Há um par de anos eu viajava de carro todas as madrugadas de domingo para segunda-feira para o sudeste. Pela 1 ou 2 horas da manhã, mais perto da fronteira, já era possível ouvir as estações de rádio espanholas. Era por essa hora que começava numa cadeia de rádio espanhola ‘La Otra Realidad’.
‘La Otra Realidad’ era um programa de rádio fantástico em todos os sentidos. Um locutor, com afã e preocupação, ia trazendo notícias sobre acontecimentos em que o sobre-natural era afinal tão real como a própria realidade. O programa incluía gravações em que atores dramatizavam ocorrências. Podiam ser os avisos ou ameaças de um condenado antes de morrer que depois de confirmavam, ou um diálogo verídico com ‘el hombre del saco’ que trazia mesmo um saco negro e que tinha tentado o rapto de mais um ‘niño’, ou as comunicações de uma alma penada com os seus familiares vivos e aterrorizados, ou o aparecimento de mortos e desaparecimento de vivos num qualquer ‘cortizo’ assombrado perdido na desolação da ‘sierra’ andaluza. Tudo acompanhado de efeitos sonoros apropriados, isto é, arrepiantes. E tudo muito bem produzido porque sem boa trilha sonora não há filme de terror digno desse nome.
A isto seguiam-se os e-mails dos ouvintes lidos pela voz feminina do programa. Alguns deixavam escapar que tinha valido a pena, quanto mais não fosse pelos calafrios e ‘pelos en punta’ que a dramatização tinha causado. Outros não hesitavam, ‘pongan más’. Por fim, prometia-se a repetição da dramatização mais à frente, para satisfação dos pedidos de vários ouvintes. Mas, atenção e cuidado, lá porque aquilo era uma dramatização, não queria dizer que não tivesse, realmente, acontecido.
Um dia o programa começou com uma notícia de última hora. Havia telefonemas de alguns ouvintes dando conta de objetos estranhos cruzando o ceu naquele mesmo momento. Não se sabia o que se passava e pedia-se aos ouvintes que tivessem mais informações ou relatos que os partilhassem. Não foi preciso mais para se perceber que caiam tantas estrelas do ceu como telefonemas no programa.
Os testemunhos dos ouvintes eram inquestionáveis e confirmavam tudo. Algo de extraordinário e fantástico se estava passando nos céus de toda a Espanha. O que seria?
Logo apareceram também os conhecedores da reposta, desta vez trazidos pela voz feminina. Segundo uns, deviam ser naves de extraterrestres e era desta que eles iam tomar conta do planeta e castigar os maus governantes do mundo. Outros diziam que não, que os extraterrestres faziam estas corridas com regularidade pelo que ‘no pasa nada’. Outros diziam que também não, que eram as grandes potências do mundo que estavam testanto máquinas fantásticas e secretas e que o faziam à noite, nos ceus da Espanha, onde ninguém quereria saber e os governantes se calariam obedientes aos poderes maiores do mundo.
Na semana seguinte eu não podia perder o ‘La Otra Realidad’. O locutor principal, e autor do programa, tinha prometido que iria trazer a explicação do sucedido, desvendar o mistério. E a explicação veio. Afinal parece que se tinha tratado de uma chuva de meteoritos, habitual naquela altura do ano. E ‘parece’ era o termo certo, porque essa era a explicação oficial. Não tardou que a voz feminina iniciasse a leitura dos comentários cibernéticos dos ouvintes. Houve de tudo. Desde o ‘não foi mas poderia ter sido’, passando pelo ‘não foi desta, mas um dia eles veem mesmo’, até ao inevitável ‘mentem-nos outra vez’ pelo que, tranquilizem-se as mentes despertas, ‘la otra realidad’ tinha demonstrado uma vez mais que era isso mesmo, ‘realidad’, por mais que os poderes do mundo mantivessem os humanos adormecidos contando-lhes estórias de meteoritos e outras infantilidades.
Depois as coisas mudaram. Eu passei a viajar de autocarro, viagem mais demorada mas aproveitada para ler, além de mais barata, e perdi o rasto ao programa. Não sei se ele ainda existe. Hoje, se quero alguma coisa parecida, tenho que me ficar pela blogosfera onde os vários sucedâneos não chegam aos calcanhares do ‘La Otra Realidad’.
Ainda assim, há em comum a mesma propensão para o fantasia, para a seleção do que confirma e a rejeição do que desmente, para a negação de ‘esta’ realidade e sua substituição pela ‘outra’. Mas talvez o aspeto dominante seja mesmo o modo que a inteligência de cada um encontrou para se demitir e fugir do mundo verdadeiro, encontrando assim o refúgio e o conforto que não encontram na insegurança e incerteza que rodeia quase tudo. E sempre com as mais notáveis desculpas e fantásticas razões, porque ‘razões fantásticas’ não faltam para os que escaparam de ‘esta realidade’ e agora vivem para a ‘outra realidade’.
It is quite gratifying to feel guilty if you haven't done anything wrong: how noble! (Hannah Arendt).
Teste
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2 comentários:
'Hoje, se quero alguma coisa parecida, tenho que me ficar pela blogosfera onde os vários sucedâneos não chegam aos calcanhares do ‘La Otra Realidad.'
Quem são realmente os vários sucedâneos?
O site ligado com o link outra realidade tem algo a ver com maçonaria, ou são precisamente contra? E faz parte dos sucedâneos?
Caro CdR
Faz parte dos sucedâneos na medida em que nos presenteiam com uma visão que recorre a suposições que explicam tudo, ainda que expliquem pouco ou até nada. São assim as teorias da conspitação.
Ainda sobre o sucedâneo, sucedâneo no sentido em que é a subtituição possível de algo que era melhor mas já não está disponível. Espetáculos como o 'La Otra Realidad' não têm equivalente. Claro que esta é uma opinião distorcida por quem faz uma viagem por estradas sem ninguém pelo lugar mais despovoado de Portugal e outros detalhes que envolvem o assunto que escapam à publicitação.
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