excesso de temperatura, libertam aquele aroma. Tudo indicava, portanto, que o comboio, a cada travagem, libertava uma quantidade substancial de cheiro a ferrodo queimado, cheiro que penetrava as restantes carruagens eventualmente pela ventilação.

A generalidade dos comboios tem hoje travões eléctricos. Este tipo de travão não produz desgaste mecânico libertando apenas calor. Suponho até que, nalguns casos, esse travão gera energia que devolve à catenária. De uma forma ou de outra, uma ou mais carruagens daquele pendular deviam ter o sistema avariado e usavam apenas o travão mecânico que funciona por atrito do tal ferrodo contra um disco de aço. A repetição de travagens estaria a provocar sobreaquecimento que libertava o cheiro nauseabundo.

Mas entretanto acabou-se o filme do lixo e das minhocas e também o jantar e o bedum, só por si, trouxe a felicidade possível àquela máquina infernal capaz de andar a 250KmH mas que se passeia, frequentemente, a não mais que 50. Enfim, excelentes investimentos. A vibração, que voltava de quando em vez, ia-nos lembrando quão bom era terem-se acabado as minhocas.

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* Ferrodo é uma marca de componentes relacionados com o assunto, que acabou por dar o nome ao material, mais ou menos sintético, que compõe pastilhas ou calços de travão e discos de embraiagem.

7 comentários:

Carmo da Rosa disse...

Excelente resenha.

Rod, mande este texto como carta para a CP ou então, caso eles tenham um site.......

Mas já agora gostaria de saber alguns detalhes.

Este Alpha Pendular parte da estação Oriente e vai para Campanhã ou para São Bento? Quanto é que custa uma viagem deste tipo? O que se come – sem o raio do filme claro, porque realmente é preciso não ter mesmo dois dedinhos de testa para espetar com um filme deste tipo enquanto as pessoas almoçam!!!

RioDoiro disse...

O artigo já foi enviado à CP. Vao demorar meses até responderem.

Parte de Sta Apolónia e vai para Campanhã. Há também opções para Braga e Guimarães.

Lisboa-Porto, 27.50€ o mais barato.

A viagem de autocarro é substancialmente mais barata!

Não sei bem o que se come, os gajos que morfavam estavam a uns 6 metros de mim.

Anónimo disse...

Parte das carruagens não é soldada???

Será que com o tempo o ferrodo desaparece?

Vá lá não era um filme sobre o AGW...

Bancos maus são os "ergonómicos" do metro de Lisboa, esses é que não permitem endireitar as costas.
(pelo menos eram há 3 anos, duvido que tenham mudado)

bob

RioDoiro disse...

BOB:

"Parte das carruagens não é soldada???"

Onde é que eu disse isso?

O que só por vezes (nos casos mais recentes) soldado são os carris, uns aos outros. Soldados em troços de umas centenas de metros e o processo de junção de troços funciona como se fosse um funil. Nos casos em que não são soldados os troços são de uns 50 metros e são apenas justapostos topo a topo, deixando folgas para dilatação que produzem uma barulheira dos diabos.

Mas, caro Bob. Nunca olhou, com olhos de ver, para uma linha de caminho de ferro?

"Será que com o tempo o ferrodo desaparece?"

Nunca reparou que, de vez em quando, se colocam novas pastilhas de travão nos carros?

"Bancos maus são os "ergonómicos" do metro de Lisboa, esses é que não permitem endireitar as costas."

Esses não permitem que se fique sentado por muito tempo, mas são excelentes para quem tem pernas compridas e goste de empernar.

"(pelo menos eram há 3 anos, duvido que tenham mudado)"

Não mudou.

Unknown disse...

Grande texto, RoD.
As tripas fizeram-lhe bem.

Carmo da Rosa disse...

Por falar em tripas, dizem as más línguas - Miguel Esteves Cardoso - que O Aleixo, em Campahã, é um dos melhores restaurantes regionais do Porto! Será verdade?

Nausícaa, São Paulo, Brasil disse...

Caro Range-o-Dente,
Eu vim tentando, por esses vários dias, lembrar onde eu havia lido algo a respeito deste trajeto Porto-Lisboa.
Enfim, ei-lo em http://www.jpcoutinho.com/default.aspx?Tipo=Conteudos&area=7

Provavelmente, vós já deveis conhecê-lo na forma e no conteúdo, pois não?