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quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

INTELECTUAIS E FUTEBOL...





O Mané do Café, pintor, escritor e o dono do café mais engraçado de Lisboa, o Tejo Bar em Alfama (perto da Igreja de Santo Estêvão), criou um blog para amantes de futebol discutirem acerca do assunto - o ESFEROPÉDIO - e lançou esta pergunta retórica, que parece já ter sido formulada em 1972 por Ruy Belo, jornalista de A Bola.


Quer-nos parecer que começa a ser tempo de o intelectual ou o artista irem perguntando a si próprios por que motivo o público que lhes falta esgota lotações dos estádios, num país subdesenvolvido do Ocidente ou numa república popular, pelo maduro prazer de assistir, durante noventa minutos, às aparentemente loucas correrias de um punhado de homens atrás de uma caprichosa bola de couro.

Aqui está a minha resposta com a grande ajuda do intelectual holandês August Willemsen:

É óbvio que um intelectual não atrai milhões de pessoas e serve apenas um público restrito, senão não era intelectual e diria as mesmas banalidades que o Cristiano Ronaldo ou o Edson Arantes do Nascimento.

Nos artistas a coisa complica-se. Há realmente também artistas que esgotam lotações nos estádios, por exemplo músicos populares, de preferência anglo-saxónicos. E o mais engraçado – para quem acha piada, eu não! – é que por vezes nem precisam de saber cantar ou tocar um instrumento! Basta colocar discos: veja-se a inexplicável popularidade do energúmeno DJ. Enquanto que outros artistas há, sobretudo os artistas plásticos, sobretudo os que têm veleidades intelectuais, que só são conhecidos entre a família e os amigos.

Entre estes últimos, alguns há que é realmente uma pena não serem mais conhecidos. Mas também há outros que devíamos dar graças a Deus pelo facto de eles não esgotarem lotações nos estádios, porque são REALMENTE MUITO CHATOS. São uma seca de alto lá com o charuto….

Também é preciso ter em conta que “as aparentemente loucas correrias de um punhado de homens atrás de uma caprichosa bola de couro”, é só aparentemente uma louca correria! Na realidade o futebol há muito tempo que deixou de ser desporto para ser uma reprodução da própria vida. A partir de agora dou a palavra a August Willemsen, que eu traduzi do holandês:

Eu próprio, em 1973, ouvi a história de um modesto empregado de mesa num restaurante da Praça Tiradentes no Rio de Janeiro. Depois do ‘Chile’ [Campeonato do Mundo de 1962 - CdR] ele começou a viver ainda mais poupadamente do que aquilo que já fazia. Do seu parco salário ele punha de lado quase tudo. A família passava privações mas ele tinha que ir a Inglaterra [Campeonato do Mundo de 1966 – CdR]. Houve familiares que contribuíram, e com essa ajuda e passando muitas necessidades, lá conseguiu juntar a soma necessária.

Mas com tudo isto, este homem modesto no Brasil, ainda não tinha resolvido todas as dificuldades. Quando tratou do passaporte e pediu um visto, as autoridades quiseram saber como é que ele, um simples empregado de mesa, tinha conseguido arranjar tanto dinheiro. Não queriam acreditar na sua história; roubo ou outra actividade suspeita parecia-lhes mais provável. Com muito esforço lá conseguiu convencer as autoridades, mas no aeroporto a aduana criou novamente dificuldades, achavam a coisa muita estranha. Lá conseguiu finalmente partir para Londres.


Para uma vitória miserável, dois jogos de merda e o Brasil eliminado na primeira-mão.

Isto passou-se há sete anos, ele deve ter contado a história umas cem vezes porque a contava com uma abnegação fatalista: ‘Essas coisas a gente esquece.’
Pensar nisso fazia-o sorrir; era eu quem tinha quase vontade de chorar. Apercebi-me que esta era a história de dezenas de milhares. E raramente reagi tão furiosamente contra as pessoas que olham o futebol com desdém, assim como contra os sentimentos que o futebol, segundo elas, provoca em muita gente.

Apesar de já ter descarregado a bílis noutras ocasiões, faço-o outra vez com muito prazer, contra os lugares-comuns levianos e idiotas, da moda e pedantes que dizem que o futebol (ou o desporto em geral) é o ópio do povo, [as outras religiões é que são o ópio do povo, e o Islão é uma overdose! – CdR] utilizado por regimes perversos para evitar que as pessoas se ocupem com política e problemas sociais. Pelo contrário, eu penso que aqueles que pensam desta forma são os que se colocam fora da realidade. Precisamente no Brasil o futebol é a mais autêntica manifestação da cultura actual.

A popularidade do futebol não flutua de maneira nenhuma com as mudanças de regimes ou de governos. Porque em países como o Brasil, duas horas de futebol são para milhões de pessoas o único escape para uma semana de frustrações e de humilhações. Através de um breve regresso ao seu tempo de criança, pela identificação com o seu herói, o torcedor pode transformar-se momentaneamente num vencedor e ser menos infeliz. Querer negar ao povo este pequeno prazer é querer castigar aqueles que no Brasil já são tão castigados, porque são ‘povo’.


Além de sádico é tacanho. Porque quem é esta gente?

É a bem dizer toda a gente. De todas as idades e de todas as classes. E eu penso que, se o futebol no Brasil une as classes sociais em vez de (como no meu país temos tendência a pensar e como é geralmente o caso) de as separar, isto deve-se a um existente denominador comum infantil. Eu uso a palavra com alguma hesitação porque dá imediatamente azo a associações com imbecilidade ou com o assumir de uma atitude arrogante. Mas eu refiro-me à infantilidade própria do homo ludens, à ingenuidade e à espontaneidade com que o ‘homem lúdico’ encara alegria e tristeza, e como a exprime. Isto é a essência da muita citada máxima de Armando Nogueira: ‘Para entender a alma do brasileiro, há que apanhá-lo no momento do golo.’

Mas porquê futebol e não outro desporto jogado com uma bola? Esta pergunta é válida para muitos países. Também não existe uma resposta exclusivamente brasileira. A tese de Armando Nogueira, de que o brasileiro pela sua alma ‘esférica’ estaria predisposto para o futebol é enternecedora e poética, mas falha por falta de consistência. Uma outra hipó(tese) tem a ver com o facto do futebol ser tão imprevisível, fazendo um apelo ao poder de improvisação, o que é uma característica essencial do comportamento do Brasileiro. Isto assim já me cheira.

Na realidade o futebol é também na Holanda dos desportos mais populares, enquanto que nós somos conhecidos por não ter poder de improvisação, mas nós também jogamos de maneira completamente diferente. Mesmo o nosso futebol lúdico dos anos ’70 era em grande parte baseado em padrões estudados – e é precisamente a isto que o brasileiro tem uma enorme aversão. A falta de precisão, o inesperado e o improvisar, tão característico no comportamento do brasileiro, reflecte-se também no futebol deles – mais do que em desportos jogados com a mão, porque com as mãos cometem-se menos erros. E marcam-se mais golos.

Isto é o que faz com que desportos como o andebol e o basquetebol sejam tão insuportáveis para os amantes de futebol. Há uma desproporcionalidade. Há golos a mais. Há uma inflação que faz com que o golo perca o seu valor como clímax. Nenhum mortal aguenta explodir vinte, muito menos cem vezes por partida num orgástico choro de alegria, ou entrar o mesmo número de vezes em depressão suicida.

2 comentários:

José Gonsalo disse...

Tempos atrás, dizia o Chico Buarque de Hollanda, que não perde uma peladinha ou assistir a um bom jogo da modalidade, que «o futebol é expressão corporal».
De facto, ao recusar o mais fácil e primário, que é utilizar as mãos para movimentar a bola durante o jogo, obrigando a que todo o corpo se movimente, da cabeça aos pés, conseguindo o dificílimo controlo e domínio de trajectória da mesma, o futebol torna-se, desde logo, numa manifestação estética a um nível que nenhum dos outros desportos, mesmo o basket, consegue atingir. Depois, há a intuição e a inteligência necessárias para se jogar bem numa equipa que comporta onze companheiros. E se, além disso, lhe juntarmos os restantes elementos que se encontram no texto, é natural que o futebol acabe por ser o entretenimento de massas com maior sucesso.
Há ainda outro aspecto que tem vindo a diluir-se, melhor dizendo, a abastardar-se: refiro-me ao sentido de lealdade e companheirismo, de cooperação que tornava o desporto numa escola de civismo. Um dos romances juvenis de que mais gostei tratava exactamente disso. E, curiosamente, acabei por viver, em família, uma situação semelhante. Um familiar meu, jogador de um clube amador e da selecção nacional da modalidade que praticava, recusou um convite vantajosíssimo de um clube grande, do qual era adepto!, para não prejudicar o clube que lhe dera formação e renome, e também para não prejudicar o grupo de que fazia parte. Outros tempos? Talvez. Mas isso não diminui tudo o resto.

Carmo da Rosa disse...

@ José Gonsalo: “o futebol é expressão corporal”

Estas são as tais coisas que as pessoas – normalmente os artistas – dizem porque soa bem, mas é possível imaginar outros desportos que têm até mais “expressão corporal”…

O seu comentário demonstra que leu com a atenção devida e retirou o essencial – parabéns.

O sentido de “lealdade e companheirismo” realmente quase que desapareceu no futebol moderno. O ponto de mudança é o profissionalismo, que progressivamente acabou com o ‘amor à camisola’ do seu familiar. Mais tarde voltarei ao assunto com

O desporto como escola de civismo é também um tema interessante, que devia ser desenvolvido. Porque, apesar do futebol por vezes dar origem a autênticas batalhas campais e a maior parte dos jogadores nunca terem ouvido falar de ‘fair play’, a quem diga – um intelectual holandês escreveu há uns anos atrás um ensaio muito interessante acerca deste tema que cheguei a ter na minha posse, enviei-o a amigos e hoje gostaria de o ter e não há maneira de o encontrar! – que o lado cívico do futebol é que obriga gente que nunca o faria a respeitar regras, a cumprimentar o adversário – mesmo depois da derrota.