ANDAVAM OS BOROGOVES DESDITOSOS...
Mas isso era lá e eram só alguns. Os outros andavam mais ou menos bem, pois os olhos, colados pela propaganda incessante dos aparatchikis do costume, parece que finalmente começaram a abrir-se. E vai daí, fizeram saber às gentes uma coisa absolutamente intuitiva, fundacional: que os filhos da casa, proletas dos quatro costados, têm, devem ter, precedência sobre os contratados que vão de fora e que, por norma, ainda por cima cospem no anzol depois de terem comido a isca... Puseram-se desditosos os manos reaccionários, que com os islamitas, por exemplo, usam apanhar bofetadas para não apanharem pontapés. Mas desta vez os proletas não cederam e o poor fellow Brown teve de se conformar - e fez ele muito bem.
Assim o fizesse também por cá o arteiro e manhoso Sócrates e outro galo nos cantaria a todos. Mas este jovem cheio de talento prefere estomagar os professores. E os outros portugueses todos, incluindo - chegou-se a isto! - os membros do sistema judicial, que também não são, convenhamos, flores que se cheirem. Mas adiante: foram 4 dias muito bem passados, com gente fixe e talentosa e com uma assistencia interessada que não me fez perder o meu tempo. A funçanata teve lugar numa galeria perto do Strand, sítio que sempre me emociona. Ainda ali perpassam as silhuetas do dr. Watson e do seu amigo do cachimbo, do boné de abas e da ampla cobertura em tecido príncipe de Gales... O que tinha um faro mais acerado que um cão pisteiro...O nosso "velho" Sherlock! Custou-me mais foi o abalar. Sempre que saio/entro neste belo e triste Portugal, é o mesmo panorama: feliz por tornar ao lar mas curtidinho por dentro, como um couro, por ter de voltar à "piolheira" - como dizia com vernáculo humor, nos seus tempos, o príncipe D.Carlos... Tenho de me deixar destas viagens. Transtornam-me, fazem-me sentir cada vez menos português. E eu não queria, raios, porque até sou muito patriota... Mas o que se lhe há-de fazer?
Para amenizar, aqui vos deixo um poema do acervo que lá fui apresentar. Bom apetite!
Londres
Visitei Londres pela primeira vez numa manhã de Primavera.
Numa das margens do rio, um pouco ao estilo vitoriano
rapazolas snifavam tranquilamente
tornavam real e popular o mistério que William
Blake espalhou pelas coisas do inferno e do céu.
Velho carola
O que eu lhe li nas entrelinhas
o que eu inventei à sua custa com a proverbial
lucidez mediterrânica
Mas passemos adiante. Salvo erro
- e creio que isto é exacto –
daquela maneira desasada é que habitualmente circulavam
os que numa serena e fresca noite resolveram limpar o sebo
mesmo sob o nariz dos transeuntes
à jovem Elisabeth Douglas com sete naifadas no baço
(a sua mãe, o seu pai choroso
o ar compungido da locutora boazona
o cheiro provável a cera fria dos demais figurantes…)
Os cisnes em Datchet Court
solenes como dois turistas numa pensão da linha.
Londres Londres dali vejo partir os velhos aventureiros
G.A.Henty com a sua gravata verde os olhos piscos
Poetas envinagrados conjurando-se a uma esquina
lançando a âncora num pub despertando lembranças
Sucheu Bali as savanas do monte Kenya
lá passam de autocarro até Hampstead
não naturalmente pelos livros mas sobretudo
pelos leitores “recordo-me que uma vez
tentei trabalhar numa casa depois de uma outra quadrilha
lá ter estado” O meu vizinho que sabe
que tudo é citação faz-me sorrir
conta-me coisas adormece-me.
Muitas coisas ficam desconstruídas, do grave
ao divertido
ao fim duma meditação intempestiva
Os domingos de sol
As prímulas na pradaria de Runnymede
O choro de Defoe ou de Donne sobre os rochedos de Chaltenham
O amplexo de um preto velho numa lojeca de Carnaby Street.
Mas a inocência
é já matéria sem relevo
é uma pérola uma pedra fibra descarnada e melancólica.
Londres exactamente e tudo o mais é divagação
há 300 anos eu aqui seria um inimigo.
Os salpicos de lama feriam-me a concentração
mas não havia bruma ouvia-se
um piano mecânico nas redondezas
Deserta a cidade rapaziada pedante mariquices isabelinas
- o obelisco como um carvalho nas colinas de Cape Staines.
É difícil pensei eu lançar o olhar em volta
tanta coisa poderia eu sei lá acontecer
A rapariga junto ao poste de iluminação pensativa
Cinco sonatinas para violoncelo e a sombra de Mateus Pipperbarem
uma voz que ondula de repente e pára.
Ferrovias contudo desdobravam-se ao longo dos continentes e foi então
Que me ocorreu Mas que faço
eu aqui
No entanto uma doçura muito velha percorria-me de cima a baixo
a Inglaterra florida e violenta martelava-me na cabeça
Robinson surgia de súbito acenando com um jornal na mão
Interrogativo um pouco alucinado.
A minha alegria ousará abrir caminho por aqueles labirintos.
A tepidez do Inverno num lugar mais aprazível.
Olho de novo o céu. A multidão comprime-se.
Noutras condições pergunto ainda estarei no recanto que sonhara?
Juan Pedro Moro
Trad. josé lencastre
It is quite gratifying to feel guilty if you haven't done anything wrong: how noble! (Hannah Arendt).
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3 comentários:
Caro José Lencastre,
Gostei do snifavam em "rapazolas snifavam tranquilamente".
Nos gibis brasileiros snif é choro. Então, nessse poema, o significado seria murmuravam, o qual aos ouvidos do eu lírico soavam a lamentos?
Quanto ao vosso estado de espírito, imagino uma inversão de papéis, na qual Lisboa vos diz:
"Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!..."
[uma estrofe de Lisbon Revisited, de 26/4/1926, de Álvaro de Campos]
Oh, comi letras na digitação!
Não é "uma estrofe", mas "última estrofe"
Pois, Nausicaa, aqui snifar tem outro significado...menos lírico.
Snifar é o termo correspondente ao espanhol de calão olorar, que se aplica tanto ao snifar cola como ao snifar coca. Ou, como agora é de uso (mais inocente, convenhamos) entre os adolescentes londrinos, snifar rapé. Curiosamente, o hábito de tomar rapé - que foi fortemente difundido pelos ingleses de antanho - está de novo a ter grande êxito entre os happy few adolescentes e derivados.
Valha-nos isso.
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