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domingo, 23 de março de 2008

Aos Meus Comparsas Ateus, em Dia de Páscoa

Como os visitantes do Fiel Inimigo sabem, pelo menos os mais assíduos sabem, estou rodeado aqui no blog por impenitentes e empedernidos ateus, seguidores de quase todas as versões que o ateísmo pode assumir. Vale que as versões letais estão ausentes.

Assim, e porque hoje é dia de Páscoa, resolvi pregar-lhes uma desfeita. Lembrei-me de lhes pôr uns versículos alusivos, mas depois eles não liam. Então, lembrei-me de alguma coisa escrita daquele modo que impede quem lê de parar de ler, aquela escrita que empurra o leitor de uma palavra a ler a palavra seguinte, e a outra, e as outras, e a ficar contente porque a seguir ao parágrafo que acaba vem outro. Portanto, ponho-lhes Eça. Eça de Queiroz, o tal que se dizia ateu quanto mais não fosse para não ser ostracizado pela corrente intelectual dominante em Portugal à época que, não por acaso, tem demasiadas semelhanças com a de hoje. Aqui fica o final do ‘Suave Milagre’.

"Ora entre Enganin e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ele o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente a miséria cresceu como bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara há muito o azeite. Dentro da arca pintada não restava um grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!

Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava, com os olhos famintos. E esse doce rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah esse doce rabi! quantos o desejavam, que de desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus, o conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, a mãe mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar duma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse rabi que amava as criancinhas, ainda as mais pobres, sarava os males, ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça engelhada:
- Oh filho! e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos, à procura do rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazim até ao país de Moab. Sétimo é forte e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde Hébron até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e nossa dor mora connosco, dentro destas paredes e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?

A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:
- Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!
E a mãe, em soluços:
- Oh meu filho como te posso deixar! Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
- Mãe, eu queria ver Jesus...
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:

- Aqui estou."


Fica ainda, em jeito de blasfémia final, uma saudação popular de dia de Páscoa tradicional em algumas partes do mundo cristão:
"
-Cristo ressuscitou.
-Sim, na verdade ressuscitou.
"


Boa Páscoa.

3 comentários:

Renato Bento disse...

"empedernidos ateus"

Olhe que eu sou agnóstico! Gosto muito do politicamente correcto..

Com esta me despeço, partirei hoje pelas 16 horas rumo ao paraíso fiscal.

Boa Páscoa para os Católicos, bons ovos e doces para os ateus..

osátiro disse...

Um abraço de solidariedade ao Paulo Porto, como católico, e como visita deste blog.
Também se escrevem algumas coisas interessantes em
www.mentesdespertas.blogspot.com.

Continuemos a obra Cristã de tratar todos os seres humanos como irmãos, a começar pelos sem-abrigo, idosos abandonados...e os não crentes( embora me custe imenso com os sarracenos...), mas, lá está, é um sacrifício.

Unknown disse...

Eu não sou ateu.
Não acredito num Deus moral, mas tampouco sou capaz de negar a minha sensação de pequenez face a tudo o que não compreendo.
E, acima de tudo, sei que a religião é um fenómeno comum a todas as culturas.
Alguma razão haverá...

Mas gosto de polemizar sobre Deus.