Teste

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sábado, 26 de junho de 2010

Para terminar - 2


João Barreiros (clicar aqui, para mais informações) é o nosso escritor de FC mais publicado e reconhecido, dentro e fora do país, com traduções em inglês, francês, espanhol, italiano e sérvio, tendo-lhe sido atribuído, por duas vezes, o prémio brasileiro Nova, destinado ao melhor conto publicado na América do Sul.
Com obras editadas, entre outras, pela Caminho e pela Presença, saiu recentemente um sétimo livro, Se Acordar Antes de Morrer, pela Gailivro (editora associada da Leya) uma compilação dos diversos contos que escreveu desde há vinte anos, alguns dos quais entretanto publicados em revistas portuguesas e estrangeiras. De um deles, “O Teste”, que pôde ser lido pela primeira vez no jornal Combate, onde publicou ainda outros, transcrevo um pedaço da nota introdutória que o acompanha e, em seguida, a parte final do texto.
Porque achei interessante, na continuação da minha, ainda inacabada, reflexão sobre José Saramago e, em simultâneo, na sequência do livro, publicado há pouco, de Maria do Carmo Vieira sobre o ensino do português e da sua crítica aos exames deste ano, que vão, curiosamente, no mesmo sentido da metáfora de João Barreiros, até há poucos meses professor do Ensino Secundário.

Trata-se, neste conto, “de uma vivência quase autobiográfica, pois eu próprio, na minha actividade docente já passei por experiências muito semelhantes. Se a FC é uma metáfora do tempo presente, aqui não poderia estar mais próxima da realidade. O TESTE foi publicado pela primeira vez nas páginas do jornal COMBATE, algures no final dos anos oitenta. Ao relê-lo, descubro, com uma pitadinha de horror, que criei um futurível, pois a educação em Portugal não melhorou com a passagem do tempo, antes se aproxima, cada vez mais, do pesadelo sofrido por José Esteves. A iliteracia funcional foi-se aproximando com passinhos de lã e agora habita entre nós, num estado de exultante alegria. Enquanto a avaliação dos docentes ganha aspectos de monstruosa complexidade, os discentes vivem no doce paraíso da anomia cognitiva. Não acredito, tal como julgava Bradbury, que seja necessário, num futuro próximo, queimar todos os livros “politicamente incorrectos”. Não é necessário, porque não haverá ninguém para os ler. De facto, Bradbury também afirmava que escrevia sobre mundos futuros horríveis, para que as pessoas, ao lerem os seus contos, se esforçassem para que eles nunca viessem a acontecer. Haja esperança.


"(...) Após dez minutos de combate campal, entra a coxear na turma. Depois de duas quedas, receia ter fracturado a rótula. Sangue escorre devagarinho de uma lesão no cotovelo esquerdo. Um traço vermelho junto ao pulso revela todo o tipo de tentativas infrutíferas para lhe roubarem a pasta. Do outro lado da rede, a turma inteira ulula: "Não queremos teste", "Greve! Greve ao ponto!", "O profe está dois minutos atrasado", "Não há tempo. Não há tempo..."
"Nem se atrevam..." grita-lhes José Esteves com o bastão a faiscar na mão direita. "Lembrem-se que ainda não cumpri a minha cota de abate este ano. Lembrem-se que ainda posso dar cabo de um ou dois de vocês com o máximo de prejuízo... E que não me importo nada de começar hoje mesmo..."
A maior parte da turma acalma-se. Os mais sensíveis ao stress trituram a ponta das canetas com os dentes. Outros entretêm-se a esfarelar os tampos das carteiras ou a arrancar os tacos do chão.
Devagarinho, com todo o cuidado para não sujar de sangue o questionário, o professor passa as resmas de papel através do orifício na rede e vai sentar-se à secretária, completamente esgotado.
Na outra ponta da sala, os alunos começam a ganir perante a dificuldade das perguntas. Um deles chega a devorar o enunciado. Três outros penduram-se na rede e proferem, em voz baixa, ameaças de morte e mutilação, não vão elas ser gravadas pelo sistema de segurança da Escola que, de facto, nunca chegou a funcionar.
Inseguro, José Esteves passa os olhos pelas primeiras questões:
Leia atentamente o seguinte texto:
"Conhece-te a ti mesmo, assim diz a citação e assim eu próprio vos digo!", afirma SÓCRATES.
1. A quem pertence a citação: A: Sócrates. B: Mager. C: O nosso PM
2. Partindo do princípio que a filosofia implica reflexão
Pergunta: Poderá haver filosofia espontânea? A: sim. B: Não
3. "O mundo nasceu da água" TALES
A afirmação de Tales pretende significar que A: o mundo nasceu da água. B: da terra. C: do ar. D: de lado nenhum.

No fundo da sala de aula, os gritos de fúria e frustração aumentam de intensidade. José Esteves começa a tremer. Afinal elaborou um teste demasiado difícil. A taxa de insucesso vai revelar-se gigantesca. O que implica visita de Inspector e tudo o resto. Quem sabe se mais um processo disciplinar e uma suspensão das actividades lectivas, por provada crueldade mental. E, como se isso não bastasse, uma espera feita pelos alunos, algures, fora dos terrenos da Escola.
O suor escorre-lhe em bica pela fronte. Não pode fazer nada senão recolher a maioria dos testes, ainda em branco ao fim de duas horas ou atravancados de graffiti insultuosos. E, depois, aguardar que a sala se esvazie e entre nova remessa. Pois este é apenas o primeiro teste do dia. Como ele, ainda faltam mais cinco.
O discreto logótipo que orla o cabeçalho lembra-lhe o horror que seria uma transferência vergonhosa para uma Instituição menos creditada do que esta: ESCOLA SANTO MAGER PARA ALUNOS EXCEPCIONAIS E SOBREDOTADOS....
Ainda há gente que não sabe a sorte que tem!
"

(continua)

12 comentários:

anonymoose disse...

"As histórias são ricas em descrições gráficas de violência e rejeitam peremptoriamente os ícones do politicamente correcto,"

deixando de lado o que o amiguismo pode fazer na wikipédia (acrescentado pelo trojan que o meu antivírus detectou), "politicamente incorreto" não é sinónimo de nada.
mas não leio FC, não posso pronunciar-me sobre a alegada independência que o autor do artigo pretende insinuar. basta ler este blog para se perceber que "politicamente incorreto" está muito longe de se equiparar a autonomia ou inteligência das coisas.

RioD'oiro disse...

http://blog.simetria.org/category/home/

José Gonsalo disse...

Ah!, o amiguismo...!
Ah! mas o grande José Saramago lia, dizia ele. E que gostava muito, dizia ele. E, terá lido O Dia das Trífides, daquele escritorzeco, o John Wyndham, que tem um argumento tão, tão aproximado a essa obra-prima do Mestre, o Ensaio Sobre a Cegueira. Só um cego é que nãò vê.

http://200.144.189.54/tudo/exibir.php?midia=fic&cod=_odiadastrifides

Ah! o amiguismo. De alguns. é claro.
E a ignorância e a sobranceria pacóvia transformada em intelectualidade "séria" que-não-lê-essas-coisas-centíficas-onde-não-se-encontra-a-essência-do-destino-humano que, em Portugal, desde os Descobrimentos, é a erva daninha que nos sufoca a alma...

anonymoose disse...

deixe-se de anunciar o após-calypso aos 4 ventos, ainda corre o risco de alguém acreditar em si. não leio FC porque não me entretêm, se gostasse não lhe pedia opinião, para mais tão mal disposta… eh eh eh.
além disso não tenho nada a ver com os gostos do saramago. essa sua observação só comprova a incapacidade de separar as águas. ou tudo ou nada, subtileza e independência não é convosco.

mas gosto de policiais. serve para acalmar os nervos? ou considera-os mais ‘intelectuais’ e essa conversa da treta mantém-se?

amiguismo, sim. qualquer pessoa pode escrever na wiki o que entender. mas não afino pelo vosso diapasão, tem uma amplitude muito reduzida. tive o cuidado de dizer que não li e portanto não posso ajuizar.

adeus, vou a uma sardinhada. como duas ou três por vós. consta que têm omega 3 e muito fósforo.

Anónimo disse...

Tempos atrás um conhecido e respeitado escritor,vivendo em Paris desde meados de setenta, entrou num fórum conhecidíssimo e referiu as afinidades entre o ensaio sobre a cegueira, da saramagal figura, e o romance "Erehwown" de Samuel Butler, que já estava mortinho da fonseca quando o dito ensaísta nasceu.
A partir de certa altura foi impossível ler o que o escrutinador de afinidades escrevera.
Os apparatchikis andam bem preparados e têm olho vivo. Carago, se não têm... Não são ceguêtas, como o Deus-Vivo gostaria de ver nos não-camaradas.

Manuel R.Pereira

José Gonsalo disse...

Anonimoose:
Este deve ser dos "comentários" mais ardilosamente palermas que produziu por estes lados. Para se safar ao que escrevi, dá mais ao rabo do que as sardinhas que vai comer.
Sabe, comer, na medida em implica o sacrifício de vidas para mantermos a nossa, implica também, para que haja algum sentido na existência, o compromisso de se ser verdadeiro, de procurar a verdade das coisas, sem o que perderíamos o direito de o fazer. Portanto, antes de encher a boca com os pobres bichos e as pobres plantas com que os acompanha na deglutição, pense em encher, quer a cabeça quer o coração, de verdade. É isso que define, em última instância o ser humano.
E sabe, já agora, o Universo tem uma economia, um equilíbrio entre o deve e o haver que o mantém. E, no fim (que não em qualquer apocalipse ou após-calypso) haverá contas a pagar. Inevitavelmente. Mas isso, claro, cada um sabe de si.
Bom apetite.

Anónimo disse...

Peço desculpa, onde se lê Deus-Vivo deverá ler-se Deus-Morto desde (e coloque-se a data).
As minhas desculpas ao falecido, embora um autor da craveira dele seja imortal.

Manuel R.Pereira

Anónimo disse...

As sardinhas só têm essas propriedades medicinais se forem ingeridas cruas. Portanto, caro Anonymouse, alerto-o para este facto e sugiro-lhe que lhe coloque um pouquinho de pimenta de rei (é este o nome embora a dita pimenta seja notoriamente republicana).
Verá à partida que o sabor é incomparável , depois notará os progressos nos seus amoráveis comentários.

Nino de Márcia

Anónimo disse...

«O dia das Trífides»: coleção Argonauta n. 71 com capa do Lima de Freiras e uma boa tradução do José Manuel Calafate para a Livros do Brasil. Também lá está o «Mundo de Vampiros» (48) do Richard Matheson, que deu recentemente origem ao «Eu sou a Lenda». Mas do nível do «Dia das Trífides» só mesmo o «Cidadão do Universo» (80) do Francis Carsac e o «Plano Sete» (75) do Mordecai Roshwald.

;-)
Qualquer um deles em prosa inacessível ao saramago - e a saramagos.

anonymoose disse...

a excitação que aqui vai na capoeira por causa das sardinhas!

“depois notará os progressos nos seus amoráveis comentários”
simpatia não me falta, é verdade, anónimo nino, mas o fósforo reservei-o para si.

ó anónimo manuel r. pereira, passe pela pedro álvares cabral e consulte o psiquiatra médico. mas cuidado, ele encontra-se numa fase regressiva da 1ª infância, reconhecível pela redução do mundo a uma determinada parte do corpo. leia primeiro o diagnóstico que ele faz dos anónimos anónimos e previna-se, pode tornar-se inconveniente com os clientes.

“Este deve ser dos "comentários" mais ardilosamente palermas que produziu por estes lados. Para se safar ao que escrevi, dá mais ao rabo do que as sardinhas que vai comer.”
e o que é que a sua palermice escreveu assim de tão engenhoso que fez a minha palermice tremer de medo e fugir?
o seu gosto é universal? eu tenho que seguir os prazeres de leitura do saramago só porque é um grande escritor?
esses rebanhismos são mais da vossa lavra, acorrem todos ao toque da sineta.

e por falar em rebanho, continuo sem saber qual, em sua opinião, é a probabilidade de numa mini-sociedade de 6, 8, 10 pessoas, não haver uma única que goste de bacalhau ou de sardinha assada. uma só que seja, que pelo menos não desgoste de todo.

sardinhas mortas a dar ao rabo? isso é do foro do psiquiatra médico, tem tese própria.

“E, no fim haverá contas a pagar.”
quero crer que não está no púlpito a despachar a missa de domingo.

“Qualquer um deles em prosa inacessível ao saramago - e a saramagos.”
nem duvido. o dan brown é muito mais estimulante para o clube de críticos exigentes que se reúnem em congresso neste blog.

já que é para terminar - 2, está então terminado até renovação de stock.

José Gonsalo disse...

"e por falar em rebanho, continuo sem saber qual, em sua opinião, é a probabilidade de numa mini-sociedade de 6, 8, 10 pessoas, não haver uma única que goste de bacalhau ou de sardinha assada. uma só que seja, que pelo menos não desgoste de todo."
Veja lá, o impossível até acontece...

"quero crer que não está no púlpito a despachar a missa de domingo."
Não, estou mesmo a falar de economia.

"nem duvido. o dan brown é muito mais estimulante para o clube de críticos exigentes que se reúnem em congresso neste blog."
Lá está a tendência Sardinha Venenosa da moda Primavera-Verão. Fica-lhe mal. Alargue os seus "horizontes culturais" e poderá espantar depois espantar as suas amigas lusitanas, dizendo-lhes que há mais mundo. Para isso, uma vez que a FC é uma das suas lacunas (também tenho as minhas, esteja descansada) e não gosta da do tipo "mal-disposta", segundo disse, aconselho-a a começar por descobrir Ursula K. LeGuin, uma senhora que, literariamente e não só, está ao nível de Hermann Hesse. Se ler bem em inglês (suspeito que sim, por motivos que lhe serão óbvios...), faça-o. Senão, leia "Os Despojados" (The Disapossed)e "Tembreabrezi, o Lugar do Início", na Europa-América - mas há mais dela na colecção que poderá ler com muito proveito. Poderá ler também, com muito gozo e algumas gargalhadas, o clássico "A Guerra das Salamandras", de Karel Capek, editado pela Caminho (e, já que estamos na Caminho, aproveite para comprar o "Terrarium-Um Romance em Mosaicos", escrito a duas mãos pelos portugueses João Barreiros e Luís Filipe Silva). E leia também "I, Robot", outro clássico, de Isaac Asimov, composto por nove contos que formam um todo - sendo o segundo uma estupenda metáfora sobre a loucura; o terceiro, uma outra, hilariante e assustadora, sobre as teocracias; e o quinto, um conto que, seguramente, Dostoievski gostaria de ter assinado.
"Os Despojados", publicado em 1974, continua e continuará, sabe-se lá por quanto tempo, tão actual como quando foi escrito. Leia-o e perceberá porquê.
Além disso, poderá ainda ler os clássicos que um anónimo decente citou nesta caixa de comentários, obras de uma profundidade e de uma imaginação notáveis.
Dei-lhe a sugestão de quatro ou cinco livros para as férias. Bons, muito bons livros, em meu entender. Acho que não sou mau tipo, atendendo à atitude indigna e labrega dos anónimos que frequentam desde há tempos este blog. E mais: convido-a a discutir o que neles se diz, aqui.
Aceita? Olhe que nenhum dos autores é "reaccionário"...

anonymoose disse...

“esteja descansada; mal-disposta; as suas amigas lusitanas; convido-a; suspeito que sim, por motivos que lhe serão óbvios...”

não seria altura de acionar os serviços do anónimo decente psiquiatra médico? não se iniba, a si deve fazer-lhe um preço de amigo. mas cuidado, siga as normas de segurança que referi na resposta anterior.

é mesmo obrigatório ler FC? pode-se optar por alternativas ou a guia de marcha só dá mesmo para o fardamento?


“Lá está a tendência Sardinha Venenosa da moda Primavera-Verão.”

acompanha bem a tendência Burrice Contente de todas as estações.


“Acho que não sou mau tipo, atendendo à atitude indigna e labrega dos anónimos que frequentam desde há tempos este blog.”

pouco criterioso, atendendo à boa cobertura que dá à atitude indigna e labrega dos colegas de blog.


“Olhe que nenhum dos autores é "reaccionário"...”

a reacionarice não é problema depois de se ler o que o rebanho escreve. a exposição continuada funciona como vacina.

mas afinal há renovação de stock ou não?
fim ao “Para terminar - 2”. Aguarda-se o “Para terminar - 3” com impaciência.